Por que os deuses acorrentaram Prometeu
Matéria e antimatéria em Jornada nas Estrelas

por João Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
Terceira versão
29 de maio de 2004

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Parte I
Como evaporar a enseada de Botafogo

          Quando assistimos a Jornada nas Estrelas, é comum ouvirmos os personagens mencionarem matéria e antimatéria no contexto da propulsão de dobra das naves. Também são relativamente freqüentes as instâncias em que essas naves são vaporizadas devido a falhas no campo de contenção de antimatéria, ou escapam disso por pouco.

          Mas o que, de fato, é antimatéria?

          Este artigo em três partes propõe-se a explicar o conceito básico de antimatéria e suas aplicações no universo de Jornada nas Estrelas. Antes de prosseguir com nossos elementos de ficção, faremos um breve passeio pela Física do século XX. Leitor, não se assuste com o início, que pode ser mais pesado do que o resto. Compreendidos os conceitos iniciais, o que vem depois é sopa plomeek no mel.

          A generalização de Einstein — É provável que o Leitor já tenha tido contato com a célebre fórmula deduzida por Einstein como parte de sua Teoria da Relatividade: E = mc2, ou seja, "energia é igual a massa vezes o quadrado da velocidade da luz". Muito alardeada desde 1945, trata-se de uma fórmula nem sempre muito compreendida. Uma de suas implicações é a descoberta de que massa é energia concentrada.

          Entenda-se: para o universo, a existência de um corpo de determinada massa tem o mesmo efeito que teria a concentração da quantidade correspondente de energia dentro do espaço que aquele corpo ocupa. Essencialmente, massa é energia concentrada. Se pudéssemos tomar um corpo desprovido de energia térmica, de energia química, de energia mecânica, ainda assim o universo contabilizaria que ali houvesse a energia correspondente à simples massa do corpo; a energia que o corpo conjura só por existir materialmente.

          Imagine o Leitor uma porção de um quilograma de qualquer material. Qualquer um: chumbo, algodão, vidro, chocolate, à escolha. O que E = mc2 diz é que, nesse um quilograma, a natureza concentrou E = 1 kg x (3 x 108 m/s)2 = 9 x 1016 J de energia. Ou seja: caso pudéssemos desfazer tal massa na energia que a constitui, essa energia seria bastante para que cada um dos trinta milhões de habitantes das regiões metropolitanas de Rio de Janeiro e São Paulo juntas pudesse manter uma lâmpada de 100 W acesa por um ano inteiro. Ou, então, para evaporar toda a água de um tanque de 600 m x 600 m de superfície por 100 m de profundidade, partindo da temperatura de 25oC.

          Nesse processo, a pequena porção de massa escolhida para mártir da Ciência deixaria de existir, e aquela quantidade espetacular de energia tomaria seu lugar. A contabilidade do universo estaria obedecendo a uma grande lei de conservação.

          Há mais de duzentos anos, Lavoisier descobriu o princípio de conservação das massas, que, generalizado, estabelece que a massa do universo se conserva ("nada se cria, nada se destrói"). Na mesma época, a Ciência chegava ao princípio de que também a energia se conserva, não se criando nem se destruindo, sempre mudando de uma forma para outra. A energia potencial da água na represa transforma-se em energia cinética das turbinas, em energia elétrica na fiação, em energia luminosa na sua casa.

          Pois esta foi uma das manifestações da genialidade de Einstein. O físico alemão descobriu que os dois princípios são, de fato, um só e mesmo: é a "reunião" de massa e energia que é constante no universo. Massa pode destruir-se, mas dá lugar à energia que lhe corresponde, e vice-versa. O homem pôs essa descoberta em prática ao descobrir a fissão nuclear e inventar a bomba atômica. Quando o núcleo de um átomo de urânio cinde e dá origem a dois novos átomos (um de bário, outro de criptônio) e dois nêutrons, ele também libera uma quantidade colossal de energia. Feito isso em larga escala, as conseqüências são nossas trágicas conhecidas. Tal energia corresponde "apenas" à diferença de massa dos produtos da reação para o átomo original (na verdade, o processo é mais complexo, mas esta simplificação basta por ora). Essa diferença é uma fração muito pequena de toda a massa envolvida.

          Mas que tem tudo isso a ver com antimatéria? Aliás, a pergunta continua: o que é antimatéria?

          A realidade desafia a ficção — O exemplo mais distante em que a antimatéria consta na memória deste autor é uma história em quadrinhos do Esquadrão A.T.A.R.I., publicada em 1984 pela editora Abril em um título da DC Comics. Na história, o vilão montava uma bomba de antimatéria que destruía o universo inteiro.

          Assustador, não?

          A idéia de antimatéria foi sendo alimentada em mim pela ficção científica até que, um dia, aprendi que a propulsão de dobra da Enterprise dependia da reação de matéria e antimatéria. Uau, eu pensava, que será isso? Será que a antimatéria tem massa negativa? Será que sua gravidade repele, em vez de atrair?

          O choque seguinte foi descobrir que a antimatéria era algo bem mais prosaico do que seu instigante nome indicava. Primeiro: ela existe. Segundo: é apenas matéria comum com carga elétrica invertida.

          Pense em um átomo de hidrogênio. Um próton, sua carga elétrica positiva, orbitado por um elétron, cuja carga elétrica é negativa. Típica química do ensino médio, certo?

          Pois é. O correspondente ao hidrogênio, em antimatéria, é o anti-hidrogênio: um antipróton, idêntico ao próton mas com carga elétrica negativa, orbitado por um antielétron, idêntico ao elétron mas com carga elétrica positiva. O antielétron também é conhecido como pósitron. Até hoje, o homem não conseguiu montar um átomo de anti-hidrogênio, mas suas partículas constituintes são encontradas todo o tempo em nossa alta atmosfera ou fabricadas nos fabulosos aceleradores de partículas.

          Uma das características da antimatéria é mostrada por Jornada nas Estrelas: quando matéria e antimatéria se encontram, as duas deixam de existir. Em seu lugar, surge a energia correspondente a suas massas. Ou seja: 1 kg de matéria e 1 kg de antimatéria, quando postos em contato, aniquilam-se, libertando 18 x 1016 J de energia.

          Ciclo básico de Engenharia, curso de Física IV, 2 de agosto de 1994: meu último choque sobre antimatéria. Naquela aula, recebi a revelação de que matéria e antimatéria não se aniquilam assim, sem mais nem aquela. Uma partícula só se aniquila com sua antipartícula respectiva; um próton somente se oblitera com um antipróton; um elétron, somente com um pósitron; um nêutron, somente com um antinêutron. Além disso, uma partícula e sua antipartícula não se aproximam facilmente, necessitando de certas condições particulares para serem levadas à mútua aniquilação.

          Bem, mas que acontece quando, finalmente, consegue-se levar um elétron e um pósitron a baterem de frente? Acontece que a massa de que se constituem é toda convertida em energia. Segundo Arthur Beiser1, "o desaparecimento simultâneo de um elétron e de um pósitron libera 2m0c2 de energia", onde m0 é a massa de cada uma das partículas aniquiladas. Em outras palavras: o que se obtém é um bocado de energia luminosa, na forma de radiação gama. Do local onde ocorre o choque, partem duas partículas de radiação (fótons), cada uma contendo 0,51 MeV (mega-elétron-volt) de energia. Essa quantidade de energia não levanta nem uma formiga, mas, para uma partícula, é um chute no fígado.

          Esse processo fenomenal é ainda mais notável quando ocorre ao contrário. Se conseguirmos um raio gama cuja energia seja igual a 1,02 MeV e o fizermos passar perto do núcleo de um átomo massivo2 em certas condições, o fóton desaparece e dá lugar a um par de partículas: um elétron e um pósitron. A energia que era o fóton torna-se a massa do par! Nas palavras de Beiser, "se quisermos, poderemos encarar o processo da criação do par elétron-pósitron [como] um processo que implica a materialização da matéria a partir da energia, uma vez que desaparece a energia 2m0c2 sempre que semelhante par vem a constituir-se." A presença do núcleo massivo é conveniente em virtude da Segunda Lei de Newton e não será discutida aqui. Para a obtenção de prótons e antiprótons ou de nêutrons e antinêutrons, o raciocínio é o mesmo, mas, como se trata de partículas quase 2000 vezes mais massivas, as energias envolvidas são proporcionalmente maiores.

          A conversão de energia em matéria ocorre todo o tempo na alta atmosfera da Terra, onde pósitrons e elétrons são criados a partir da radiação gama incidente do espaço. De forma análoga, os mesmos resultados são rotineiramente obtidos em aceleradores de partículas, onde a "fabricação" de antimatéria está no dia-a-dia de técnicos e cientistas.

          Muito bem. Elétrons e pósitrons encontram-se, desaparecem em uma nuvem de raios gama. Raios gama vêm chutados do espaço exterior, passam perto de núcleos massivos, originam pares de elétrons e pósitrons. Massa converte-se em muita energia; muita energia converte-se em massa. A propósito: a edição seguinte da revistinha revelava que aquela bomba de antimatéria não destruíra o universo inteiro; apenas parte dele. Que alívio.

          Agora, Leitor, eu o convido a visitar o núcleo de dobra da Enterprise, onde a mão do homem captura o inferno para se lançar às esferas celestiais... na parte II desta exposição.


Notas

  1. BEISER, Arthur. Conceitos de Física moderna. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1969. 472 p. Tradução de Concepts of Modern Physics por Gita K. Ghinzberg. p. 383-385, 414-420. Voltar para cima

  2. Massivo significa com muita massa da mesma forma como pesado significa com muito peso. São conceitos parecidos, porém diferentes. Voltar para cima


Referências adicionais

  • EISBERG, Robert; RESNICK, Robert. Física quântica: átomos, moléculas, sólidos, núcleos e partículas. 4. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1988. 928 p. ISBN 85-7001-309-4. Tradução de Quantum Physics of Atoms, Molecules, Solids, Nuclei and Particles por Paulo Costa Ribeiro, Enio Frota da Silveira e Marta Feijó Barroso. p. 69-75.

  • WORLD NUCLEAR ASSOCIATION. Some Physics of Uranium: (With Particular Reference to Nuclear Reactors). [S.l.], July 2000. Disponível em: <http://www.world-nuclear.org/education/phys.htm>. Acesso em: 22 jan. 2002.

  • João Paulo Cursino é engenheiro mecânico e tem pendor para o estudo de Física. Seu próximo desafio é explicar por que toda a água da piscina do vizinho se evaporou enquanto escrevia este artigo.

    Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente no Portal Jornada nas Estrelas Brasil (http://www.jornadanasestrelas.net) em janeiro de 2002 sob específica permissão do autor e republicado em http://www.geocities.com/jpcursino/antimat1.htm em 12 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omissão da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é registrado.

    Jornada nas Estrelas e tudo que vai dentro são marcas da Paramount Pictures, não pretendo violar normas nem direitos, esta página é só diversão, não há finalidade comercial, etc.

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