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A fantástica construção do nordestino Seu Lunga
2.1 O sujeito nordestino

de: Ester Lindoso

"Sou sertanejo e me orgulho / Por conhecer o sertão/
Durmo na rede e me embrulho / Com um lençol de algodão/
De alpercata de rabicho / Penetro no carrapicho /
Sofrendo a vida penosa / Do trabalho do roçado /
E por isso sou chamado / Poeta de mão calosa."
(Patativa do Assaré)

Laplantine (1997) em seu livro O que é Imaginário, fala sobre o fantástico real da América Latina: "... existem (particularmente na América Latina, e talvez entre as sociedades da América Latina e do Brasil) problemas de fronteira e uma confusão de limites não somente entre o maravilhoso e o fantástico, mas entre o real e o imaginário." (p.58) O autor propõe uma explicação em sua teoria para a constatação de que "a própria realidade da Ámerica Latina parece às vezes ultrapassar a ficção se apresentando como insólita e incrível." (p.58) Foi influenciada por essa teoria que nomeei este capítulo: Nordeste: a construção fantástica. O texto Nordeste não tem nada de convencional. Suas figuras visuais e discursivas às vezes são tão caricaturais, tudo parece ser tão extremo, que sua relação com o real é tênue. Por ser uma construção simbólica, a abstração é possível, e daí o surgimento dessa realidade outra, fantástica.

No contexto dessa criação fantasiosa, surgem os tipos nordestinos, personagens que, assim como as comidas, a música ou as imagens mentais do Nordeste, são tidos como típicos nordestinos. Este trabalho concentra-se em um desses tipos: seu Lunga. Esse é um exemplo claro da imaginação em ação: é difícil saber quem realmente é seu Lunga, ou mesmo se ele existe. Suas estórias são tão fantásticas, que sua relação com o real é quase inexistente.

Marcus Accioly (1986) em seu livro de poesias Nordestinados dá os contornos de um típico homem nordestino que foi construído, o sertanejo:

O sertanejo é o tipo/ Comum da região/ Nativo como as plantas/
E os bichos do Sertão./ Possui aquele traço/ Tão característico/
Do cansaço da terra,/ Dos homens e dos bichos./
Se pára, olhando para o tempo,/ Por muito não se arreda,/
Pois sofre uma preguiça/ Imóvel como as pedras./
Mas frente ao imprevisto/ Rapidamente troca/ O aspecto de quem/
Só sabe estar de cócoras;/ E a compleição das formas/
Que vestem o conteúdo/ Do homem, para Euclydes,/
Um forte, antes de tudo. (p.29)

É interessante notar como Acciolly agencia uma construção feita por Euclydes da Cunha na composição do seu "típico." Em todo o livro, o autor versa sobre assuntos comumente associados ao Nordeste, marcas identitárias a ele relacionadas tais como suas aves, seus limites geográficos (litoral, a mata seca, a mata úmida etc.), seus tipos, sua vegetação e sua cultura.

O texto Nordeste é cheio de tipos: o cangaceiro, o coronel, o jagunço, o beato, o sertanejo, o vaqueiro, a rendeira, a baiana, o pescador... Esses são o que eu chamo de tipos genéricos de nordestinos. Não há concentração em uma pessoa específica mas em um grupo representativo das pessoas nordestinas. Mas a cultura incorporou da história várias pessoas comuns, que assim como seu Lunga, superaram a realidade para tornar-se lenda. A tese de monografia de Gerusa Lima (1999), A molecagem cearense no repertório do humorista Falcão, está cheia desses homens e mulheres que "eram loucos, espertalhões, pessoas cheias de manias e trejeitos, que chamavam a atenção dos habitantes da cidade," (p. 45) a quem denomino tipos específicos. Accioly (1986) versa sobre um desses tipos, o cego Quintão, e mostra como pessoas da vida real são transpostas para um mundo fantasioso:

"(...)Cego Quintão , me despeço/ Da sua prosa e agradeço,
Pois tenho sempre vivido/ Melhor do que a Deus mereço."
E assim, lá no fim do mundo,/ Ouvi a conversa inteira
De um cego que se fez guia/ Da minha própria cegueira.
Bem merecida é a fama/ Do velho cego Quintão,
Que se espalhou, criou nome,/ No Alto e Baixo Sertão.
Por isso ninguém duvide/ Que cego Quintão, Senhores,
Acabe virando lenda/ Na boca dos cantadores." (p. 124)

Como cego Quintão, a história do Ceará traz outros tantos, como se vê:

"Entre os que mais despertavam a atenção do povo cearense estava Manezinho do Bispo(...) Ele servia como porteiro do Palácio Episcopal e já chamava atenção pela sua própria aparência. (...) era raquítico, amarelo e risonho. (...)

Como Manezinho do Bispo, Zé Levi também era outro tipo que acreditava ser dotado de muita sabedoria. Gostava de pronunciar discursos tolos, fosse porque motivo fosse. (...)

Outra importante figura, tipo comum, (...), é o Chagas dos Carneiros. Este homem era muito magro e muito alto, era cego, vestia um camisolão de algodão branco e ceroulas do mesmo pano..." (LIMA, 1999, pp. 46,47)

Enquanto os tipos específicos são pessoas que realmente existiram e que foram "mitificadas," para usar uma expressão de Durval de Albuquerque, os tipos genéricos são generalizações a partir de pessoas reais, que tentam responder à pergunta "quem é o típico nordestino?" A construção desses tipos está presente nas artes plásticas, na música, mas principalmente na literatura. Como é o sertanejo? Junte-se à descrição de Marcus Accioly

(1986) já citada, o sertanejo Fabiano, personagem de Graciliano Ramos (1997) em Vidas Secas, e o resultado é um homem inferior, tão característico daquela região quanto os bichos, e muitas vezes tendo até mesmo ações animalescas, fragilizado pelas adversidades de seu meio, forte por sua própria natureza.

Já o coronel é tipificado pelo Paulo Honório de São Bernardo, também de autoria de Graciliano Ramos (1980), homem determinado, forte e inteligente, que luta as mais duras batalhas para chegar aonde quer.

Esses são alguns dos muitos tipos representados e construídos na literatura. Outros tantos habitam as páginas dos livros de Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto etc. O que realmente interessa para o propósito deste trabalho, é que todas essas características não são marcas dadas, são, antes, marcas construídas, que são agenciadas como dadas.

A dinâmica que rege esse agenciamento de marcas de uma suposta nordestinidade daria uma tese inteira e eu não descarto a possibilidade de um dia me debruçar sobre isso. No entanto, para efeito deste trabalho, me preocupei em situar essa dizibilidade e visibilidade nordestinas no âmbito de uma figura controversa como é a figura de Seu Lunga. Minha preocupação é encontrar marcas dessas representações na construção imaginária do seu Lunga, enfocando seu discurso, as narrativas que lhe dão destaque e as reelaborações imagéticas feitas e orquestradas pelo olhar do outro.

 

Índice

0 Sobre o trabalho (créditos e bibliografia)
1 Introdução
2 Nordeste: a construção fantástica
2.1 O sujeito nordestino
3 Identidade Nordestina: de imaginário, estereótipos e humor
4 Seu Lunga ( Juazeiro; o homem seu Lunga; a personagem seu Lunga)
4.4 O nordestino seu Lunga ( 4.5 Seu Lunga por ele mesmo; 4.6 Seu Lunga pelos outros; 4.7 A revista Entrevista; 4.8 Os cordéis)
5 Conclusão

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