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A fantástica construção do nordestino Seu Lunga
2 Nordeste: a construção fantástica

de: Ester Lindoso

Em um primeiro momento deste trabalho, é necessário situar o contexto em que se dá a análise da personagem seu Lunga. É por isso que antes de tratar da construção desse nordestino, é importante vislumbrar como se construiu a própria imagem do Nordeste, que processos estiveram por detrás da gênese do "texto" desta região, pois seu Lunga nada mais é que uma figura que povoa esse cenário, e, como veremos ao longo do trabalho, as estratégias usadas para a construção desse personagem estão relacionadas, e são parte desse processo de construção da região.

O que vem a ser, então, o Nordeste? A palavra traz uma série de imagens à mente, uma idéia pronta, que para ser suscitada só precisa que o nome da região seja mencionado. São uma série de associações que compõem um "texto nordestino" imediatamente reconhecível e que faz do Nordeste a região do país com o trabalho mais bem elaborado no sentido de construção de uma "cara," de uma identidade. Esta é uma questão que vai muito além da territorialidade, é a busca de uma unidade, de uma homogeneidade cultural e histórica com o objetivo de legitimação deste espaço. Construir uma identidade nordestina tem sido colocada como uma questão crucial para a própria existência do Nordeste, sendo que tal importância não é algo dado, senão também uma construção.

"Quando se toma a região Nordeste como objeto de um trabalho, (...), este não é um objeto neutro. Ele já traz em si imagens e enunciados que foram fruto de várias estratégias de poder que se cruzaram; de várias convenções que estão dadas, de uma ordenação consagrada historicamente. (...) São tipos e estereótipos constituídos como essenciais." (ALBUQUERQUE Jr., 1999, p. 193)

Mas que processos estão envolvidos na gênese desse fenômeno? Quem está por trás desses processos e quais são os seus caminhos?

O Nordeste passou a ser assim chamado a partir da criação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), em 1919, sendo identificada por esse nome a região que sofria com as secas na parte Norte do país. Daí por quê uma primeira imagem suscitada à simples menção do nome Nordeste é a seca. A seca vai ser nesse processo inicial, o grande argumento do discurso que a elite nordestina usará para angariar os recursos e a atenção da federação, e é em cima dessa base que a edificação Nordeste vai começar a se erigir.

Esse processo é fundamental para aquele momento de crise por que passavam as oligarquias do Norte. Com sua economia em declínio, os grandes agricultores das províncias do Norte se unem em oposição ao Sul, por se sentirem discriminados pelos agricultores desta região, que não os convidaram para o Congresso Agrícola de 1878, realizado no Rio de Janeiro. Essa união já produz resultados na Constituição de 1891, quando a bancada Nortista conquista um artigo no qual a União se obriga a destinar verbas especiais para calamidades naturais, entre elas, a seca. A imagem da seca ganha força e expressa-se em todos os âmbitos da esfera cultural, inclusive na música, como se vê nos versos de Vozes da Seca de Luiz Gonzaga e Zé Dantas (1953):

Seu dotô os nordestino / Têm muita gratidão / Pelo auxílio dos sulista
Nessa seca do sertão / Mas dotô uma esmola / A um home qui é são
Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão / É por isso que pidimo
Proteção a vosmicê / Home pur nóis escuído / Para as rédia do poder
Pois dotô dos vinte estado / Temos oito sem chover / Veja bem, quase a metade
Do Brasil tá sem comer / Dê serviço a nosso povo / Encha os rio de barrage
Dê comida a preço bom / Não esqueça a açudage / Livre assim nóis da esmola
Que no fim dessa estiage / Lhe pagamo até os juros / Sem gastar nossa corage

Se o doutô fizer assim / Salva o povo do sertão / Se um dia a chuva vim
Que riqueza pra nação / Nunca mais nós pensa em seca

Vai dar tudo nesse chão / Cúmu vê, nosso destino / Mecê tem vossa mão

Tamanha força não pode vir sem um respaldo que a justifique, sem uma tese que garanta sua legitimação, e é isso que se busca com a construção do que Durval Muniz de Albuquerque Júnior (1999) vai chamar de "dizibilidade" e "visibilidade" do Nordeste. Sobre esses dois conceitos, o autor diz:

"Falar e ver a nação ou a região não é, a rigor, espelhar estas realidades, mas criá-las. São espaços que se institucionalizam, que ganham foro de verdade. Essas cristalizações de pretensas realidades nos fazem falta, porque aprendemos a viver por imagens." (p. 27)

O que é visível nem sempre corresponde ao que é dizível a respeito da região Nordeste. Há um jogo de oposições entre o que se vê na região e o que se diz sobre ela. "Nem sempre o enunciável se torna prática e nem toda prática é transformada em discurso." (ALBUQUERQUE Jr., 1999, p. 46) Essa construção imagética é acima de tudo inventada com uma finalidade objetiva. As províncias do Norte precisavam se defender da ameaça da decadência total e por isso seu "texto" precisava assumir um caráter político que as defendessem na capital do país, e um caráter cultural que as afirmassem e legitimassem nas mentes dos outros e nas dos próprios nordestinos. E esse texto é tão convincente, que Albuquerque (1999) relata a viagem da articulista Chiquinha Rodrigues do jornal O Estado de S. Paulo ao Nordeste e a notoriedade de "como procura uma página de Euclides da Cunha nos lugares por onde passa." (p. 46) Dizibilidade e visibilidade do Nordeste é então esse conjunto de imagens mentais sobre a região que se espera encontrar refletido nos artigos que se lê sobre ela, nas matérias telejornalísticas, no ritmo da fala de seu povo, nas suas produções culturais e, é claro, em uma visita feita ao Nordeste.

As imagens construídas e cristalizadas reproduzem-se por muito tempo, como é possível notar na matéria O MST fatura a fome, publicada na revista Veja de 13/05/98 :

"A imagem de multidões famintas avançando sobre prateleiras de comida é um forte argumento político. Nas últimas semanas, percebendo esse potencial na situação do Nordeste seco, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, MST, deixou de lado suas atividades regulares - invadir propriedades rurais e prédios públicos - para deixar o governo numa posição incômoda perante a opinião pública." (Revista Veja [on line], ed 1546)

Ou ainda:

"No imaginário popular, o usineiro de açúcar vive como rei no nordeste do país, veste terno de linho branco e chapéu panamá, está sempre arrancando algum dinheiro dos cofres públicos. O terno branco e o panamá os coronéis já largaram há muito tempo, eles agora estão abandonando é o próprio Nordeste, a terra que dominaram por 400 anos e que ajudaram a transformar no que é hoje uma das regiões mais pobres do país." (Revista Veja [on line], ed 1531, 28/01/98)

Esse texto tem cheiro, cor, som, gosto e textura específicos. É o Nordeste quente e seco, cheirando a pele queimada pelo sol causticante, a miséria e a fome; Nordeste marrom e de solo rachado, onde o verde do cactus insiste em destoar na paisagem morta do sertão; lugar onde nordestinos franzinos se balançam em sua diversão de arrastar pés ao som da sanfona e do triângulo; região onde a comida escassa é misturada à farinha e a energia vem da rapadura. Nesse texto cabem ainda o coronel, que detém o poder da região, símbolo da oligarquia tradicional e do paternalismo; o jagunço, braço direito e homem leal ao coronel - por que não dizer o "feitor" dos senhores de escravos; o cangaceiro, justiceiro ou criminoso, dependendo da leitura que dele se faz e que fim se quer ter com ela; o beato, marcas de um messianismo primeiro, que arregimentava um exército de insatisfeitos que o seguia na esperança de uma vida melhor, mesmo que seja depois da morte, e que representava uma ameaça à classe dominante, pois insatisfação demonstra rebeldia; e, por último, mas não por fim, o povo, estranho, extremamente feio ou extremamente belo, pessoas pequenas e de fala cansada e com sons abertos, figuras de semblante e fala inconfundíveis.

Todas essas marcas do povo nordestino foram inventadas, mas uma questão ainda incomoda e carece de resposta. Foram os próprios nordestinos quem sozinhos criaram essa auto-imagem, ou foram os sulistas que definiram o diferente (o Norte) para a partir daí se auto-definirem (como o não-diferente, ou normal) e então essa convenção do Sul foi assumida pelos nordestinos? Em outras palavras, os nordestinos têm uma dizibilidade própria, ou reproduzem a dizibilidade criada pelo imaginário nacional? Nota-se aqui um jogo de poder, o Brasil se partindo em disputas regionais para definir quem forma os contornos culturais tanto próprios como alheios. Pode-se dizer que o nordestino sabe o que é verdade a seu respeito, no que concerne à imagem feita pelo resto do país. Sabe os exageros e as invencionices; sabe do Nordeste vendido como "coitadinho" e do vendido como paraíso tropical do país; sabe das imagens que circulam nas fotos de revistas e nas telas da TV, que trabalham na construção dessa caricatura nordestina. Mas mesmo sabendo disso, o próprio Nordeste se utiliza dessa construção para alcançar seus fins. Basta ver as propagandas sobre as cidades nordestinas veiculadas em rede nacional, ou as lutas das bancadas nordestinas no Congresso em busca de verbas e vantagens de toda sorte para a região (não é à toa que muitas indústrias têm sido atraídas para cá, devido aos incentivos fiscais), ou até mesmo as conversas entre pessoas das diferentes regiões, como é fácil perceber o "texto Nordeste" presente na fala tanto do nordestino como do estrangeiro.

Vê-se o contraste nesse pedaço de matéria Este é o Verão do Brasil da revista Veja, e a fala de Júlio, baiano que mora e trabalha em São Paulo, em Os Nordestinos em São Paulo: depoimentos, que se seguem:

"As praias pontuadas por dunas e falésias no Ceará são bem conhecidas como cenário de novelas, como Tropicaliente, da Rede Globo. O que nunca se viu na TV são as boas acomodações e a farta oferta de lazer por trás das dunas de areia. Essa combinação entre natureza e estrutura nunca esteve tão afinada." (Revista Veja [on line], ed 1625, 24/11/99)

"Eu vejo dois motivos de que o pessoal vem praqui [São Paulo]. Um deles é a condição de vida (...) Outro motivo é a propaganda. Quem já veio, chega lá dizendo: 'Olha, São Paulo é isso, São Paulo é aquilo' e o pessoal fica com vontade de vir." (OLIVEIRA, Antônia Alves de. et al., 1982, p. 25)

No processo de construção do Nordeste, alie-se à sua necessidade de legitimação enquanto região, a necessidade que o Brasil passa de se construir, de se legitimar enquanto nação, com uma unidade identitária que a caracterize.

"A volta para 'dentro de si' do Nordeste (...) dá-se à medida que o dispositivo da nacionalidade e a formação discursiva nacional-popular colocam como necessidade o apagamento das diferenças regionais e a sua 'integração nacional'. (...) O Nordeste é uma rugosidade do espaço nacional, que surge a partir de uma aliança de forças, que busca barrar o processo de integração nacional, feita a partir do Centro-Sul" (ALBUQUERQUE, Jr., 1999, p. 79-80)

O país precisa de uma representação, ou seja, uma interpretação da realidade, uma construção produtora de sentido, que, no caso das identidades sociais, são interpretações que "demarcando as fronteiras do grupo (seus limites) e estabelecendo tanto a coesão do 'nós' quanto a diferenciação em relação aos 'outros,' indicam com quem e como interagir." (PENNA, 1992, p. 60) Ainda hoje o Brasil passa por esse processo de criação de uma nacionalidade, uma unidade identitária que o represente enquanto nação, de maneira a criar um sentimento de nacionalismo, de pertença. Recentemente vimos nitidamente uma estratégia de criar uma história nacional que conte sobre as origens da terra brasilis, uma história tão convincente que a legitime, e essa estratégia foi a comemoração dos 500 anos do Brasil. Essa busca vai gerar uma disputa de poderes entre as regiões para decidir quem tem "autorização" ou quem tem a responsabilidade legítima de definir essa interpretação.

"Verdadeiros mitos de origem serão criados pelos intelectuais de cada área, afirmando a diferença em relação ao seu espaço antagônico desde o início, explicando assim as profundas diferenças regionais que começavam a vir à tona, além de colocá-lo no centro do processo histórico do país. (ALBUQUERQUE Jr., 1999, p. 102)

O Nordeste vai então, gestar uma história nordestina, gerar uma tradição que remonta aos primórdios do Brasil, dar à luz uma idéia que na verdade não é nova, mas já existia muito antes da região, como se o Nordeste estivesse ali o tempo todo, mesmo que ninguém o reconhecesse como tal. Sendo assim, o homem do Nordeste é que deve ser tido como o verdadeiro homem brasileiro.

Paul Connerton fala dessa criação de memória como algo pré-existente, dada desde sempre:

"... entre as mais poderosas destas auto-interpretações estão as imagens que as sociedades criam e preservam de si próprias como sendo continuamente existentes. É que a consciência individual do tempo é, em grande medida, uma percepção da continuidade da sociedade ou, mais exatamente, da imagem dessa continuidade que a sociedade cria." (CONNERTON, 1993, p. 15)

Essa elaboração dá contorno e forma ao Nordeste tradicional, que na verdade não era mais do que o saudosismo de uma época passada, construção claramente oposta ao modernismo do Sul, criticado pelos intelectuais nortistas como sendo destruidor da relação equilibrada que havia entre homem e natureza naquela sociedade, uma pureza que virou fumaça nas indústrias capitalistas, substituindo os laços amigáveis e paternalistas presentes na relação senhor-servo por ligações frias. "O Nordeste (...) da tradição é sempre tematizado como uma região rural, onde as cidades aparecem como símbolos da decadência, do pecado, do desvirtuamento da pureza e da inocência camponesas." (ALBUQUERQUE Jr., 1999, p. 115) Exemplo disto encontra-se em Menino de Engenho, de José Lins do Rego, que relata a história de um menino que fora levado para morar no engenho do avô aos quatro anos de idade. Da cidade grande o menino trouxera os traumas de ter perdido a mãe assassinada pelo pai, homem "arrebatado pelas paixões (...) de um coração sensível demais às suas mágoas." (1977, p. 5) Já o engenho encantou o menino. Suas descrições relatam as belezas rurais e a doçura do povo que ali morava. No primeiro café da manhã do menino na fazenda, uma amostra da relação dócil senhor-servo que não se vê a não ser no Nordeste do engenho:

"(...)Não era porém, somente a gente da família que ali se via. Outros homens, de aspecto humilde, ficavam na outra extremidade, comendo calados. Depois seriam eles os meus amigos. Eram os oficiais carpinas e pedreiros, que também se serviam com o senhor de engenho, nessa boa e humana camaradagem do repasto." (1977, p.11)

Essa oposição Norte-Sul é uma construção de via dupla. Tanto os nordestinos se pretendem o oposto do Sul quanto o Sul vê no Nordeste o que é oposto a si mesmo. Isso não é outra coisa senão o jogo de poder já antes referido, onde, ao definir o "outro," o que cada uma dessas regiões fazia era dizer quem "nós" não somos. É uma demarcação de fronteiras, de limites, diferenciação e até mesmo curiosidade em relação ao outro, ou, como definiu Penna (1992), são "lutas por forma de reconhecimento," (p.71) que o dispositivo do nacionalismo trouxe à tona. "Lutar pela identidade enquanto reconhecimento social da diferença significa lutar para manter visível a especificidade do grupo (...) e existir socialmente é também ser percebido e percebido como distinto." (Penna, 1992, p. 68)

Mais uma vez é José Lins do Rego quem vai fornecer exemplo, desta vez em seu livro Fogo Morto, onde a duplicidade das interpretações Norte x Sul é bem representada através da figura da mãe de um cangaceiro e o Presidente.

"(...) José Passarinho, lá para dentro, cantava:

Vá embora dona
Que eu não solto não;
Pois seu filho é ruim
Matou muita gente
Lá no meu sertão,
Da minha justiça
Não fez caso não.

Era a história de um cangaceiro por quem a mãe fora pedir clemência ao Presidente. Ela dava tudo ao homem para soltar o filho, terra, dinheiro, uma mulata bonita. Tudo ela dava pelo filho que ia morrer na forca. E tudo o homem recusou. As lágrimas da mãe correram de escada abaixo e o Presidente, muito duro, tinha a sua justiça, tinha a forca para o cangaceiro terrível." (1989, p. 196)

Lenine e Paulo C. Pinheiro também vislumbram a duplicidade Norte x Sul, além de fazerem o agenciamento de várias imagens construídas na música Candeeiro Encantado:

"Lá no sertão cabra macho não ajoelha,/ Nem faz parelha com quem é de traição./Puxa o facão, risca o chão que sai centelha,/
Porque tem vez que só mesmo a lei do cão.

É Lamp, é Lamp, é Lamp.../É Lampião/
Meu candeeiro encantado...

Enquanto a faca na sai toda vermelha,/ A cabroeira não dá sossego não./
Revira bucho, estripa corno, corta orelha,/ Que nem já fez Virgulino, o Capitão.

Já foi-se o tempo do fuzil papo amarelo,/ Pra se bater com o poder lá do sertão./
Mas Lampião disse que contra o flagelo,/ Tem que lutar de parabelo na mão.

Falta o cristão/ Aprender com São Francisco,/
Falta tratar o Nordeste como o Sul,/
Falta outra vez Lampião, Trovão, Corisco,/ Falta feijão/
Invés de mandacaru, falei?/
Falta a nação/ Acender seu candeeiro./
Faltam chegar/ Mais Gonzagas lá de Exu,/
Falta o Brasil/ De Jackson do Pandeiro/ Maculelê, Carimbó,/ Marcatu.

Na época da articulista Chiquinha Rodrigues, cujo exemplo foi antes citado, um fenômeno interessante acontecia na imprensa brasileira. Os jornais enchiam-se de notas de viagens a outras áreas do país. Essas notas traziam observações do outro, e a região de onde se falava era tomada como ponto de referência e a região de que se falava era tida como exótica, estranha. O interesse em definir o "outro" vem da necessidade de definir quem somos "nós."

O discurso sobre o Nordeste elaborado pelo outro (leia-se Sul), é o discurso do atraso. Isso, é claro, faz oposição ao modernismo sulista, que simboliza o desenvolvimento e avanço do país. Albuquerque (1999) cita Lourenço Filho em artigo para O Estado de S. Paulo, sobre sua viagem ao Norte: "um recuo no tempo para os olhos de um filho do Sul, a vida parece desandar, girar ao inverso, vinte anos menos em cada dia de viagem..." (p. 60) Ainda hoje o estereótipo do atraso pesa sobre a imagem do Nordeste:

"Fundada há 134 anos por garimpeiros que não encontraram ouro, Assaré vive da lavoura. Dois terços da população moram na zona rural. O próprio Patativa só se transferiu para a área urbana depois dos 70 anos. Prefeito pela segunda vez e candidato à reeleição, o engenheiro agrônomo Antonio Benjamim de Oliveira Filho, do PSDB, mal pode sair às ruas. Logo é cercado por moradores que pedem de tudo: emprego, dinheiro, passagens, remédios. Benjamim nem presta atenção nas histórias tristes. Vai logo distribuindo notas de R$ 5.

Em Assaré tudo é pobre, a vida segue lenta. Não se vê a miséria das grandes cidades para onde muitos dos personagens da obra de Patativa migraram. Na terra do poeta, não há livrarias nem bancas de jornal. Os 6.027 alunos freqüentam as 56 escolas do município. Sem ter o que fazer, o povo passa os dias conversando diante das casas e bodegas. Haja assunto." (Revista Época [on line], ed 94, 06/03/2000)

Estereótipo, como veremos mais adiante neste trabalho, é uma construção simbólica que interpreta e simplifica a realidade, rotulando e dividindo essa realidade observada em classificações. Tudo o que assimilamos, classificamos em alguma categoria já determinada. É por isso que o desconhecido nos incomoda. E este era o papel desses intérpretes sulistas: dar um rótulo através do qual o Nordeste pudesse ser reconhecido por seus conterrâneos, e mais ainda: que fosse aceito pelos nordestinos, de quem se falava.

O nordestino assim, assume uma duplicidade de visões sobre si mesmo e sobre sua região. Ao mesmo tempo que a elaboração do Nordeste tradicional reconhece o Nordeste como a raiz do brasileiro verdadeiro, por estar livre da influência estrangeira que imigrou para as cidades do Sul, principalmente São Paulo, e sente orgulho de suas casas grandes com seus senhores e das relações dóceis entre estes e seus trabalhadores, o nordestino também assume uma posição de inferioridade em relação ao Sul, cuja imagem construída é a de um oásis da prosperidade e do desenvolvimento nacional.

O Nordeste dos anos 90 pode não se orgulhar mais das mesmas coisas que o Nordeste tradicional, mas a dualidade prevalece. Enquanto as capas de revistas exibem a beleza de capitais nordestinas com seus altos prédios e praias paradisíacas, o nordestino se vê como um povo pobre, que sem a ajuda das campanhas contra fome em períodos de longa seca e a alternativa da migração para o Sul, talvez não pudesse resistir.

Do lado dos nordestinos, a dizibilidade do Nordeste tradicionalista ganha respaldo científico na sociologia, representada por Gilberto Freyre, que terá seguidores em todas as áreas, inclusive nas artes, onde o Nordeste da casa grande e dos engenhos, do cangaço e do messianismo, do sertão e do litoral entre outros temas "tipicamente" nordestinos, é escrito, desenhado, cantado. São artistas nacionalmente reconhecidos e aclamados como José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, ou jornalistas, estudantes ou profissionais liberais anônimos, todos dando pontos e unindo os retalhos de que é feito esse tecido e ao mesmo tempo dele se apropriando como algo dado, natural. O Nordeste é assim não só construído, mas legitimado. Mesmo quando a abordagem é mudada, a visibilidade e a dizibilidade nordestina continuam sendo enfocadas nas mesmas imagens já cristalizadas pelos tradicionalistas. Durval Albuquerque chega a falar em uma mitologização dessas imagens, como "regularidades discursivas que se cristalizaram como características expressivas, típicas, essenciais da região." (1999, p. 192) Essas características cristalizadas do Nordeste, pode-se encaixar na definição do que Penna (1992) chama de "típico:"

"O que será tipicamente nordestino? Que manifestações culturais são corretamente reconhecidas como tal? Talvez o forró e o baião, o chapéu de couro, carne de sol com feijão verde ou macaxeira com manteiga de garrafa. Ou a renda de bilros, o cordel, o repente, o cego cantador da feira e por aí vai. O típico, no caso, é um elemento que reúne em si os caracteres distintivos do Nordeste e dos nordestinos, servindo de modelo; um elemento é usualmente reconhecido como 'tipicamente nordestino,' compondo o estereótipo, relaciona-se com a representação do Nordeste gerada pelo discurso regionalista ou com a imagem criada pelo Sul/Sudeste ao curso das relações de força (...) que configuraram as regioões brasileiras." (p. 75)

O socialismo trouxe novas lentes através das quais se enxergava o Nordeste. Esta era a nova perspectiva sob a qual os intelectuais de esquerda vão agenciar essas imagens herdadas dos tradicionalistas, de maneira a construir um discurso não saudosista, mas que vislumbra um futuro "civilizado," oposto ao tradicionalismo. Um exemplo desse remanejamento de imagens já instituídas é o cangaceiro, tido pelos tradicionalistas como um justiceiro, resultado da decadência trazida pela sociedade burguesa ao mundo das tradições; no novo texto que se passa a construir a partir da visão marxista, cangaceiro era o sinônimo da capacidade de se rebelar que possuíam as camadas populares, quer considerem como causa as injustiças provocadas pela sociedade burguesa, ou puro barbarismo de uma sociedade atrasada.

O nacionalismo mais uma vez está por trás dessa inovação, pois o que se quer é fabricar uma homogeneidade nacional. Essa classe média intelectual se divide, uns querendo manter a ordem burguesa, outros querendo transformá-la em uma sociedade socialista, mas essas duas divisões se encontram quando defendem a unificação do país numa sociedade burguesa, quer seja para preservá-la, quer seja para revolucioná-la em um outro momento; todavia, ambas buscam a superação do tradicionalismo, que seria um "entrave" para esse processo.

Mas a mudança de perspectiva do discurso não implica em mudança de estratégia discursiva, isto é, o que se continua fazendo é "generalizar determinadas imagens, enunciados e fatos como dados permanentes do espaço nordestino." (ALBUQUERQUE Jr., 1999, p. 198). E essa atividade de generalização enquadra-se justamente em um dos conceitos com o qual trabalharei, a estereotipização. O estereótipo se apropria de uma característica ou imagem particular e a torna verdadeira ou representativa de uma realidade muito mais complexa. Como toda generalização, o estereótipo é simplista e incapaz de abarcar todas as nuances daquilo que foi estereotipado. Mas uma outra característica do estereótipo é a sua facilidade de pregnância, ou seja, ele é facilmente assimilado, e é esse fator que o torna tão importante na construção de uma imagem identitária, uma vez que ela precisa ser fortemente enraizada nas mentes das pessoas, se quer realmente prevalecer.

 

Índice

0 Sobre o trabalho (créditos e bibliografia)
1 Introdução
2 Nordeste: a construção fantástica
2.1 O sujeito nordestino
3 Identidade Nordestina: de imaginário, estereótipos e humor
4 Seu Lunga ( Juazeiro; o homem seu Lunga; a personagem seu Lunga)
4.4 O nordestino seu Lunga ( 4.5 Seu Lunga por ele mesmo; 4.6 Seu Lunga pelos outros; 4.7 A revista Entrevista; 4.8 Os cordéis)
5 Conclusão

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