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Mecanismo de Sustentação dos Sistemas Totalitários em Breave New World e Nineteen Eighty-Four
Análise comparativa de Breave New World e
Nineteen Eighty-Four

de: Benedito Gomes Bezerra

Aqui você encontra:

3.1. A Estrutura do Poder
3.2. O Tratamento aos Não-Conformistas
3.3. Drogas como Instrumento de Alienação
3.4. O Conceito de Família
3.5. Instrumentalização do Sexo

 

3.1. A Estrutura do Poder

Em ambas as estruturas sócio-políticas, temos uma figura semi-mítica funcionando como uma espécie de superestrutura legitimadora da realidade. Desta forma, o Ford de Brave New World corresponde ao Big Brother de 1984, em vários aspectos. As duas entidades se caracterizam por uma ambigüidade existencial: eles estão sempre presentes e ausentes, simultaneamente, na vida das pessoas. Ford está ausente enquanto figura pertencente ao passado, mas sempre presente na forma de um deus secularizado e humanizado. Quanto a Big Brother, em nenhum momento se tem um contato direto com ele. Será que existiu no passado?

"Ninguém jamais viu Big Brother. Podemos ter uma razoável certeza de que ele jamais morrerá, e já existe uma considerável incerteza sobre quando ele nasceu" (167).

No entanto, ele torna-se um ser onipresente através da propaganda do Partido, via cartazes e teletelas. Como Ford, ele funciona como uma espécie de deus, com os atributos de onipotência, onisciência e ubiqüidade. Na verdade, sabemos que a onipresença de Big Brother significa a onipresença do Partido em todos os setores da vida particular das pessoas.

Concretamente, o poder é exercido por uma oligarquia, em ambos os casos. Em Brave New World, seus limites estão bem definidos: há os Dez Controladores Mundiais exercendo o poder, embora sejamos apresentados, para os propósitos do romance, apenas ao Controlador Mundial Mustapha Mond, cuja atuação compreende a Europa Ocidental. O Controlador Mundial parece não estar sujeito a qualquer restrição no exercício de seu poder, sendo encarado quase como um semideus, ou como detentor de um poder sacerdotal, no estilo de antigos reis como os faraós egípcios, resguardadas as naturais diferenças. É como se ele fosse uma espécie de encarnação de Ford.

Em 1984, somos informados de que "abaixo de Big Brother vem o Partido Interior, cujo número de membros limita-se a seis milhões"(167). Certamente, a elite detentora do poder não é composta por toda essa multidão, e sim por pessoas dela provenientes. Mas, neste ponto, o sistema é tão obscuro que não se tem qualquer informação sobre quem e quantos realmente mandam em Oceania. Conhecemos um membro dessa oligarquia: O’Brien. Mesmo O’Brien, que representa o referencial máximo de poder , pelo menos para aqueles que, como Winston, caem em suas mãos e, assim, conhecem seu verdadeiro papel social e político, não é autônomo em sua autoridade. Ele não é o poder, e sim mais um escravo do poder, como afirma J. Calder:

"O’Brien também é uma vítima, assim como os porcos. É como se o poder tivesse vida própria, independente de seus instrumentos, e isto, certamente, é um dos mais alarmantes aspectos do romance" (1987:55).

Nos dois romances, os indivíduos mais poderosos são apenas agentes do poder, e não o poder em si. Os dois autores não idealizam sistemas totalitários regidos por um único tirano, no estilo de Hitler, Mussolini ou Stálin, e sim oligarquias, onde um colegiado exerce o poder. De acordo com Bertrand Russel(1957:153), a oligarquia é a sucessora natural da monarquia absoluta, podendo ser exercida por uma aristocracia rural, por uma plutocracia, pela Igreja ou por um partido político. O último caso é a situação implícita em Brave New World e claramente assumida em 1984. Em ambas as obras, essa oligarquia dominante é uma estrutura quase invisível, impessoal. Abaixo da cúpula do poder há, evidentemente, uma infinidade de cargos e organismos através dos quais os sistemas funcionam. Em Brave New World, temos o Centro de Condicionamento e os diversos cargos relacionados; em 1984, temos os quatro ministérios com um vasto corpo funcional e sub-organismos a seu serviço. Ambas as estruturas usam várias estratégias, organismos e mecanismos para se perpetuarem no poder. Alguns desses esquemas de perpetuação e exercício do poder foram expostos nos capítulos anteriores.

 

3.2. O Tratamento aos Não-Conformistas

No mundo criado por Huxley, inexiste algo que se possa apropriadamente rotular de não-conformismo no sentido de uma opção política consciente de lutar contra um regime totalitário. Encontramos em Brave New World três indivíduos cujas ações e formas de pensar fogem aos esquemas de condicionamento providos pelo Estado. Diferentes são suas motivações, produzindo diferentes tipos de heterodoxias. Tratamos aqui como não-conformistas a esses indivíduos, com seu fazer e pensar peculiares, mas não livres de condicionamentos e limitações idiossincráticas.

Em primeiro lugar, analisemos a pessoa de Bernard Marx. Sendo um Alfa-Plus, ele fazia parte da casta mais privilegiada, constituindo uma elite intelectual. Entretanto, seu comportamento fazia com que ele tivesse a pior das reputações. Sua má fama originava-se de atitudes radicalmente contrárias ao espírito coletivo criado no Novo Mundo. No Capítulo II, Fanny argumenta com Lenina, mostrando o que as pessoas diziam de Bernard:

"Dizem que ele não gosta de Golfe com Obstáculos... e que ele passa a maior parte de seu tempo isolado - sozinho"(46).

Pior que o fato de Bernard ser muito feio e de baixa estatura, estranhas características para um membro da casta mais elevada, era a suspeita que recaía sobre ele:

"Dizem que alguém cometeu um erro quando ele ainda estava na proveta - pensou que ele fosse um Gama e pôs álcool em seu sangue artificial. Eis porque ele é tão atrofiado"(47).

Este comentário maldoso sempre acompanhará Bernard, fazendo dele uma pessoa extremamente introvertida. No entanto, esse mesmo suposto acidente na proveta pode ter influenciado no condicionamento de Bernard, tornando-o capaz de criticar o sistema.

Bernard, embora sendo um especialista em hipnopedia, manifesta um grande desapreço quando alguém repete um dos bordões e slogans aprendidos durante o processo. Ele tem idéias e gostos próprios, como ficar sozinho e conversar com Lenina, bem longe de locais públicos e de multidões. Mesmo apresentando um comportamento repleto de atitudes estranhas, e até assumindo uma postura provocativa nos seus dias de ego "inflado"(Capítulo XI), Bernard jamais foi um ativista político em luta contra um sistema opressor. Sua motivação é extremamente pessoal e, às vezes, egoísta.

Entretanto, o regime não aprova o comportamento dele. Já um pouco antes de perder o cargo, o D.H.C. tenta apanhar Bernard em uma armadilha, acusando-o publicamente perante os trabalhadores do Centro. O conteúdo de seu discurso é ilustrativo dos desvios de Bernard:

"A segurança e a estabilidade da Sociedade estão em perigo. Sim, em perigo, senhoras e senhores. Este homem,’ - apontou de forma acusadora para Bernard - ‘este homem que está diante de vocês, este Alfa-Plus a quem foi dado tanto, e de quem, conseqüentemente, muito se esperava, este colega de vocês - ou devo antecipar e dizer este ex-colega? - traiu gravemente a confiança nele depositada. Por suas idéias heréticas sobre esportes e soma, pela escandalosa heterodoxia de sua vida sexual, por sua recusa em obedecer aos ensinos de Nosso Ford e comportar-se nas horas livres "como um bebê na proveta"(aqui o Diretor fez o sinal do T), ele provou ser um inimigo da Sociedade, um subversor, senhoras e senhores, da Ordem e Estabilidade, um conspirador contra a própria Civilização"(123).

Ao final de seu discurso, o Diretor tenta, embora sem sucesso, aplicar contra Bernard a pena de exílio na Islândia. Dentro dos padrões da época e da sociedade de Brave New World, essa era a mais terrível punição: o isolamento. Mais tarde, o próprio Controller deportará Bernard para a ilha, por seu envolvimento em um tumulto juntamente com o Selvagem e Helmholtz.

Em Helmholtz, o amigo de Bernard e especialista em Engenharia Emocional, a heterodoxia é de caráter meramente intelectual. Ele quer algo mais que as frases vazias do condicionamento hipnopédico. Sua condenação nasce com a criação de um poema onde ele enaltece a solidão, recitado em uma conferência sobre "O Uso de Rimas em Anúncios e Propaganda Moral". Tratava-se, segundo o comentário de Bernard, de um poema "absolutamente contrário a todo o seu ensino hipnopédico"(147). Chamado à presença das autoridades, Helmholtz conclui: "sou um homem marcado"(146).

Helmholtz é o intelectual inconformado com um sistema nulificante, limitador do potencial artístico. Contrariamente a Bernard, no entanto, ele tem a coragem de transformar sua revolta em atos concretos, colocando-se ao lado do Selvagem no conflito com a multidão de Deltas(Capítulo XV). Sua punição não tarda a vir. Como Bernard, ele é coagido a escolher um local distante para viver, onde não possa corromper a Sociedade.

O Selvagem representa um caso à parte. Ele não pode ser punido como heterodoxo, pois não foi gerado dentro do sistema de castas nem condicionado à semelhança de seus amigos Bernard e Helmholtz. Assim, ao conversar com os três sobre o episódio com os Deltas, o Controller é especialmente brando com o Selvagem. O interesse da Civilização para com ele é científico, por um lado: ele é um caso para estudo, pelo fato de ter uma mãe de verdade e ter nascido em uma Reserva fora do mundo civilizado. Por outro lado, todos querem ter a oportunidade de conversar e, no caso das mulheres, fazer sexo com uma pessoa tão diferente. A Civilização, pois, não deseja impor qualquer punição a John.

Entretanto, aquilo que é apresentado como vida civilizada significa, para o Selvagem, um torturante castigo. A ausência de valores culturais (ele aprecia Shakespeare), familiares, morais e religiosos é insuportável. Por isso, ele mesmo resolve se isolar da Civilização. Ele diz a Bernard e Helmholtz:

"Eu fui ver o Controller esta manhã... para saber se eu podia ir para as ilhas com vocês"(194).

Não lhe sendo permitido ir para as ilhas, John procura um lugar isolado onde se entrega a uma severa auto-flagelação(Capítulo XVIII). Assediado por repórteres e curiosos, seu desespero acaba levando-o ao suicídio.

Temos, assim, em Brave New World, um sistema incapaz de conviver com padrões de vida divergentes do estabelecido. Mesmo sem usar a violência, o regime elimina prontamente qualquer voz rebelde, em nome da uniformidade entendida como pressuposto para a segurança, a ordem e a estabilidade.

Em 1984, o não-conformismo é bem mais consciente em Winston Smith. Como herói, ele não parece muito promissor. Fisicamente, Winston é um homem fraco, quase de meia idade, que usa dentes postiços e sofre de uma úlcera varicosa. Não obstante, ele é responsável por ações claramente rebeldes, executadas conscientemente, conhecendo o castigo por vir. Vários estudiosos ressaltam que esta espécie de ambigüidade do personagem vem indicada já pelo seu nome. Segundo Brown,

"O nome de Winston combina o mais comum sobrenome inglês com o primeiro nome do notável líder britânico durante a II Guerra Mundial, Winston Churchill. Neste nome, portanto, Orwell juntou o homem comum ao homem excepcional, preparando seus leitores para os corajosos atos de rebeldia contra o Partido a provirem desta pessoa(em alguns aspectos) tão comum"(Brown, 1977:34).

Winston não era totalmente diferente dos personagens que aprovam o regime, como vemos por suas reações, por exemplo, no episódio do filme de guerra relatado na Parte I, Capítulo 1, página 10. No entanto, ele se sentia dominado por um forte sentimento de desconforto:

"O sentimento de desconforto e a impossibilidade de em tempo algum sentir-se confortável, parcialmente por ser vigiado todo o tempo, é comunicado com extraordinária força"(Calder, 1987: 42).

Mesmo sabendo que seu fim seria terrível, Winston começa seu projeto particular de revolta. O primeiro passo é escrever um diário, uma atitude subversiva até pelo inusitado de se usar uma caneta comum em um tempo em que se podia ditar o texto para as máquinas de escrever (chamadas speakwrite). Seu grande ato de rebeldia, entretanto, seria o caso amoroso com Júlia, que leva a outras ações proibidas, por via de conseqüência.

O grande sonho de Winston era que a lendária Irmandade realmente existisse, que houvesse outros como ele, que Goldstein não fosse uma invenção do Partido. Sua heterodoxia, portanto, saía do mero plano pessoal, passando pelo real desejo de lutar em favor da completa derrocada do Sistema.

Júlia é a outra personagem não-conformista do romance. Mas, ao contrário de Winston, sua rebeldia é mais particular. Ela só quer ter o prazer de enganar o Partido, e usa sua sexualidade para tanto. Falta-lhe o ideologismo de Winston. Conforme o próprio Orwell, "com Júlia, tudo resume-se à sua própria sexualidade"(apud Brown, 1977:39).

Uma vez desmascarados pelo Partido e presos pela Polícia do Pensamento, os dois são submetidos a inúmeras sessões de tortura nas celas do Ministério do Amor. Embora acompanhemos apenas o processo de Winston, inferimos que Júlia também recebe o mesmo tratamento. O aparato totalitário de 1984 difere fundamentalmente, neste aspecto, de seu correspondente em Brave New World. Influenciado por seu contexto histórico, Orwell cria um sistema perverso baseado na punição e na repressão. A diferença é notada por Huxley:

"A sociedade descrita em 1984 é uma sociedade quase exclusivamente controlada pela punição e pelo medo da punição. No mundo imaginário de minhas fábulas, a punição é rara e geralmente branda"(Huxley, 1994:04).

Desta forma, a tortura é vista como a maneira natural de punir os rebeldes, até que eles cheguem ao ponto em que perdem sua própria dignidade. Para Winston, este momento chega quando ele suplica que Júlia seja castigada em seu lugar:

"Faça-o a Júlia! Faça-o a Júlia! Não a mim! Júlia! Não me importa o que faça com ela!"(230)

O tratamento de Winston só termina quando ele passa a aceitar, como quer o Partido, que a soma de dois mais dois é igual a cinco e, mais importante que isso, quando ele, já em "liberdade", passa a amar Big Brother. Por caminhos diferentes, os sistemas totalitários em apreço chegam ao mesmo resultado: a eliminação dos descontentes, o silenciamento dos não-conformistas.

 

3.3. Drogas Como Instrumento de Alienação

Os cientistas do Admirável Mundo Novo de Huxley conscientemente desenvolvem, sob encomenda do Estado, o que consideram ser a droga perfeita. Com o objetivo de manter as pessoas sob controle, a droga(soma) é regularmente fornecida e comercializada. Desaparece qualquer idéia de clandestinidade em seu uso. Na verdade, será marginalizado aquele que, como Bernard, recusar-se a consumi-la. Como vimos anteriormente, o regime conta com a soma para sanar qualquer possibilidade de conflito e manter as pessoas calmas e "felizes".

Com soma, não há necessidade de whisky, fumo ou drogas ilícitas como heroína e cocaína. O Estado não está interessado em vícios particulares, privados; soma é, por isso, uma instituição política, "um dos mais poderosos instrumentos de governo no arsenal ditatorial"(Huxley, 1994:104). A ração diária de soma garante o Estado contra os desajustamentos individuais e previne o alastramento de idéias subversivas:

"A Religião, disse Karl Marx, é o ópio do povo. No Admirável Mundo Novo esta situação foi invertida. O ópio, ou melhor, Soma, era a religião do povo"(Huxley, 1994:105).

A soma era realmente a droga dos sonhos de qualquer governo não democrático, com uma área de atuação muito abrangente. O Sistema dominante no mundo de Brave New World usou todas as possibilidades da droga como instrumento de alienação e manipulação:

"Além de ser tranqüilizante, alucinógeno e estimulante, a Soma de minha fábula tinha o poder de intensificar a sugestibilidade, e assim podia ser usada para reforçar os efeitos da propaganda governamental"(Huxley, 1994: 113).

Em 1984, a situação é bem diferente em alguns aspectos, já como decorrência das diferenças entre os dois mundos. O mundo criado por Orwell é o mundo da coerção e da força, e não da sugestibilidade. Conseqüentemente, aquilo que identificamos como a droga do sistema em Oceania difere radicalmente da soma de Brave New World.

Ressalte-se que o gim Vitória não é a única droga ao alcance do povo em Oceania. Além do gim, Winston nos apresenta os cigarros Vitória. Parece apenas um comentário bastante incidental, mas mostra eloqüentemente a má qualidade do produto:

"Ele tirou um cigarro de uma embalagem amassada, com os dizeres CIGARROS VITÓRIA, e inadvertidamente segurou-o verticalmente, o que fez com que o fumo caísse do cigarro para o chão"(08).

O gim, assim como os cigarros e os demais produtos "vitória" (i.e., todos os produtos provenientes do domínio estatal), devia seu largo consumo não a uma suposta boa qualidade, e sim ao fato de que não havia escolha. A maioria dos produtos, mesmo ruins, era escassa, com exceção do gim. Apesar de o gim vitória ser uma péssima bebida, sem qualquer atrativo, a realidade era bem pior; por isso as pessoas freqüentemente o utilizavam como meio de fuga. É o que acontece com Winston, até que ele começa seu caso amoroso com Júlia, que vem substituir, com evidente vantagem, a odiosa bebida.

Ainda que isto não seja explicitamente declarado, é evidente que o Partido monitora e certamente aprova o livre consumo de gim. As pessoas precisam ser distraídas nos intervalos das horas de trabalho. As conseqüências do gim, ao contrário do soma de Brave New World, são terríveis, conforme demonstramos pela reação de Winston ao bebê-lo. Ao Partido, porém, isto não parece importar. O fato relevante é que a bebida cumpra seu papel como instrumento de alienação, e isto ela faz. Em ambos os casos a droga é necessária: quer para proporcionar a impressão de bem-estar característica de Brave New World, que para combater a interminável sensação de angústia de 1984.

Concluímos, portanto, que apesar da radical diferença entre soma e gim, as duas drogas cumprem o mesmo papel de prover um meio de fuga para as pessoas. Este meio de fuga não é gratuito: está a serviço do Estado, em ambos os casos.

 

3.4. O Conceito de Família

Na Inglaterra da Era de Ford, desapareceu completamente a noção de família, até como uma conseqüência natural das pessoas não serem mais geradas por pais e mães biológicos. As lembranças porventura existentes representavam uma tal deturpação do conceito que este chega a parecer indecente. Quando o Diretor pergunta a seus alunos o significado da palavra "pais", diz o narrador:

"Houve um silêncio perturbador. Vários rapazes coraram"(30).

Em geral, as referências a palavras pertencentes ao campo semântico "família" despertam ora uma reação jocosa ora uma grande sensação de embaraço. Linda, a jovem Beta acidentalmente abandonada na Reserva Selvagem, conta como foi sua experiência de se tornar mãe:

"Eu fiquei tão envergonhada! Pense só nisso: eu, uma Beta - tendo um filho: ponha-se em meu lugar. (A simples sugestão fez Lenina tremer.)"(101).

Ter um filho era humilhante a ponto de fazer o poderoso Diretor perder seu cargo. Dizer que ele era o pai de John era como se ele fosse acusado de um terrível crime:

"-’Você me fez ter um filho’, ela gritou em meio ao tumulto.

Houve um súbito e apavorante silêncio; olhos vagueavam desconfortavelmente, sem saber para onde olhar. O Diretor empalideceu subitamente... olhando-a fixamente, horrorizado.

-’Sim, um filho - e eu era mãe dele!’ - ela lançou a obscenidade como um desafio contra o ultrajante silêncio" (124).

Após o primeiro momento de choque, o silêncio dá lugar ao riso da audiência diante da patética cena de John chamando o Diretor de "meu pai" (124). A situação é tão constrangedora que o Diretor acaba saindo do cargo.

O problema da família eram as ligações emocionais e os conflitos que ela pressupunha, considerados uma ameaça à estabilidade da Sociedade. Além disso, ter uma família significava canalizar energias para ela, e não para a Comunidade em geral. A existência da família significava a multiplicação de problemas que podiam ser evitados pela sua supressão:

"O mundo era cheio de pais - conseqüentemente, cheio de tristeza; cheio de mães - portanto, cheio de todo tipo de perversão, do sadismo à castidade; cheio de irmãos, irmãs, tios, tias - cheio de loucura e suicídio.

.....................................................................................Família, monogamia, romance. Exclusividade em toda parte, em tudo uma concentração de interesses, uma estreita canalização de impulsos e energia.

....................................................................................Não admira que os pobre pré-modernos fossem loucos, maus e infelizes. Seu mundo não lhes permitia ver as coisas com tranqüilidade, não lhes permitia ser sãos, virtuosos, felizes... Eles eram obrigados a sentir intensamente. Sentindo intensamente (e intensamente, o que era pior, em solidão, em um isolamento individual irremediável), como eles podiam ser estáveis?" (41,42,43).

Eliminada a família, várias problemas eram evitados pelo Sistema. E, mais importante, as pessoas passavam a ser propriedade do Estado, não de suas famílias. Na linguagem hipnopédica, "todo mundo pertence a todo mundo".

Na obra de Orwell, a família e o casamento não desaparecem como instituições. O que o Estado faz é dar um novo sentido à família, que passa a ser constituída não como o resultado do amor entre duas pessoas, mas como expressão de seu serviço leal ao Partido. O casamento devia ser previamente analisado por um comitê, e o princípio fundamental era que as pessoas atraídas mutuamente não tinham a permissão concedida para o enlace:

"O objetivo do Partido não era meramente evitar que homens e mulheres criassem uma lealdade que não se pudesse controlar. Seu verdadeiro propósito, não declarado, era retirar todo o prazer do ato sexual... O único objetivo reconhecido do casamento era gerar filhos para o serviço do Partido"(56).

A propaganda oficial produz, em 1984, algo semelhante ao condicionamento de Brave New World. De forma sub-reptícia, foi colocada na mente das pessoas, especialmente jovens e mulheres, a idéia de que o prazer sexual é algo sujo ou sem importância. A origem desses preconceitos na área sexual é obscura, i.e., na maioria das vezes foram inculcados de forma indireta pela propaganda oficial, nunca colocados de forma explícita.

Desta forma, não admira a completa ausência, em 1984, de algo que possa ser considerado um casamento ou uma família estável e feliz. Winston praticamente não pensa em sua ex-esposa Katherine, de quem se separou há "nove, dez - aproximadamente onze anos"(56). Eles permaneceram juntos cerca de quinze meses e ele não sabe se ela ainda é viva ou não. Katherine representa o estereótipo da mulher doutrinada pelo Partido. O único conteúdo de seu cérebro eram os slogans oficiais, pelo que Winston a apelidou mentalmente de "trilha sonora humana". O sexo, com ela, não tinha o menor atrativo, devido à sua inteira passividade e frigidez:

"Ela ficava lá com os olhos fechados, nem resistindo nem cooperando, apenas se submetendo"(57).

Apesar disso, Katherine não aceitava permanecer sem atividade sexual:

"Eles deviam, dizia ela, gerar um filho, se possível. Assim, a performance continuava a acontecer regularmente uma vez por semana, a não ser que fosse impossível. Ela até costumava relembrar-lhe pela manhã, como algo que tinha de ser feito naquela noite e que não devia ser esquecido. Ela tinha duas expressões para o ato. Uma era "fazer um filho" e a outra era "nosso dever para com o Partido"(sim, ela realmente usava esta frase)" (57).

Quando chegava o dia marcado para o ato sexual, Winston chegava a sentir medo. Como, para sorte dele, nenhum bebê foi gerado, eles acabaram se separando quando ela concordou em desistir de tentar. A separação, neste caso, era encorajada pelo Partido, embora o divórcio não fosse permitido. Além de mulheres como Katherine, havia ainda muitas outras que tinham idéias parecidas, inclusive chegando a defender o celibato.

A organização da qual Júlia ironicamente era membro, a Liga Juvenil Anti-Sexo, defendia o celibato e sonhava com um futuro onde todos fossem gerados por inseminação artificial, à semelhança de Brave New World. Com estas idéias na área sexual permeando as mentes dos jovens, não admira que um caso amoroso verdadeiro venha a se constituir, no romance, em um verdadeiro ato de rebelião.

Através de instrumentos como jogos, paradas, músicas e slogans, o Partido molda um modelo de família que venha a atender a seus propósitos. Mesmo uma família com filhos como a de Parsons é objeto da atuação manipuladora do Partido. Os filhos, como dissemos noutro capítulo, tornam-se espiões e delatores dos pais, normalmente produzindo acusações fantasiosas que resultam, não obstante, na "vaporização" dos denunciados.

Em ambos os romances, podemos afirmar, a família é sacrificada em função da dominação dos indivíduos pelo Estado. Quer eliminando-o, quer modificando-a e utilizando-a de acordo com interesses escusos, os sistemas a transformam em mais um instrumento de manipulação e dominação. Neste ponto, as duas anti-utopias(ou "distopias") são exatamente o contrário da Utopia idealizada por Thomas Morus, cujas cidades se organizavam com base na união e no prestígio dos membros das famílias:

"A cidade se compõe de famílias, na sua maioria unidas por laços de parentesco... O membro mais antigo de uma família é o chefe, e se os anos enfraqueceram sua inteligência, é substituído por aquele que mais se aproxima de sua idade"(Morus, s.d.:89).

 

3.5. Instrumentalização do Sexo

Em Brave New World, o sexo jamais tem a função de reprodução da espécie humana. Ele se inclui naqueles recursos utilizados pelo Estado para manter as pessoas "felizes" e satisfeitas com o status quo. Desde crianças, todos aprendem a usar o sexo irrestritamente, na forma de jogos infantis, sem impedimentos de ordem moral. A sexualidade, juntamente com o intelecto, constituem o foco de interesse da estratégia governamental. Nas palavras de Mustapha Mond,

"Governa-se com cérebros e nádegas(grifo meu), nunca com os punhos" (49).

O aparato governamental prepara uma série de atividades pelas quais as pessoas se sintam plenamente satisfeitas, mesmo que pertençam às castas inferiores. O sexo livre se inclui no conjunto dos fatores de bem-estar proporcionados pelo Governo:

"Sete horas e meia de trabalho brando e leve, e então a ração de soma, os jogos, a copulação irrestrita(grifo meu) e os feelies. O que mais eles poderiam querer?" (180).

O uso instrumental do sexo se verifica de forma completamente diferente em Oceania(1984). Entre os membros do Partido, a interação sexual é radicalmente proibida, mesmo sem leis escritas nesse sentido. Se a pessoa não optar pelo celibato, deverá manter atividade sexual apenas com seu esposo ou esposa. Esta proibição fazia parte da estratégia do Partido de retirar todo o prazer do ato sexual e de evitar que se criassem laços afetivos entre as pessoas. O sexo era considerado um perigo a ser evitado e os infratores deveriam ser punidos:

"O crime imperdoável era a promiscuidade entre membros do Partido" (56).

O Partido, porém, fazia vista grossa quando se tratava de sexo com prostitutas, principalmente porque elas eram sempre provenientes do proletariado. A indulgência do Partido devia-se à percepção de que o sexo funcionava como um meio de aliviar tensões que de outro modo poderiam se tornar incontroláveis. Havia uma punição para o deslize, é claro, mas a mesma parecia bem suave diante dos castigos habituais:

"O relacionamento com prostitutas era proibido, é claro, mas esta era uma daquelas regras que se podia ocasionalmente ter a ousadia de quebrar. Era perigoso, mas não era um caso de vida ou morte. Ser apanhado com uma prostituta podia significar cinco anos em um campo de trabalho forçado, não mais, se não se cometesse nenhum outro crime.

................................................................................... Tacitamente, o Partido estava até inclinado a encorajar a prostituição como um meio de liberar os instintos que não podiam ser completamente reprimidos"(55).

O tratamento dado ao proletariado era ainda mais liberal. O Ministério da Verdade tinha um setor(Pornosec, em Newspeak) especializado na produção de material pornográfico dirigido a esta população marginal. Tanto no caso do proletariado como no dos membros do Partido, através de métodos tão díspares, o regime controlava e usava a sexualidade como um instrumento de controle e manipulação.

Se compararmos o tratamento dado ao sexo em Huxley e em Orwell, verificamos que ambos, por caminhos totalmente diferentes, criaram sistemas onde as pessoas são igualmente manipuladas por interesses alheios aos seus próprios. As metas em ambos os sistemas se identificam: fazer com que as pessoas canalizem suas energias para o serviço do Estado, e reduzir o sexo a um meio de satisfação alienante dos instintos, de forma puramente animalesca.

 

Índice

Mecanismo de Sustentação dos Sistemas Totalitários em Brave New World e Nineteen Eighty-Four
0. Sobre o trabalalho
(apresentação, abstract, créditos, introdução, conclusão e bibliografia)
1.A Estrutura Social e os Mecanismos de Sustentação do Sistema em Brave New World
2.A Estrutura Social e os Mecanismos de Sustentação do Sistema em Nineteen Eighty-Four
3. Análise Comparativa de Brave New World e Nineteen
4.Brave New World, 1984 e o Mundo Contemporâneo

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