Por que os deuses acorrentaram Prometeu
Matéria e antimatéria em Jornada nas Estrelas

por João Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
29 de maio de 2004

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Parte III
Um concerto para Richard Wagner

           A série Clássica de Jornada nas Estrelas nunca foi a detalhes de como se desse a reação entre matéria e antimatéria, nem sobre o funcionamento dos sistemas relacionados. "The Naked Time" é o primeiro episódio a revelar o uso dessa reação para a propulsão da Enterprise. Depois, o pouco que vemos em "Elaan of Troyius", "That Which Survives", Jornada nas Estrelas: O Filme e A Ira de Khan, para dar exemplos significativos, acaba não se encaixando muito bem. Foi a Nova Geração que já nasceu com bibliografia e consistência a respeito das minudências físicas e tecnológicas desse universo. Seguindo essa linha, os fundamentos mantiveram-se na Voyager, para a qual o Manual técnico da Nova Geração1 só precisaria de algumas atualizações.

          Assim, explica-se por que o armazenamento de antimatéria é feito no deque mais inferior das naves: diante do risco de uma falha de contenção, os módulos podem e devem ser ejetados imediatamente. Um exemplo da coerência dessas séries está em "Future Imperfect", quando Geordi informa que há flutuações na contenção de antimatéria, mas trata o fato como se fosse a mais simples rotina. Isso é uma confirmação, para Riker, de que aquela não seja sua realidade, pois, se fosse, aquelas flutuações seriam motivo de extrema apreensão.

          Com alguma freqüência, pode-se ver, na Nova Geração e na Voyager, que a iminência de uma falha na contenção de antimatéria costuma ser razão suficiente para se abandonar a nave. As séries são bastante enfáticas quanto a isso. Afinal, falhando os campos magnéticos de contenção, o antideutério entra em contato com o interior dos módulos de armazenamento e, aí, já viu... fogos de artifício, cortesia da Frota Estelar. Essa é a grande ameaça com que Deanna Troi deve lidar em "Disaster" e a causa das sucessivas destruições da Yamato, em "Contagion", e da Enterprise e da Bozeman, em "Cause and Effect". Também Generations fornece uma amostra do poder destrutivo da antimatéria quando a Seção de Engenharia da Enterprise vai pro vinagre.

          O mesmo raciocínio vale para rupturas do núcleo de dobra, onde acontece a reação de que tratamos na parte II deste artigo e onde a temperatura é milhões de vezes aquela encontrada no interior do Sol. É esse o motivo que fez Sisko e a tripulação da Saratoga evacuarem a nave nas primeiras cenas de DS9, em "Emissary". Vê-se que não é por pouca coisa que Nog entra em pânico quando a ruptura do reator é programada para dentro de dez segundos em "The Jem'Hadar".

          Botando a bomba atômica no chinelo — Na parte I deste documento, o Leitor descobriu que a primeira bomba atômica converteu apenas uma pequena fração de sua massa de urânio em energia. Na verdade, foram 0,8 g de urânio que desapareceram (de um total de cerca de 1 kg a sofrer fissão nuclear2), e a energia resultante bastou para varrer uma cidade. Ao converter em energia apenas 0,08% da massa com a qual lida3, a fissão nuclear é muito ineficiente como arma.

          Caso existissem bombas de antimatéria, elas poderiam, em princípio, converter toda a sua massa em energia. Isso, sim, é pavoroso.

          As assustadoras propriedades de nosso pacato objeto de estudo são demonstradas pelo Capetão Kirk ao final de "Obsession". No episódio, uma pequena garrafa magnética serve como uma bomba ao ter seu campo de contenção desligado e, assim, permitir o contato entre matéria e a antimatéria que transporta.

          A este respeito, os torpedos fotônicos são um melhor exemplo do emprego bélico da antimatéria. A série Clássica e seus filmes não chegam a sugerir o funcionamento destes destrutivos engenhos, fazendo com que, mais uma vez, a tarefa caiba ao Manual técnico da Nova Geração.4

          Dentro de um torpedo fotônico, quantidades iguais de deutério e antideutério são mantidas em confinamento por seus respectivos campos de contenção magnética. A um sinal dos circuitos de bordo, desligam-se os campos, matéria e antimatéria entram em contato, e grande quantidade de energia é liberada em prejuízo de quem estiver por perto. O mesmo princípio é visto em "Dreadnought", mas em escala muito maior: neste episódio, o míssil cardassiano do título transporta uma tonelada de cada reagente, "o suficiente para destruir uma pequena lua". Isso é E = mc2 levado a conseqüências extremas, a uma dimensão de grandiosidade bastante diversa da escala subatômica de onde o Leitor partiu algumas páginas atrás. Um final apropriado para nossa pequena jornada pelos domínios da exótica antimatéria.

          Nos dias de hoje, a Engenharia tem tido sucesso na criação segura de antimatéria para os desbravadores da Física de alta energia. Investigando a origem da vida, do universo e de tudo o mais, eles estão, contudo, ainda muito distantes do dia em que conseguiremos — se o viermos a fazer — controlar a reação entre matéria e antimatéria em escala industrial. A estrada até lá oferece toda sorte de dificuldades. Nas palavras do Manual técnico, "regularmente, alguns dos primeiros reatores de matéria e antimatéria sofriam detonações catastróficas"5.

          Realmente, aprisionar e controlar a fornalha de Vulcano (se o Leitor me perdoar o trocadilho) não há de ser tarefa muito fácil. Um trecho inicial do caminho está sendo percorrido pelos físicos Pierre Noyes, Charles Pellegrino e Jim Powell com seu projeto do foguete Valkyrie6. Se construído conforme o planejado, o Valkyrie será capaz de atingir 92% da velocidade da luz, propelido por uma reação de fusão nuclear cuja iniciação se dará pelo contato entre matéria e antimatéria. Os três artistas da Física já pensaram em proteção contra os danosos raios gama e em outros subsistemas, como o de arrefecimento e o defletor navegacional.

          Em seu site Ex Astris Scientia (onde mais?), Bernd Schneider apresenta uma concepção, escrita por Masao Okazaki, de como teria ocorrido o domínio prático da reação mais intensa conhecida pelo ser humano7. Os primeiros reatores de matéria e antimatéria teriam sido postos em serviço durante a guerra entre a Terra e o Império Estelar Romulano. Em razão de sua maior eficiência e apesar dos maiores riscos envolvidos, teriam vindo a substituir a fusão nuclear na geração de energia para a propulsão de dobra. Despeço-me do Leitor indicando-lhe a "bolacha", criada por aquele Autor, que simboliza o projeto dos primeiros reatores de matéria e antimatéria.

Bolacha do Projeto Reator de Matéria/Antimatéria
http://www.ex-astris-scientia.org/sfmuseum/mam-project-logo.gif.

          O autor agradece a Gerson B. Costamilan pela lembrança do impossível espelho para raios gama; a Isabel Grau pela revisão do texto; a Cristina Nastasi pela gentil cessão de material de pesquisa; e, principalmente, a seu pai, Prof Jota Pinto, que estimulou e ainda alimenta sua fascinação por Física.


Notas

  1. STERNBACH, Rick; OKUDA, Michael. Star Trek: The Next Generation Technical Manual. New York: Pocket, 1991. 192 p. ISBN 0-671- 70427-3. Voltar para cima

  2. SETTLE, Frank. Nuclear Chemistry: 9. The First Atomic Bombs. [S.l.:] Kennesaw State University, 1999. Disponível em: <http://chemcases.com/nuclear/nc-09.htm>. Acesso em: 22 jan. 2002. Voltar para cima

  3. PANVINI, R.S. Lecture 27, March 24, 2000. [S.l.: s.n.], 22 mar. 2000. Disponível em: <http://www.physics. vanderbilt.edu/panvini/p110b/lecture27.html>. Acesso em: 22 jan. 2002. Voltar para cima

  4. STERNBACH, Rick; OKUDA, Michael. Op. cit., p. 128-129. Voltar para cima

  5. STERNBACH, Rick; OKUDA, Michael. Op. cit., p. 128. Voltar para cima

  6. PELLEGRINO, Charles; ZEBROWSKI, George. Dyson Sphere. New York: Pocket, 1999. 256 p. (Star Trek: The Next Generation, n. 50.) ISBN 0-671-54173-0. p. 206-226. Voltar para cima

  7. OKAZAKI, Masao. The Development of Matter/Antimatter Drives. [S.l.: s.n.], 1 out. 2001. Disponível em: <http://www.ex- astris-scientia.org/sfmuseum/warp-development.htm>. Acesso em: 15 jan. 2002. Voltar para cima


João Paulo Cursino é engenheiro mecânico e apaixonado por Física. Seu prato preferido é antimatéria flambada.

Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente no Portal Jornada nas Estrelas Brasil (http://www.jornadanasestrelas.net) em 13 de março de 2002 sob específica permissão do autor e republicado em http://www.geocities.com/jpcursino/antimat3.htm em 12 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omissão da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é registrado.

Jornada nas Estrelas e tudo que vai dentro são marcas da Paramount Pictures, não pretendo violar normas nem direitos, esta página é só diversão, não há finalidade comercial, etc.

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