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A fantástica construção do nordestino Seu Lunga
5 Conclusão

de: Ester Lindoso

Concluir subentende chegar a um ponto definido, acabar um percurso através do qual muitas questões foram levantadas, e nesse ponto essas questões precisam de respostas. Mas a verdade é que, ao perceber a necessidade de se concluir, é que se percebe que não é possível chegar a uma definição precisa, e não só isso, mas que perguntas ainda mais difíceis se levantam. Vou procurar então traçar os caminhos pelos quais percorri nesse projeto, tentando identificar a que conclusões pude chegar e quais outras não consegui.

Em um primeiro momento, esteve em voga o processo de construção da identidade social, que é dotado de vários mecanismos ou estratégias. Os objetivos dessa construção são: 1. legitimar aquilo que se busca identificar; 2. dispor de um conjunto de imagens que remetam ao objeto por elas identificadas, podendo ser agenciadas em nome desse objeto; 3. delimitar os espaços de atuação - poder, através da diferenciação nós x eles. É em função desses objetivos que esses mecanismos vão trabalhar.

Um desses mecanismos estudados neste trabalho é o imaginário, que é usado por permitir a abstração da realidade, que nem sempre é conveniente ao processo de legitimação identitária. Por isso que o termo mais bem empregado é construção, uma vez que a palavra traz a idéia de criação, junção de elementos diferentes que formarão um todo uno e diverso, como numa casa, que é única, mas é dividida em vários compartimentos com finalidades e funções diferentes.

No processo de construção do Nordeste o imaginário dá vazão à construção de um texto bem elaborado que freqüentemente chega a ser fantástico, uma dizibilidade que muitas vezes não pode ser comprovada pela visibilidade, como nos mostra a experiência da jornalista Chiquinha Rodrigues.

Outro elemento usado nesse processo é a estereotipização. A rotulação estereotípica faz com que as imagens identitárias sejam facilmente identificadas e agenciadas. Na construção nordestina, verifica-se o uso desse elemento no que se diz ser tipicamente nordestino. Comidas, roupas, símbolos, até o jeito de falar, são construções estereotipizadas facilmente associadas ao Nordeste.

Na construção de seu Lunga os elementos imaginário e estereótipo se unem ao humor para formar a identidade de uma das personagens do anedotário cearense. Homem de verdade, seu Lunga entrou para a cultura do Ceará como figura imaginária, em seguida mitologizada pela mídia.

A construção de uma identidade é uma condição para a própria existência do que se identifica. Nada existe se não tem um nome e características. Para o homem só existe aquilo que ele conhece e pode classificar. Enquanto ele não pode reconhecer, todo seu trabalho será para torná-lo conhecido e reconhecível, encaixando-se em alguma classificação pré-existente. A identidade do Nordeste é fundamental para seu reconhecimento enquanto região brasileira. E a construção vai além, ela procura classificar a região como berço do povo brasileiro, e como mantenedora de uma realidade originalmente brasileira, perdida pelo Sul. Aliás, essa construção baseia-se também na oposição ao Sul. O Nordeste é o que o Sul não é, e vice versa, que é justamente o jogo de poder que desenha limites a ação, já mencionado.

De que maneira se dá o processo de construção da identidade social? Através da produção cultural - literatura, música, artes plásticas, jornalismo, ciência etc., e também através do agenciamento das imagens construídas, pelo próprio povo.

O texto Nordeste foi construído e agenciado por José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Luiz Gonzaga, Gilberto Freyre, Marcus Accioly, Maura Penna, seu Lunga e tantos outros famosos e anônimos, artistas, profissionais liberais, operários, gente do povo, gente que nem sequer tinha a intenção de criar nada, mas ao utilizar essas imagens está ao mesmo tempo legitimando-a e construindo-a.

Da mesma forma, seu Lunga foi uma personagem construída pelos cordéis, pelos artigos jornalísticos, pelo povo que conta suas estórias. A Revista Entrevista também incrementa essa construção, que se inicia desde o processo de escolha do entrevistado, em que todos os elementos utilizados nesse "texto" são trazidos à tona e agenciados pelos alunos da disciplina, na justificativa da escolha e até mesmo no fato de esse nome ter sido sugerido, tão somente por causa da mitologização de seu Lunga.

A questão da construção da identidade provoca perguntas interessantes e de difícil resposta. A necessidade de construção de uma identidade justifica seus mecanismos? Como diz seu Lunga: "Porque não diz o que eu sou? Se dissesse o que eu sou..." (Entrevista, p. 9) Por que a dizibilidade se cristaliza de forma tal que não se quebra nem mesmo com a verificação de que a visibilidade não lhe é correspondente? De onde vem tal poder que mitologiza imagens inventadas?

Seu Lunga é homem, comerciante, pai, marido, nordestino, cearense, personagem, mito. Essa lista não encerra todas as facetas da identidade Lunga, mas revela sua multiplicidade e dinamicidade. Essa(s) identidade(s) é (são) resultado de um discurso hegemônico sobre a figura de Seu Lunga. Isso levará à construção de algumas marcas que lhe são impostas e que são tomadas como irrefutáveis pelos outros, ainda que o próprio Lunga as abomine. O que é interessante notar é que os mesmos critérios de dizibilidade construídos se aplicam ao seu Lunga como são aplicados ao Nordeste. Seu Lunga já não cabe mais em si, ele já não é mais o resultado das suas peculiaridades, mas a soma das elaborações dos outros. Daí se poder dizer que há modalidades de seu Lunga: ele por ele mesmo e a representação social que se faz dele. Em jogo, uma série de discursos e de narrativas, todas em processo semiótico, cujas significações se vão multiplicando.

Qualquer tentativa de definir exaustivamente a identidade desse homem será frustrada, pois essa construção será sempre relativa e restritiva a aspectos escolhidos por aquele que constrói essa identidade, e um olhar diferente pode trazer à tona novos aspectos sob os quais seria possível uma nova formação identitária. Assim, Arilo Luna tem sua própria versão - seu Lunga possui, na verdade, uma "maneira simples e linear de encarar o mundo." (LUNA, p. 212) Já Abraão Batista acha mesmo que seu Lunga tem "um juízo elevado/ uma cuca inteligente/ de pensamento aprumado(...)" (1998, v. 1, p. 3) Raimundo Madeira, no texto de abertura da entrevista de seu Lunga assim o define:

"O personagem real que reúne elementos do personagem que já é mito; a figura humana que fiará imortalizada na figura lendária; a complexidade de um homem simplificada no folclore regional; a realidade que reinará para as posteridades como fantasia; o coadjuvante de um mundo real onde vive como protagonista de um mundo imaginário." (Entrevista, p. 3)

Depois de tantas opiniões, falta a minha própria. Acho que ela seria a reposta à pergunta que tantas vezes me foi feita quando mencionava o objeto de minha monografia: E então, seu Lunga é grosso mesmo?

Um episódio interessante aconteceu quando da minha última visita a Juazeiro. Enquanto conversava com seu Lunga, na calçada de sua loja de sucatas, aproximou-se Maurício Kubrusli, repórter da Rede Globo acompanhado de seu cinegrafista, que naturalmente trazia sua câmara a postos. Ao perceber a câmara, seu Lunga interrompeu a conversa e empurrou-a com a mão. As explicações de que a câmara estava desligada foram em vão. Seu Lunga voltou à argumentação interrompida pela chegada dos estranhos, mas logo depois acabou a conversa por causa da insistência do cinegrafista em manter a câmara apontada em sua direção. Depois de pensar um pouco, entrei na loja, para onde seu Lunga já havia entrado, sob pretexto de atender a um cliente que havia chegado, a fim de lhe entregar um exemplar de Entrevista, que continha sua entrevista. Mesmo antes de eu falar qualquer coisa veio a pergunta: "Eu não já atendi você, menina?"

A pergunta inesperada inibiu-me, mas serviu para mostrar que o homem seu Lunga repudia a construção da personagem seu Lunga, mas muitas vezes ele se utiliza dela. Foi vestido dessa construção que ele recusou a revista que lhe ofereci com uma grosseria sem razão (afinal de contas, a construção de seu Lunga diz que ele se zanga com "perguntas idiotas"), e foi também envolvido por ela que Lunga se envolveu na política. Ele sabe também do prestígio trazido por essa mitologização feita em torno de sua pessoa, e é por isso que ele faz uso dela. Prova disso está também expressa numa contradição dele, no início da entrevista. Ao ser perguntado sobre se seu apelido o aborrecia (logo depois de perguntar sua origem), ele disse que apelido aborrece, porque "tudo deve ser real." (Entrevista, p. 4) Sua argumentação vai ainda mais longe: "Eu não acredito que apelido é uma safadeza da mãe de família ou do pai de família. Não se deve botar apelido nos seus filhos." (p. 4) Ora, se seu Lunga é tão contrário a que se chame as pessoas pelo apelido, a concessão para si mesmo abre espaço para a evocação do mito, a cada vez que alguém lhe chama. Sua oposição, entretanto é sempre dura:

Entrevista - Seu Lunga, essa imagem que se criou do senhor atrapalha em alguma coisa a sua vida?

Seu Lunga - Atrapalha! Atrapalha! Porque vocês estão me atrapalhando, né? (risos prolongados) Olhe, vocês tão me atrapalhando porque eu tava fazendo um serviço lá dentro, vocês vêm aqui conversar bobagem, isso, aquilo, lá vai; fazer pergunta imbecil, pergunta besta. Então, atrapalha. Olhe, com licença! (fala de forma mais brusca) De um dia desses pra cá já veio um bocado de repórter... Tem até um senhor ali que veio, fez uma reportagem aqui comigo. Ai lá vai outro menino que queria fazer. Amanhã já tem outro, isso, aquilo... Eu não tenho tempo pra isso. Outra: eu não ganho nada com isso; outra: e cada vez mais, viu, passa um cara aqui e fica me gozando. É chato isso. E outra: se dissesse o que eu sou, tá bom. Eu não acharia ruim. (Entrevista, p. 9)

Seu Lunga assume então um jogo de ambigüidades, onde seu discurso mostra a oposição do homem em relação à personagem, mas nessa oposição ele acaba agenciando, ou fazendo uso dessa construção. Assim, as imagens que temos de seu Lunga são construções provenientes principalmente do imaginário, mas o agenciamento dessa construção é feita não só pelos de fora, mas pelo próprio seu Lunga.

Em outras palavras, seu Lunga não é o que dizem sobre ele, a dizibilidade de sua identidade é uma construção que não tem que necessariamente ter uma relação com a realidade. Entretanto, seu Lunga muitas vezes toma posse dessa construção, e num jogo dúbio, utiliza-se dela ao mesmo tempo que a repudia.

 

Índice

0 Sobre o trabalho (créditos e bibliografia)
1 Introdução
2 Nordeste: a construção fantástica
2.1 O sujeito nordestino
3 Identidade Nordestina: de imaginário, estereótipos e humor
4 Seu Lunga ( Juazeiro; o homem seu Lunga; a personagem seu Lunga)
4.4 O nordestino seu Lunga ( 4.5 Seu Lunga por ele mesmo; 4.6 Seu Lunga pelos outros; 4.7 A revista Entrevista; 4.8 Os cordéis)
5 Conclusão

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