Perspectivas futuras

 

 

A Casa de ALV de S. Pedro de Moel é uma microformação museológica com significado local, regional e nacional, embora não esteja inserida em qualquer rede ou política museológica.

Ao nível do concelho, a casa de ALV foi, até fins da década de 90, o único estabelecimento de carácter museológico existente. Localmente, tem uma importância simbólica significativa, mas um papel cultural praticamente nulo. No contexto regional, a casa é referida como ponto de passagem nos roteiros turísticos, enaltecendo-se a personagem do poeta, como símbolo das letras portuguesas. Também por esta razão, a casa tem interesse nacional, pois é a única ligada ao autor[1]. Este mesmo facto é salientado por artistas e intelectuais que o conheceram em vida, como o escultor Joaquim Correia ou o artista plástico Bartolomeu Cid Santos, os quais guardam muitos livros e objectos pessoais de ALV.

Vista na Marinha Grande e em S. Pedro de Moel como um memorial, muitas são as vozes, designadamente de antigos amigos, que se têm levantado para que esta casa seja alvo de um projecto de restauro e aproveitamento cultural.

Apesar do estado de abandono em que se encontra, cremos que, com a recente abertura de museus na região (museu do vidro, museu Joaquim Correia, avizinhando-se o nascimento do museu da floresta), é possível que a casa venha a ser enquadrada numa política museológica concelhia e regional.

É nesse sentido que apresentamos uma ideia-proposta para a sua reabilitação como espaço museológico e para a reconversão de toda a casa, o que passa por uma alteração das funcionalidades.

 

A Casa-Museu

 

A articulação da bi-funcionalidade que a casa alberga, resultou numa secundarização da função museológica, implícita no legado de ALV à entidade pública. A colónia balnear, gesto bondoso de ALV que na época fundamentou o legado e a sua aceitação[2], tem sido a principal função deste estabelecimento, representando um investimento anual da autarquia. Mas, com o passar dos anos, foi porém a casa e a sua ligação ao poeta que vieram assumir importância, e não a colónia balnear. Por outro lado, esta, meio século volvido, possui também uma história, há espólio fotográfico, objectos, marcas da passagem de muitos miúdos. Este património próprio mistura-se com o da casa e o da terra e terá de ser preservado.

Por outro lado, pela importância local que assume a figura de ALV, ligado na “bruma” da memória à própria identidade de S. Pedro de Moel, esta casa assume também a condição de museu da localidade, sendo aí também, como referimos, o único estabelecimento museológico.

A actual categorização de casa-museu fundamenta-se nos critérios a priori  ordinariamente usados para definir este tipo de espaços: um espaço “museu” dedicado a um autor, a um artista, muitas vezes formado com obras produzidas pelo próprio autor, radicado no que foi a sua vivenda ou casa privada durante pelo menos uma época significativa da sua vida, e onde se desfruta do privilégio de “sentir” o ambiente de vida e trabalho da personagem ilustre, ambiente que foi conservado, de forma quase intacta.

Mas esta categorização a priori não atende às particularidades de cada caso. De facto, se a todas subjaz (...) uma relação indissociável entre uma dada memória pessoal que se preserva, homenageia e evoca a partir dos seus aspectos materiais - o património móvel que diz respeito às colecções (objectos/testemunhos) e o património imóvel (edifício na sua totalidade ou apenas numa parte)" (MARTINS M., 1997, p. 108), existem grandes diferenças entre os diversos estabelecimentos. No caso presente, a casa reúne mais funções.

No entanto, torna-se evidente, no conjunto das funções, o protagonismo da casa, com o seu recheio de objectos pertencentes a ALV.

Subscrevemos, portanto, tratar-se de uma casa-museu, embora uma eventual alteração das afectações funcionais, no espaço físico da casa, possa conduzir a uma evolução do conceito, no sentido da sua associação a um centro de estudos e actividades literário-culturais, que mais à frente propomos.

Esse carácter misto poderá assim permanecer, a casa-museu integrando-se de forma dinâmica num conjunto plurifuncional dentro da mesma especialidade monográfica, o que poderá atenuar algumas das desvantagens que as casas-museu normalmente oferecem. Como refere Maria Bolaños, ao contrário dos grandes museus ou dos conjuntos monumentais, a casa-museu obriga a percepção humana a “(...) aceitar a síntese que supõe reunir espaços tão antitéticos como são a casa e o museu”. Além disso “coloca delicados problemas de adequação procedentes da dificuldade de converter um âmbito privado de habitação em lugar público, assim como importantes dificuldades práticas que actuam contra a sociabilidade do lugar, como a exiguidade física, a circulação dos visitantes ou os problemas de infraestrutura”. [BOLAÑOS, 1997, p. 294]. Essas dificuldades são assim compensadas pelo apoio interpretativo do conjunto funcional e a possibilidade de cruzar outros circuitos de visita.

 

Reabilitação e reconversão do espaço

 

No estado actual, a casa-museu em questão é um retrato deplorável do abandono em que se encontra uma grande parte do nosso património intelectual e arquitectónico.

Recorde-se que ALV repartiu o seu tempo, durante muitos anos, entre Lisboa e a casa de S. Pedro de Moel. A casa servia de local de tertúlia e foi centro de reunião de muitos escritores e intelectuais (como, por ex., Reinaldo dos Santos), sendo certa a grande importância que teve no seu trabalho poético. ALV converteu uma modesta casa da costa, embora pitoresca, num foco de uma certa intelligentia portuguesa, sobretudo, lisboeta.

A sua ligação afectiva a esta casa pode ser sentida através das muitas recordações que ainda guarda: painéis de azulejos, objectos, e muitos apontamentos pessoais nas paredes, no jardim... O próprio brasão de família está associado à casa (or piango or canto, com as duas faces de uma vieira) e indicia essa forte ligação de ALV ao espaço.

Nos anos 60, alguns dos seus antigos amigos mais jovens (como Joaquim Correia), tendo fixado residência de férias em S. Pedro de Moel, dinamizaram a casa, organizando espectáculos musicais e sessões de cinema, encontros e discussões, para o que conseguiram apoios privados e municipais. A ideia de ultrapassar a simples casa-museu, pelo menos na sua natureza estática, é, portanto, já antiga.

Impõe-se na actualidade, portanto, uma reavaliação do interesse do património em causa e no papel que lhe cabe no desenvolvimento local, para que se tomem decisões de salvaguarda e valorização.

“A salvaguarda e valorização do património cultural duma comunidade implica que esta reconheça o valor e o interesse do que lhe pertence para a permanência e identidade da sua cultura, ou seja, conheça, interprete e avalie o património à luz dos valores e necessidades a que deu resposta no seu tempo e que exprime (valor de testemunho histórico) e à luz das necessidades e valores actuais da comunidade (valor actual de desenvolvimento).

A primeira avaliação dá-lhe as suas raízes, as bases da sua cultura e a compreensão ‘dos comos e dos porquês’ das respostas às necessidades havidas e das marcas deixadas no seu território (quem fomos). A Segunda avaliação permite-lhe ajuizar da actualidade dos referidos valores e necessidades, ou seja, verificar se lhe fazem falta valores perdidos e necessidades adormecidas e de todos os tempos que o conhecimento do património revela e verificar o seu valor de uso, no sentido amplo (quem somos e quem queremos ser)”[3]

 

Nesta perspectiva, e considerando tratar-se de um conjunto de bens “de interesse relevante para a permanência e identidade da cultura portuguesa”, propomos:

1.    que o imóvel seja alvo de um processo de classificação, ao menos como valor concelhio, à luz da lei de bases 13/85;

2.   que, no seguimento do levantamento arquitectónico elaborado recentemente, o conjunto seja alvo de recuperação, beneficiações e adaptações, em estreita ligação com um programa de reconversão do espaço, o qual deverá todo ele destinar-se às funções museológicas e culturais definidas nesse programa;

3.    na nossa perspectiva, a colónia balnear deverá ser retirada ou separada fisicamente do local, pois não só impede o alargamento do uso das instalações do museu, como não possui, nas actuais instalações e segundo os actuais padrões, condições adequadas a um bom funcionamento, quer em termos de espaço disponível para as várias actividades, quer em termos de higiene. Deverá assim o programa ter em conta a nova morada da colónia balnear, a qual, no entanto, deverá manter a sua ligação à casa, mantendo não só o nome de ALV, como possuir planos de actividades lúdicas e de lazer a decorrerem no espaço da casa durante os meses de Verão;

4.   que o espólio seja re-inventariado, organizado e as peças remarcadas, e que a partir daqui, em função dos novos objectivos museológicos, se defina uma política de incorporação que permita a formação de uma colecção consistente e representativa sobre o autor, recorrendo sobretudo, à família e antigos amigos;

5.    que o espólio seja devidamente observado e estabelecido um plano de restauro de objectos e documentos;

6.    que a exposição passe a ser permanente, respeitando nas antigas áreas a geografia de colocação dos objectos determinada pelo testamento;

7.   que seja efectuada uma reportagem fotográfica de pormenor da exposição actual para perpetuar o conhecimento da disposição dos objectos.

 

No entanto, cremos haver a imperiosa necessidade de efectuar profundas alterações da organização e funcionamento, que justifiquem o investimento a ser feito.

A nossa proposta vai no sentido da criação de um novo modelo programático para o estabelecimento, para que, não desvirtuando o espaço ou a memória de ALV, aquele possa ter um papel mais relevante no plano cultural, contribuindo para o desenvolvimento local e dando a conhecer de forma mais inovadora e dinâmica a vida e obra do autor, bem como dos assuntos e personalidades que estiveram no seu âmbito ou que lhe são concomitantes.

Este modelo consiste, em resumo:

1.    manutenção da casa-museu, com remodelação parcial da exposição, em função das peças que se espera possam vir a incorporar a colecção, e elaboração de catálogo;

2.    criação de uma reserva e de um atelier de conservação e restauro;

3.    criação de um centro de estudos e documentação sobre ALV, com biblioteca, a instalar no   actual pavilhão afecto às camaratas e balneários da colónia de férias –o espólio bibliográfico-documental guardado na parte da casa-museu deverá ser transferido para este local. Este centro deverá recolher toda a bibliografia do autor, associar-se  a outras entidades, como a Fundação C. Gulbenkian, promover e dinamizar trabalhos e realizações com escolas e grupos de professores, promover a pesquisa sobre e divulgar/editar a obra de ALV e de estudos que se realizaram ou realizem sobre o autor;

4.    afectação de uma zona para exposições temporárias, a funcionar entre Abril e Setembro, que acolha não só exposições sobre o autor mas também sobre outros temas ou  trabalhos de artistas plásticos. Este espaço pode ser multi-usos durante o resto do ano;

5.    criação de um auditório, onde seja possível o uso de audio-visuais, a realização de eventos musicais, bem como de conferências e encontros;

6.    implantação de um restaurante na zona do actual refeitório, com esplanada, durante o Verão;

7.    implantação de um espaço comercial, uma boutique do Museu, com venda de materiais impressos e de objectos associados à casa, bem como materiais de promoção turística da localidade.

 

Este projecto, independentemente da figura jurídico-admnistrativa que possa ter, integra-se obviamente na Planeamento Local, tendo em vista a capitalização de valias culturais e sociais à vila, tomando em consideração as suas memórias e tradições, fazendo reviver aspectos do seu passado que lhe continuam a pertencer mas que cairam no esquecimento. ALV criou, por exemplo, a tradição das tertúlias, espírito que poderá ser mantido e desenvolvido num espaço aberto ao encontro e ao conhecimento. Antes de mais, trata-se de devolver o espaço à população, a qual, praticamente, dele nada usufrui, e torná-lo um centro revivificador desse património, que se assume por vezes como epicentro, símbolo ou "local mítico" de fundação da comunidade. Fruir e usufruir deste património são, portanto, direitos associados ao desenvolvimento e à cidadania.



[1] Embora existam ainda a casa de família, em Cortes (Leiria) e a de Lisboa, esta abandonada, a de S. Pedro é a única com possibilidades de evocar o autor na perspectiva das casas-museu.

[2] Refira-se a crónica dificuldade das entidades públicas em aceitar legados para cuja gestão não estão preparadas, representando muitas vezes um fardo económico dispensável.

[3] Pereira, Luz Valente Arqª, «Património arquitectónico urbano e desenvolvimento», Mestrado de Museologia e Património, seminário Desenvolvimento e Património Cultural, 1994.

 

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