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A fantástica construção do nordestino
Seu Lunga Concluir subentende chegar a um ponto definido, acabar um percurso através do qual muitas questões foram levantadas, e nesse ponto essas questões precisam de respostas. Mas a verdade é que, ao perceber a necessidade de se concluir, é que se percebe que não é possível chegar a uma definição precisa, e não só isso, mas que perguntas ainda mais difíceis se levantam. Vou procurar então traçar os caminhos pelos quais percorri nesse projeto, tentando identificar a que conclusões pude chegar e quais outras não consegui. Em um primeiro momento, esteve em voga o processo de construção da identidade social, que é dotado de vários mecanismos ou estratégias. Os objetivos dessa construção são: 1. legitimar aquilo que se busca identificar; 2. dispor de um conjunto de imagens que remetam ao objeto por elas identificadas, podendo ser agenciadas em nome desse objeto; 3. delimitar os espaços de atuação - poder, através da diferenciação nós x eles. É em função desses objetivos que esses mecanismos vão trabalhar. Um desses mecanismos estudados neste trabalho é o imaginário, que é usado por permitir a abstração da realidade, que nem sempre é conveniente ao processo de legitimação identitária. Por isso que o termo mais bem empregado é construção, uma vez que a palavra traz a idéia de criação, junção de elementos diferentes que formarão um todo uno e diverso, como numa casa, que é única, mas é dividida em vários compartimentos com finalidades e funções diferentes. No processo de construção do Nordeste o imaginário dá vazão à construção de um texto bem elaborado que freqüentemente chega a ser fantástico, uma dizibilidade que muitas vezes não pode ser comprovada pela visibilidade, como nos mostra a experiência da jornalista Chiquinha Rodrigues. Outro elemento usado nesse processo é a estereotipização. A rotulação estereotípica faz com que as imagens identitárias sejam facilmente identificadas e agenciadas. Na construção nordestina, verifica-se o uso desse elemento no que se diz ser tipicamente nordestino. Comidas, roupas, símbolos, até o jeito de falar, são construções estereotipizadas facilmente associadas ao Nordeste. Na construção de seu Lunga os elementos imaginário e estereótipo se unem ao humor para formar a identidade de uma das personagens do anedotário cearense. Homem de verdade, seu Lunga entrou para a cultura do Ceará como figura imaginária, em seguida mitologizada pela mídia. A construção de uma identidade é uma condição para a própria existência do que se identifica. Nada existe se não tem um nome e características. Para o homem só existe aquilo que ele conhece e pode classificar. Enquanto ele não pode reconhecer, todo seu trabalho será para torná-lo conhecido e reconhecível, encaixando-se em alguma classificação pré-existente. A identidade do Nordeste é fundamental para seu reconhecimento enquanto região brasileira. E a construção vai além, ela procura classificar a região como berço do povo brasileiro, e como mantenedora de uma realidade originalmente brasileira, perdida pelo Sul. Aliás, essa construção baseia-se também na oposição ao Sul. O Nordeste é o que o Sul não é, e vice versa, que é justamente o jogo de poder que desenha limites a ação, já mencionado. De que maneira se dá o processo de construção da identidade social? Através da produção cultural - literatura, música, artes plásticas, jornalismo, ciência etc., e também através do agenciamento das imagens construídas, pelo próprio povo. O texto Nordeste foi construído e agenciado por José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Luiz Gonzaga, Gilberto Freyre, Marcus Accioly, Maura Penna, seu Lunga e tantos outros famosos e anônimos, artistas, profissionais liberais, operários, gente do povo, gente que nem sequer tinha a intenção de criar nada, mas ao utilizar essas imagens está ao mesmo tempo legitimando-a e construindo-a. Da mesma forma, seu Lunga foi uma personagem construída pelos cordéis, pelos artigos jornalísticos, pelo povo que conta suas estórias. A Revista Entrevista também incrementa essa construção, que se inicia desde o processo de escolha do entrevistado, em que todos os elementos utilizados nesse "texto" são trazidos à tona e agenciados pelos alunos da disciplina, na justificativa da escolha e até mesmo no fato de esse nome ter sido sugerido, tão somente por causa da mitologização de seu Lunga. A questão da construção da identidade provoca perguntas interessantes e de difícil resposta. A necessidade de construção de uma identidade justifica seus mecanismos? Como diz seu Lunga: "Porque não diz o que eu sou? Se dissesse o que eu sou..." (Entrevista, p. 9) Por que a dizibilidade se cristaliza de forma tal que não se quebra nem mesmo com a verificação de que a visibilidade não lhe é correspondente? De onde vem tal poder que mitologiza imagens inventadas? Seu Lunga é homem, comerciante, pai, marido, nordestino, cearense, personagem, mito. Essa lista não encerra todas as facetas da identidade Lunga, mas revela sua multiplicidade e dinamicidade. Essa(s) identidade(s) é (são) resultado de um discurso hegemônico sobre a figura de Seu Lunga. Isso levará à construção de algumas marcas que lhe são impostas e que são tomadas como irrefutáveis pelos outros, ainda que o próprio Lunga as abomine. O que é interessante notar é que os mesmos critérios de dizibilidade construídos se aplicam ao seu Lunga como são aplicados ao Nordeste. Seu Lunga já não cabe mais em si, ele já não é mais o resultado das suas peculiaridades, mas a soma das elaborações dos outros. Daí se poder dizer que há modalidades de seu Lunga: ele por ele mesmo e a representação social que se faz dele. Em jogo, uma série de discursos e de narrativas, todas em processo semiótico, cujas significações se vão multiplicando. Qualquer tentativa de definir exaustivamente a identidade desse homem será frustrada, pois essa construção será sempre relativa e restritiva a aspectos escolhidos por aquele que constrói essa identidade, e um olhar diferente pode trazer à tona novos aspectos sob os quais seria possível uma nova formação identitária. Assim, Arilo Luna tem sua própria versão - seu Lunga possui, na verdade, uma "maneira simples e linear de encarar o mundo." (LUNA, p. 212) Já Abraão Batista acha mesmo que seu Lunga tem "um juízo elevado/ uma cuca inteligente/ de pensamento aprumado(...)" (1998, v. 1, p. 3) Raimundo Madeira, no texto de abertura da entrevista de seu Lunga assim o define:
Depois de tantas opiniões, falta a minha própria. Acho que ela seria a reposta à pergunta que tantas vezes me foi feita quando mencionava o objeto de minha monografia: E então, seu Lunga é grosso mesmo? Um episódio interessante aconteceu quando da minha última visita a Juazeiro. Enquanto conversava com seu Lunga, na calçada de sua loja de sucatas, aproximou-se Maurício Kubrusli, repórter da Rede Globo acompanhado de seu cinegrafista, que naturalmente trazia sua câmara a postos. Ao perceber a câmara, seu Lunga interrompeu a conversa e empurrou-a com a mão. As explicações de que a câmara estava desligada foram em vão. Seu Lunga voltou à argumentação interrompida pela chegada dos estranhos, mas logo depois acabou a conversa por causa da insistência do cinegrafista em manter a câmara apontada em sua direção. Depois de pensar um pouco, entrei na loja, para onde seu Lunga já havia entrado, sob pretexto de atender a um cliente que havia chegado, a fim de lhe entregar um exemplar de Entrevista, que continha sua entrevista. Mesmo antes de eu falar qualquer coisa veio a pergunta: "Eu não já atendi você, menina?" A pergunta inesperada inibiu-me, mas serviu para mostrar que o homem seu Lunga repudia a construção da personagem seu Lunga, mas muitas vezes ele se utiliza dela. Foi vestido dessa construção que ele recusou a revista que lhe ofereci com uma grosseria sem razão (afinal de contas, a construção de seu Lunga diz que ele se zanga com "perguntas idiotas"), e foi também envolvido por ela que Lunga se envolveu na política. Ele sabe também do prestígio trazido por essa mitologização feita em torno de sua pessoa, e é por isso que ele faz uso dela. Prova disso está também expressa numa contradição dele, no início da entrevista. Ao ser perguntado sobre se seu apelido o aborrecia (logo depois de perguntar sua origem), ele disse que apelido aborrece, porque "tudo deve ser real." (Entrevista, p. 4) Sua argumentação vai ainda mais longe: "Eu não acredito que apelido é uma safadeza da mãe de família ou do pai de família. Não se deve botar apelido nos seus filhos." (p. 4) Ora, se seu Lunga é tão contrário a que se chame as pessoas pelo apelido, a concessão para si mesmo abre espaço para a evocação do mito, a cada vez que alguém lhe chama. Sua oposição, entretanto é sempre dura:
Seu Lunga assume então um jogo de ambigüidades, onde seu discurso mostra a oposição do homem em relação à personagem, mas nessa oposição ele acaba agenciando, ou fazendo uso dessa construção. Assim, as imagens que temos de seu Lunga são construções provenientes principalmente do imaginário, mas o agenciamento dessa construção é feita não só pelos de fora, mas pelo próprio seu Lunga. Em outras palavras, seu Lunga não é o que dizem sobre ele, a dizibilidade de sua identidade é uma construção que não tem que necessariamente ter uma relação com a realidade. Entretanto, seu Lunga muitas vezes toma posse dessa construção, e num jogo dúbio, utiliza-se dela ao mesmo tempo que a repudia.
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