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A fantástica construção do nordestino Seu Lunga
4 Seu Lunga (continuação)

de: Ester Lindoso

4.5 Seu Lunga por ele mesmo

A personagem seu Lunga não é, como já disse, um assunto agradável ao homem seu Lunga, fazendo aqui uso das múltiplas facetas da identidade de Lunga. Ao ser interrogado sobre si mesmo, ele se aborrece e diz que não precisa falar sobre quem ele é, pois sabe disso muito bem. Além do mais, acha que para conhecer alguém, é preciso que se coma "uma saca de sal" junto com ela.

Mas o discurso de Lunga acaba por revelar os pensamentos que tem a respeito de si mesmo: um homem rígido, que não admite colocações mal postas, e que se julga injustiçado pela fama de ignorante, quando na verdade quem fala errado são os outros. "Porque eu quero que seja certo, então eu sou ignorante. Os sábios, os sabidos são vocês que falam errado. Chega, diz uma bobagem e é quem é certo." (Entrevista, p. 6)

Sua rigidez o faz não somente repugnar perguntas idiotas, mas também impor rígidos limites para si mesmo. Não é capaz de identificar uma situação na vida que lhe tenha feito chorar, pois acha "que homem não anda chorando por besteira. Homem," completa, "é para o que der e vier." (Entrevista, p.7) A única coisa que lhe abalou foi a notícia de que o telhado da casa do pai havia desabado depois de uma chuva forte, pelo medo de terem morrido seus parentes.

Ele não consegue entender o por quê de tantas pessoas terem se interessado por ele, e se sente até incomodado com tanto assédio. E é também no fato de não haver motivos suficientes para tornar o homem em mito que este trabalho se baseia, pois na composição da personagem seu Lunga, até as razões que o tornaram tão hilariantes são parte dessa teia construída. Ou seja, no processo de construção cultural, tanto a escolha do objeto como as razões para ela são também construções. As construções bem sucedidas, i.e., as que são legitimadas e aceitas, são mitificadas, e o assédio a seu Lunga, na verdade é ao personagem ou ao mito, e não ao homem.

 

4.6 Seu Lunga pelos outros

Ao falar de seu Lunga pelos outros, referimo-nos tanto à construção de sua imagem, como ao agenciamento dessa imagem pelos de fora. Em outras palavras, seria a idéia que a menção do nome Lunga traz à mente de qualquer pessoa, como uma dizibilidade ou visibilidade dessa personagem.

O "texto" seu Lunga é construído e agenciado nos cordéis, nas matérias jornalísticas, nas conversas em que suas estórias são contadas como anedotas, enfim, esse texto é ao mesmo tempo construído e tomado como dado, como pronto. O que está escrito então, nesse texto, que imagens compõem seu Lunga?

Em primeiro lugar, os símbolos ligados a seu Lunga, são aqueles estereótipos sobre ele construídos: um homem grosseiro, que não tolera provocações ou "burrices" de seus interlocutores. O estereótipo da grosseria foi o elemento humorístico caricaturizado, ou seja, aumentado ao extremo, para tornar a personagem engraçada. O processo de caricaturização abre as portas para o imaginário extrair os fatos da realidade e a eles se sobrepor. E assim se constrói a identidade da personagem seu Lunga pelos e para os outros, até que ela se mitologiza, como fala Albuquerque (1999), tornando-se parte do mundo fantástico das construções culturais. Não é à toa que muitas pessoas se espantavam quando sabiam de nossa entrevista com seu Lunga: "E ele existe mesmo?"

A partir de agora, passaremos a analisar a Revista Entrevista e os cordéis de Abraão Batista, em busca desses elementos que construíram e constróem seu Lunga, e também do agenciamento deles.

 

4.7 A revista Entrevista

Em um primeiro momento, convém explicar a revista, já que foi ela que deu o pontapé inicial deste trabalho, e é baseada também nela que extrairemos os elementos que nos fizeram chegar às conclusões neste trabalho apresentadas.

Entrevista é um projeto do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, quando os alunos do sexto semestre fazem a disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso. Idealizada pelo professor Ronaldo Salgado, a revista tem como objetivo trazer à tona a discussão do mecanismo jornalístico que é a entrevista não apenas como uma produção técnica, mas como uma ação com "viés humanizador," para usar as palavras de Ronaldo.

Desde o processo de seleção dos entrevistados, que, na edição aqui estudada foram quatro, alguns elementos importantes da construção de seu Lunga se verificam. Os alunos propuseram buscar uma linha mais popular cearense. Dos vários nomes sugeridos dois se encaixam nesse perfil: seu Lunga e Irapuan Lima.

A entrevista de seu Lunga foi um desafio desde o início, já que todos teríamos que nos deslocar até Juazeiro do Norte para realizá-la. Mas o maior desafio não era esse: as expectativas estavam mais voltadas para se seu Lunga aceitaria ou não ser entrevistado por nós, afinal de contas, todos sabíamos (ou tomávamos como certo) que seu Lunga é tão ignorante, que só faz as coisas de que tem vontade. Temíamos que a proposta excedesse o nível de tolerância desse homem intolerante.

As imagens agenciadas a respeito de seu Lunga não se dissiparam durante a viagem a Juazeiro. A recepção na cidade caririense não foi muito boa. As reservas que tínhamos no hotel tiveram que ser transferidas, na primeira noite, para um motel, pois os quartos que usaríamos estavam ocupados. Depois do primeiro imprevisto, o segundo: seu Lunga não tinha sido muito simpático com o professor, quando ele foi até sua loja lembrar-lhe da entrevista. Ou será que isso já era previsível?

As expectativas aumentaram ao chegarmos à rua Santa Luzia, onde fica sua loja de sucata. Dividimos espaço com velharias de todo tipo, além dos cocos que seu Lunga traz de sua chácara para vender ali, e que se espalhavam pelo chão. Lunga deixou os afazeres lá por dentro e veio nos atender. Um balcão entre a equipe e o entrevistado parecia uma segura distância, depois do desencorajamento que recebemos dos vizinhos comerciantes de seu Lunga: "Ih, já vão mexer com seu Lunga..."

Até então, estávamos armados com todo o conhecimento que tínhamos adquirido da personagem e do homem construído pelos outros. Sem essa construção, certamente não estaríamos lá, pois seu Lunga não passaria de mais um comerciante "esquentado."

A entrevista começa com uma tentativa de apaziguar possíveis zangas do homem mais zangado do mundo: "O senhor prefere ser chamado de Seu Lunga ou do seu nome mesmo: Joaquim?" (Entrevista, p. 4) A partir daí vem uma tentativa de descobrir o seu Lunga por ele mesmo, as estórias contadas por ele mesmo e não pelo outro.

Mas não é possível negar que cada um de nós que entrevistávamos seu Lunga, buscávamos, como a jornalista Chiquinha Rodrigues em sua viagem ao Nordeste, algo que comprovasse o texto que tínhamos em mente. Assim como a articulista de O Estado de São Paulo procurava uma página de Euclides da Cunha nos lugares por onde passava, nós buscávamos uma página do cordel em seu Lunga. A provocação veio na pergunta se ele lia os cordéis que se vêem no Juazeiro do Norte. Ele disse que lia pouco porque não tinha tempo e mencionou que queria processar "aquele rapaz do cordel." (p.5) "Que rapaz?," continuamos, na espera de que ali estaria o que mais gostaríamos de ouvir naquela entrevista. "Esse que fez esses cordéis. Eu não dei autorização a ele." O agenciamento da imagem construída do seu Lunga se torna claro na ventilação da página 5 escolhida pelos alunos responsáveis pela produção (entre os quais eu também), extraída da resposta que ele deu à pergunta que fizemos sobre o que ele achava do que falavam a respeito dele: "Eu acho que tudo o que você for fazer, pense. Se você vai falar para mim, pense. Diga uma coisa com base, com lógica. (...) Quase todo mundo, professor, doutor... (...) fala errado." Administra-se aqui a dizibilidade de seu Lunga, de homem intolerante à colocações mal feitas, construída pelos cordéis e pela mídia, rebocada a cada vez que se conta uma piada sobre ele, e pintada por todos.

O agenciamento desse texto é confirmado ainda na ventilação da página seguinte, onde não é mostrada simplesmente a justificativa para, mas a própria demonstração da intolerância do zangado Lunga: "Porque eu quero que seja certo, então eu sou ignorante. Os sábios, os sabidos são vocês que falam errado. Chega, diz uma bobagem e é quem é certo." (Entrevista, p. 6)

A busca da personagem seu Lunga também é entrecortada pela busca do homem seu Lunga, e é expressa nas perguntas que remetem à sua infância, juventude, casamento, família, trabalho etc. Toda a equipe ficou surpresa, por exemplo, quando o velho sucateiro recitava versinhos decorados, alguns deles dirigidos às estudantes. Surpreendeu-se também com seu senso de humor ao brincar com sua idade, ao querer fazer a avaliação da idade de uma aluna, disse que se ele estava completando quinze anos, então ela deveria ter uns dez. (Entrevista, p. 4) A surpresa, entretanto, vem do fato de a dizibilidade não corresponder à visibilidade, i.e., na construção seu Lunga, não encaixa um homem bem humorado, muito pelo contrário, espera-se dele atitudes extremamente grosseiras.

Vez por outra, entretanto, a busca da personagem retorna, e nas reclamações de seu Lunga, esconde-se justamente um elemento importante na construção de sua imagem: o imaginário que permite a invenção: "Como é que vai dizer uma coisa que eu não sou? Porque não diz o que eu sou? Se dissesse o que eu sou..." (Entrevista, p. 9) O trecho a seguir da entrevista mostra esse papel do imaginário:

Entrevista - Seu Lunga, o senhor disse que as pessoas inventam muitas histórias a seu respeito, não é isso? Mas o senhor...
Seu Lunga - Não é que eu disse. É verdade. O povo inventa história. Eu acho um erro você dizer uma coisa que eu não sou. Porque não diz o que eu sou?
Entrevista - Então, as pessoas podem ter pego alguma coisa que o senhor fez e inventado em cima disso, não é?
Seu Lunga - Sim, mas aí eu não acredito que você seja uma moça de caráter, de responsabilidade, de moral e você tá inventando história, mentindo. Você tem que dizer a verdade." (Entrevista, p. 9)

A pergunta feita pelo estudante mostra uma estratégia presente na construção da identidade, quer seja de um povo, quer seja de um indivíduo, que é pegar fatos da realidade e dele se abstrair. Essa abstração do imaginário, no caso do seu Lunga, tanto rendeu histórias inventadas quanto foi oportuno para a própria humorização da personagem, que não é engraçado por si só. O exagero dessa sua qualidade é que o torna risível, e é isso que faz o processo de caricaturização, como já falamos no capítulo anterior.

A entrevista também revelou como as identidades de Lunga se separam e se unem, são múltiplas e se entrelaçam . É possível perceber por exemplo, que a personagem seu Lunga (ou porque não dizer, o mito) abriu portas para o homem Lunga se envolver na política. Ele foi candidato às eleições para Vereador em 1988, que ele diz ter concorrido devido às influências dos amigos. Seu Lunga faz confusão com a definição de democracia, relacionando-a com direitos e deveres dos cidadãos, como sujar ruas ou "chatear" o outro. O homem Lunga não teria se envolvido com política, não fosse encaminhado pelo mito. O comerciante seu Lunga também recebe clientes de todas as partes, trazidos pela curiosidade em conhecer o mito, e como nós, comprovar o que sabem sobre ele.

Da mesma forma que a revista Entrevista foi importante para a análise da construção da personagem seu Lunga, também os cordéis fornecem elementos que enriquecerão essa análise.

 

4.8 Os Cordéis

Ambos os cordéis escritos sobre seu Lunga são de autoria de Abraão Batista, a quem já me referi anteriormente, e leva o mesmo título: As Histórias de Seu Lunga: O Homem Mais Zangado do Mundo, sendo que o segundo cordel leva ainda a indicação de 2º volume. Já pelo título se percebe uma estratégia usada pelo autor, que é a estereotipização da personagem de seus versos. Aqui é claro o objetivo dessa estratégia: tornar seu folheto atrativo aos olhos de seus possíveis compradores.

Isso tem tudo a ver com o processo de construção identitária. Essa construção tem que ser "vendida," i.e., tem que ser aceita e legitimada, para que possa alcançar seus fins. O texto Nordeste, como já foi discutido no primeiro capítulo, é uma construção regional das mais complexas do país. Mas essa construção não teria servido aos fins para a qual foi elaborada, se não fosse comprada, ou, para usar um outro termo, legitimada pelos próprios nordestinos e pelo outro.

Logo no início de sua narrativa, Batista revela de onde vêm seus versos: "Desde menino escuto/ contadas de boca em bocas/ as histórias de seu Lunga/ engraçadas e muito loucas (...)" (BATISTA, v. 1, 1998, p. 1) A abertura revela o segundo elemento utilizado pelo autor em sua composição da personagem seu Lunga: o imaginário. As estórias contadas não são presenciadas pelo autor, que nem sequer conhece seu Lunga, e não tem documentação alguma, senão só a tradição oral de perpetuação. O autor não deixa dúvidas em relação ao uso do imaginário em sua construção notadamente no verso: "A sua vida passou-se/ pro próprio anedotário/ toda a cidade o conhece/ como homem imaginário/ embora de carne e osso/ é conto e inventário." (v.1, 1998, p. 3) A introdução do segundo volume também confirma isto:

"No primeiro volume, eu/ procurei analisar/ de maneira científica/
o que eu ouvia contar/ das histórias de Seu Lunga/ para eu não o enganar./
É claro que muitas delas/ foi o povo quem inventou/
mas Seu Lunga deu motivo/ na televisão ele mostrou/
querendo ser muito calmo/ a sua alma revelou."
(BATISTA, v. 2, 1998, p.1)

Logo após o esclarecimento, a justificativa que legitima sua construção: a história de seu Lunga na televisão, que responde asperamente ao entrevistador que lhe perguntou como se sentia em estar ali na televisão. Prontamente seu Lunga responde: "- Não, eu não estou aqui/ estou em casa sentado (...)" A má criação não se acaba, mas continua quando ele tenta consertar o erro: "(...) é... estou na minha casa/ dentro da televisão..." (v. 2, 1998, p. 2)

A busca da legitimação também se dá quando o autor fala do homem seu Lunga, no primeiro volume, descrevendo-o como "homem respeitado" (1998, p.1) e mencionando sua ocupação profissional, inclusive sua boa condição financeira, seu casamento, filhos e bens. Batista justifica-se ainda argumentando que seus versos são por causa da insistência do próprio leitor (1998, p. 3) e esclarece o motivo da zanga de seu Lunga: "Talvez o seu Lunga tenha/ um juízo elevado/ uma cuca inteligente/ de pensamento aprumado/ nesse caso ele se zanga/ com perguntas de alezado." (1998, p. 3) Insiste ainda em legitimar sua construção e baseá-la no imaginário: "Se você observar/ dele, aprende direito/ obtendo de seu Lunga/ um diferente conceito/ sendo assim abra o juízo/ e tenha dele respeito." (1998, p. 4)

Mas a atitude de Abraão Batista revela também a mesma vontade de apaziguar os ânimos de seu Lunga, apresentada pela equipe de Entrevista. Com a imagem de homem mais zangado do mundo em mente, o autor dos cordéis tenta distanciar a ira de seu Lunga de si mesmo.

Há também por detrás disso um elemento legitimador importante da construção da identidade, quer seja a de seu Lunga, quer seja a de um outro objeto qualquer, que é aliviar o elemento de repugnância, que no caso de seu Lunga é a ignorância, de maneira que ele seja aceito pela sociedade e assimilado como parte dela. Seu Lunga é assim, ignorante, mas isso é por causa de sua rigidez de caráter, característica admirável, e também por causa de sua inteligência incompreendida, que não admite erros. Assim também a dizibilidade nordestina é negativa e positiva. Na construção do Nordeste, as condições climáticas fizeram do povo nordestino uma raça física e intelectualmente debilitada, mas fizeram também com que surgisse um povo forte, capaz de sobreviver às mais duras provações.

O resto dos cordéis é a narração das estórias de seu Lunga, que pelo grande número e pela improbabilidade de existir uma pessoa que seja tão intolerante, se tornam parte do anedotário cearense.

Abraão Batista, assim, agencia e constrói a identidade de seu Lunga, utilizando-se fortemente do imaginário e do humor, e criando ainda um estereótipo que cristaliza e simplifica a visibilidade e a dizibilidade da personagem, facilitando que esse texto viaje o Ceará e se incorpore à sua cultura e faça parte da própria dizibilidade e visibilidade cearense.

 

Índice

0 Sobre o trabalho (créditos e bibliografia)
1 Introdução
2 Nordeste: a construção fantástica
2.1 O sujeito nordestino
3 Identidade Nordestina: de imaginário, estereótipos e humor
4 Seu Lunga ( Juazeiro; o homem seu Lunga; a personagem seu Lunga)
4.4 O nordestino seu Lunga ( 4.5 Seu Lunga por ele mesmo; 4.6 Seu Lunga pelos outros; 4.7 A revista Entrevista; 4.8 Os cordéis)
5 Conclusão

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