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A Coerência em Textos de Alunos do Ensino Médio
Fundamentação Teórica

de: Benedito Gomes Bezerra

1.1 Lingüística Textual

A Lingüística Textual, de acordo com Koch, teve como objetivo, desde os seus primórdios e até o final da década de 70, "descrever os fenômenos sintático-semânticos ocorrentes entre enunciados ou seqüências de enunciados"(1989:11), caracterizando a chamada análise transfrástica. Neste tipo de análise, não se distinguem nitidamente os fenômenos ligados à coerência daqueles ligados à coesão textual. Sob o influxo da gramática gerativa, que entretanto não excedia a frase, busca-se apreender uma gramática de texto.

A partir da década de 80, a Lingüística Textual tem se caracterizado pela existência de variadas tendências chamadas Teorias do Texto. Para os fins desse trabalho, interessam também as idéias de Beaugrande & Dressler(1981), especialmente no que diz respeito ao estabelecimento de critérios de textualidade. Para esses autores, a textualidade caracteriza-se pelos critérios centrados no próprio texto(coesão e coerência), e pelos critérios centrados nos usuários (informatividade, situacionalidade, intertextualidade, intencionalidade e aceitabilidade).

Consideradas as diversas tendências, Marcuschi apresenta um conceito de Lingüística Textual como o "estudo das operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos escritos ou orais"(apud Koch,1989:14). A Lingüística Textual, portanto, toma objeto de investigação o texto, e não a frase ou a palavra isolada. O texto é considerado a unidade básica de comunicação lingüística. Daí o interesse pela explicitação dos elementos ou fatores de textualidade. Dados os fatores apresentados por Beaugrande e Dressler, este trabalho concentra-se em aspectos de um deles: a coerência. Necessário se faz, entretanto, traçar algumas considerações acerca da relação entre coerência e coesão.

 

1.2 Coerência e coesão

A coerência, tida por Koch & Travaglia(1990) como princípio de interpretabilidade e compreensão do texto, é resultado das relações subjacentes à superfície textual, tornando-se responsável pelo sentido do texto. Envolve os aspectos lógicos, semânticos e cognitivos do texto. Além dos fatores internos do texto, é exigida uma compatibilidade de conhecimento de mundo entre o produtor e o recebedor.

A coesão diz respeito à manifestação lingüística da coerência. Caracteriza-se pelos elementos formais de ordem gramatical e léxica, sendo responsável pelo nexo estabelecido no nível superficial do texto. Segundo Koch(1989), há duas modalidades de coesão: a coesão referencial e a coesão seqüencial.

A coesão referencial estabelece o nexo entre componentes da superfície textual que remetem a um mesmo referente, através dos mecanismos de substituição e reiteração. Já a coesão seqüencial se constrói através da recorrência e da progressão.

Já foi exaustivamente demonstrado (cf. Koch & Travaglia - 1990 e Val -1991) que a coesão não é um requisito suficiente nem necessário para a existência de um texto. O texto pode não apresentar qualquer mecanismo formal de coesão e ser, mesmo assim, perfeitamente coerente; semelhantemente, o texto pode apresentar mecanismos de coesão e não ser coerente. Logo, é possível, como se pressupõe nos conceitos acima, postular uma separação teórica e prática entre coerência e coesão. Entretanto, na maioria das vezes, o texto manifesta uma relação tão íntima entre os dois conceitos que a separação se torna extremamente complicada, especialmente numa situação de avaliação escolar da produção textual. Consideramos, pois, necessário explicitar o relacionamento existente entre coerência e coesão e como ele foi tomado na execução deste trabalho.

Segundo Val(1991:7), a coerência e a coesão promovem conjuntamente a "inter-relação semântica entre os elementos do discurso". A coesão é a expressão formal, lingüistica e lexical da coerência, sua "manifestação superficial"(Koch & Travaglia, 1990:42). No entanto, o elemento imprescindível ao estabelecimento da textualidade é a coerência no plano das idéias. A coesão será um facilitador no cálculo da coerência.

Para Charolles(1978), a análise da coerência textual deve levar em consideração as seguintes relações:

a) Coerência e linearidade textual: É necessário observar a ordem de aparição dos segmentos em um texto, para que se possa refletir a respeito da coerência. A gramática de base à qual se referirão as meta-regras sobre que falaremos a seguir integra relações de ordem. As principais relações desse tipo concernem a "preceder" e seu inverso. Deste modo, a coerência do elemento que se segue, o "seguido", é função do "precedente", e vice-versa.

b) Coerência microestrutural e coerência macroestrutural: São dois níveis de organização textual e dizem respeito, respectivamente: à relação local entre frases sucessivamente ordenadas em uma seqüência e à relação global entre seqüências consecutivas e, normalmente, maiores que a frase. Daí decorre que a coerência de um texto deverá ser estabelecida tanto no nível microestrutural como no macroestrutural.

c) Coerência e coesão: A coerência diz respeito ao ordenamento de constituintes frásticos, seqüenciais e textuais em uma cadeia de representações semânticas de modo que suas relações conectivas sejam manifestas. No entanto, a análise dessas relações semânticas conduz freqüentemente a considerações de ordem pragmática, fazendo com que a fronteira entre o imanente e o situacional, o textual e o pragmático, se torne cada vez menos nítida. Contrariamente a Koch, Travaglia, Val e outros autores, Charolles, cujo trabalho nos serve de base teórica, questiona a possibilidade de se "operar uma partição rigorosa entre as regras de abrangência textual e as de abrangência discursiva"(grifo do autor). Indo além, ele se refere à "inutilidade presente" de uma distinção entre coesão e coerência. Deste modo, Charolles não separa, na avaliação de um texto, aquilo que é "superfície" e o que é "lógico-semântico": o resultado disso tudo compõe simplesmente o conceito de coerência, incluída aí a idéia de coesão. Em nossa própria análise, seguiremos seus passos, até por julgarmos que esse procedimento torna o trabalho mais objetivo e evita os riscos de uma partição artificial de aspectos da avaliação textual.

 

1.3 As meta-regras de Coerência

Na proposta de Charolles, são quatro as meta-regras de coerência: repetição, progressão, não-contradição e relação. É preciso dizer que a aplicação da proposta de Charolles já foi feita e se encontra em Val(1991). Nosso trabalho, além de ser bem mais limitado, por sua própria natureza, apoia-se em um corpus produzido em situação bastante diferente, o que poderá ocasionar resultados diferentes. Não se trata, pois, de uma simples réplica de pesquisa. Aliás, uma pesquisa que estabelecesse um confronto entre textos produzidos em situação escolar(nosso caso) e textos produzidos sob a pressão de um exame vestibular(o caso da autora citada) haveria de ser extremamente elucidativa. Embora não seja este nosso objetivo, ocasionalmente poderemos tecer observações de caráter comparativo entre as duas pesquisas.

1.3.1. Meta-regra de repetição:

Na pesquisa de Val(1991), a MR1 é chamada de continuidade. Embora consideremos válida a tentativa de encontrar um termo mais elucidativo e claro que "repetição", a sugestão da autora não está livre de problemas, dada a semelhança conceitual que se cria entre "continuidade" e "progressão", a segunda meta-regra. Ou seja, abstraídos os conceitos de Charolles, que diferença há, em nível lexical, entre "continuidade" e "progressão"? Por isso, manteremos a denominação da MR1 como proposta por Charolles. Vejamos em que ela consiste:

"Para que um texto seja(microestruturalmente e macroestruturalmente) coerente, é preciso que contenha, no seu desenvolvimento linear, elementos de recorrência estrita"(Charolles, 1978:49). A língua disponibiliza mecanismos que permitem ligar frases ou seqüências de frases a outras que se encontram em seu contexto imediato, retomando precisamente um dado elemento lingüístico através de um elemento vizinho. Na superfície do texto, a repetição se manifesta através de recursos como a reiteração de palavras, o uso de artigos definidos ou pronomes demonstrativos para repetir entidades já enunciadas, a elipse e os pronomes anafóricos, entre outros. Analisamos mais detalhadamente esses recursos da língua nos itens abaixo:

a) As pronominalizações:

O pronome repete, à distância, um sintagma ou uma frase inteira, na maioria das vezes através da anáfora. Nos exemplos a seguir, veja-se o procedimento do aluno(texto 01):

A seca está grande no nordeste, é só abrir um jornal, ligar uma televisão, para ver as notícias, sobre a seca...

Talvez diminuísse esse problema se os nossos governantes fosse um pouco mais sensatos, mais eles não são...

No primeiro caso, devido à proximidade das ocorrências, podia-se esperar a substituição de "seca" por um nome ou pronome equivalente. Embora um escritor experiente pudesse utilizar uma construção assim de modo a conseguir um efeito enfático, é mais provável que o aluno apenas evidenciou sua inabilidade em substituir o termo por um dos anafóricos disponíveis. No caso seguinte, o produtor do texto utiliza o mecanismo de repetição quando substitui "os nossos governantes" pelo pronome "eles".

b) As definitivações e as referenciações dêiticas contextuais:

São mecanismos que permitem, como as pronominalizações, a retomada explícita ou virtual de um substantivo de uma frase para outra. Esse tipo de construção em que a repetição é introduzida por um artigo definido ou por demonstrativos, é muito praticado pelos alunos, que parecem perceber que a repetição nesses termos é referencial e não, como querem os professores, empobrecedora do texto. Especialmente quando os dêiticos são utilizados, a proximidade contextual é requerida como condição de inteligibilidade. Além da proximidade, também é requerido que o artigo definido seja usado depois de uma primeira aparição do indefinido, e não o contrário, ou apenas o uso de artigos definidos, como ocorre indevidamente no exemplo do texto 12:

O periodo complicado, cheio de descobertas sem dúvida é a adolecência mais sem dúvida nenhuma é a mais bela.

Ao contrário, no texto 30 encontramos um bom exemplo do emprego correto do mecanismo de definitivação:

Há muito anos, um fantasma chamado desemprego abala estruturalmente o quadro social e econômico do nosso país. A triste realidade é vivida atualmente por milhões de brasileiros...

c) As substituições lexicais:

O termo pode ser repetido através de outro que o substitui; a substituição garante ao texto, ao mesmo tempo, a inserção de um novo elemento, quer seja pela particularização ou pela paráfrase do termo substituído. O procedimento é utilizado no seguinte exemplo do texto 02:

O Brasil vai completar 500 anos que foi descoberto. Esse país vive com muitos problemas desde que foi descoberto...

Uma substituição lexical será problemática se não observar a ordem de aparição dos elementos segundo a qual o termo mais genérico deve ser precedido de seu representante, e não o contrário. O autor do texto 31, talvez por já ter a palavra "Brasil" no título de sua redação, começa a mesma da seguinte maneira:

Falta pouco para o país comemorar 500 anos de história. A contagem regressiva para o ano 2000 começou. Além da virada do século, o Brasil tem muito a comemorar daqui a dois anos.

Uma última restrição à substituição lexical advém de questões pragmáticas, relacionadas com o conhecimento de mundo do receptor de um texto. Um procedimento de substituição lexical pode estar textual e semanticamente correto mas não ser coerente com o mundo real. Por falta de exemplos análogos em nosso corpus, citamos os casos colocados por Charolles(1978:52-53). Ambos os exemplos são textualmente perfeitos, mas o segundo contém um problema de caráter pragmático: a expressão substitutiva de "Picasso" não se aplica "enciclopedicamente" ao artista:

EXEMPLO 1: Picasso morreu faz um ou dois anos. O autor das ‘Demoiselles d’Avignon’ deixou sua coleção pessoal para o museu de Barcelona.

EXEMPLO 2: Picasso morreu faz um ou dois anos. O autor da ‘Sagração da Primavera’ deixou sua coleção pessoal para o museu de Barcelona.

d) As recuperações pressuposicionais e as retomadas de inferência:

As recuperações pressuposicionais incidem sobre conteúdos semânticos (e, acrescentaríamos, pragmáticos) não manifestos, que demandam uma recuperação pelo recebedor. As retomadas de inferência são proposições tomadas de um enunciado, mesmo que não façam parte inalienável dele. Ambas exigem uma articulação lógica de conhecimentos de mundo que, eventualmente, o aluno pode não dominar, fato que por si já sugere a necessidade de cuidados por parte do professor ao propor exercícios de continuação de textos. No entanto, mesmo em uma seqüência onde não se esperaria nenhuma dificuldade no uso desses mecanismos, devido ao tipo de conceito envolvido(a família), a recuperação do sentido pode se tornar extremamente difícil, como é o caso desse fragmento do texto 04:

Tudo começou quando um dos pais de um garoto(Beto) se mudaram. Ele, morando sozinho, podia fazer o que quisesse na vida.

É improvável inferir que, se um dos pais(a mãe ou o pai) se mudou, o garoto passou a morar sozinho. Se, por exemplo, o pai do garoto foi embora, o que houve com sua mãe? Também interferem, aqui, questões pragmáticas, relativas à aceitabilidade do texto. Não é comum os pais se mudarem e deixarem um garoto(adolescente, não se sabe de que idade) morando sozinho.

Esses mecanismos remetem a um conhecimento de mundo ou às leis do discurso e permitem ao texto apresentar um desenvolvimento temático contínuo, ao mesmo tempo em que os elementos não se dissociam pela ausência de nexo entre eles.

 

1.3.2. Meta-regra de progressão:

"Para que um texto seja microestruturalmente ou macroestruturalmente coerente, é preciso que haja no seu desenvolvimento uma contribuição semântica constantemente renovada." (Charolles, 1978:57). Além de apresentar repetição, o texto precisa manifestar uma progressão semântica, precisa comunicar alguma coisa, desenvolver-se linearmente, e não perder-se em uma circularidade redundante. Há a necessidade de equilíbrio entre as exigências de repetição e de progressão semântica. A contribuição semântica para a progressão do texto não pode, também, ser inserida em qualquer lugar. Charolles lembra que um texto que desenvolve várias séries temáticas deve fazer com que estas séries constituam, na superfície, "conjuntos seqüenciais homogêneos". Consideremos o seguinte fragmento do texto 05:

Páscoa não significava só páscoa, mas sim o renascimento de Jesus Cristo. Páscoa significava a lembrança e a comemoração da libertação no Egito. Portanto, a palavra páscoa significa passagem da morte para a vida. Hoje, na páscoa, festejamos a ressurreição de Cristo.

Páscoa não significa muitas mortes, muitos acidentes, brigas de casais. Mas sim a união, paz, felicidade, prosperidade, fraternidade e, claro, a vida para novo mundo.

Para que haja uma páscoa com Jesus é necessário que todos estejam reunidos...

Apesar de introduzir algumas informações relativas ao conteúdo semântico de "Páscoa", o autor desenvolve um raciocínio circular, conceituando Páscoa e até retomando o mesmo vocábulo ou expressões semelhantes. Há um desequilíbrio no uso da meta-regra de repetição e da meta-regra de progressão.

 

1.3.3. Meta-regra de não-contradição

O texto não pode apresentar contradições nem no âmbito interno nem em relação ao mundo a que se refere. A coerência interna exige que o texto não contenha proposições mutuamente contraditórias ou excludentes. As idéias contidas em um texto devem ser conciliáveis entre si, inclusive no que trazem de pressuposto e no que permitem inferir.

Externamente, as idéias do textos não podem contradizer o mundo ao qual se referem. Se um texto diz respeito ao mundo real, deve observar certas leis, maneiras de pensar e pressuposições básicas que subjazem às relações entre as pessoas e, portanto, à comunicação textual. Por exemplo, um texto referencial não pode ignorar que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço, ao mesmo tempo.

A contradição pode se manifestar no plano conceitual, como neste exemplo do texto 40, onde se discute a sexualidade na adolescência:

Sexo é muito bom, mas tem que ser menos praticado.

O escritor confunde a quantidade ou a freqüência das relações sexuais com as conseqüências que elas trazem. Claramente, o problema não é o número de relações sexuais, e sim a falta de preparo do adolescente para tal, que faz com que ele não se previna adequadamente, expondo-se a doenças sexualmente transmissíveis ou à gravidez. A inadequação entre o mundo conceitual do escritor e o mundo descrito causa estranheza ao receptor do texto.

No plano da expressão, várias são as manifestações da contradição. O fragmento a seguir, retirado do texto 35, manifesta o que Val(1991) chama de contradição léxico-semântica: o significante utilizado pelo produtor do texto não condiz com o significado esperado ou exigido pelo contexto:

AIDS, uma palavra popular e que requer um pouco de medo nas pessoas.

No caso acima, talvez se pudesse recuperar a intenção do autor se fosse corrigida a regência verbal: ao invés de nas, deveria ser usado das. Como saber, no entanto, o que o aluno queria dizer com requer?

 

1.3.4. Meta-regra de relação

Para Charolles (1978), dois fatos são congruentes, vale dizer, mantém relação entre si, quando um é causa, condição ou conseqüência pertinente do outro. Val enfoca esta meta-regra com o nome de articulação, entendendo com isto que ela se refere "à maneira como os fatos e conceitos apresentados no texto se encandeiam"(1991:27). Desta forma, ela analisa a presença e a pertinência das relações e dos fatos apresentados em um texto.

A relação ou articulação manifesta-se tanto no plano lógico-semântico-conceitual como no plano de expressão. No exemplo abaixo, retirado do texto 10, a relação é falha no plano conceitual, pois inclui uma generalização preconceituosa segundo a qual o desemprego é causa determinante da marginalidade:

"...quando você vê um pai de família desempregado e que não tem mais chance de trabalhar, ele sem sombra de dúvida se tornará marginal..."

Analisaremos a aplicação dessas meta-regras pelos alunos na produção de seus textos, considerando sempre o equilíbrio no emprego de ambos os recursos.

 

Índice
A coerência em textos de alunos do ensino médio:
Sobre o trabalho (créditos, introdução, conclusão e bibliografia).
1. Fundamentação Teórica
(A lingüística textual, Coerência e coesão e As meta-regras de coerência)
2. Metodologia de Trabalho
(os temas, o monento histórico, o contexto imediato e os produtores dos textos)
3. Análise dos Dados
3.1 Textos com baixo padrão de coerência
3.2 Textos com bom padrão de coerência
4. Análise Global do Corpus
Anexo - Textos de Alunos

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