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Mecanismo de Sustentação dos Sistemas Totalitários
em Breave New World e Nineteen Eighty-Four Aqui você encontra: 1.1. A Estrutura Social
1.1. A Estrutura Social O "admirável mundo novo" criado por Huxley foi projetado para seiscentos anos após a época em que escrevia o autor, i.e., para 2532 A.D., ou 632 A.F.(Era de Ford). Longe de ser um mundo dominado pela ciência, ele é antes um mundo onde a ciência, especialmente a genética, foi dominada pelo homem, posta a serviço de um sistema político-social. Como está constituída a estrutura do poder neste "Mundo Novo"? Assim como em 1984 temos a figura dominadora do Grande Irmão (Big Brother), há a constante referência a um líder invisível, conhecido como Ford( uma alusão irônica ao termo cristão "Lord"). Trata-se do indivíduo que no passado iniciou o processo de condicionamento humano tão comum no romance:
Ford, contudo, é mais que um líder do passado. Ele tornou-se uma espécie de deus em um mundo sem deuses e sem religiões. Em variadíssimas ocasiões, Ford conota um sentido religioso, pós-cristão. No mundo de Brave New World, as pessoas não fazem o sinal da cruz, mas o "sinal do T", em honra de Ford. Há um grande auditório reservado às festividades do Fords Day (71) e as exclamações "Ford!"(idem), "thank Ford!"(ibid.), ou "for Fords sake!" (79) são constantemente encontradas na boca dos diversos personagens , com evidentes paralelos religiosos, especialmente cristãos. No escritório de Mustapha Mond, um dos Controladores Mundiais, encontramos um livro chamado "MINHA VIDA E OBRA, POR NOSSO FORD" (175) e uma referência à "Sociedade para a Propagação do Conhecimento Fordiano". Em termos de líderes concretos, de carne e osso, temos uma estrutura relativamente simples no topo da pirâmide e uma infinidade de pequenos cargos nos níveis inferiores. Embora os níveis hierárquicos nem sempre estejam claramente delineados, podemos observar o que se segue: O nível mais alto do poder é exercido por um colegiado, cujos membros são referidos como "Os Dez Controladores Mundiais"(38) . Durante o desenrolar da história, ficamos conhecendo apenas o "Controlador Residente para a Europa Ocidental"(idem), Mustapha Mond. Ele é tratado reverentemente por "his fordship". Ouvi-lo é captar palavras "direto da boca do próprio Ford"(ibid.). Trata-se. de fato, da maior autoridade com a qual temos contato durante toda a história. O segundo líder mais importante, pelo menos no enredo de Brave New World, é o D.H.C.(Director of Hatcheries and Conditioning) do Centro de Condicionamento de Londres. Sua autoridade incide sobre todo o processo de reprodução in vitro e condicionamento, vitais para o funcionamento do Novo Mundo. Com os principais personagens da história são funcionários do Centro, o Diretor é sempre uma figura temida, antes de cair em desgraça devido ao caso Linda/Selvagem(conf. 124,125). Fanny adverte Lenina por estar há quatro meses saindo com apenas um homem, Henry Foster:
Outro personagem importante, Bernard Marx, também passa por momentos difíceis face à pessoa do Diretor. No Cap. VI, p. 83, Bernard hesita e respira profundamente antes de entrar para falar com o Diretor. Parece ser mais difícil para ele falar com o Diretor do que com o Resident Controller. Mais tarde, será Bernard o responsável pela revelação de que o Diretor e Linda tiveram um filho, John, o Selvagem. Tal escândalo ocasionará a queda do D.H.C., para alívio de Bernard. Como um poder aparentemente paralelo ao dos Controladores Mundiais, há a figura do "Arch-Community-Songster of Canterbury". O cargo é uma referência ao Arcebispo de Canterbury, a figura religiosa mais poderosa e influente na Inglaterra, como representante da religião oficial, o Anglicanismo. No entanto, ele não aparece muito, a não ser no caso da audiência frustrada com o Selvagem (140-143). O conselho que ele dá a Bernard, por causar-lhe uma perda de tempo, é uma exortação religiosa em sua forma:
Ao dizer essas palavras, ele faz o "sinal do T". Na saída, porém, ele convida Lenina para saírem juntos, mostrando que, ao contrário de outras figuras religiosas do passado, ele não tem problemas com relação ao sexo. Abaixo dessas figuras, temos diversos outros cargos relacionados com o Centro e fora dele. Alguns apenas são mencionados e não têm qualquer relevância no enredo, a não ser pelo aspecto pitoresco do nome do cargo. Em seus dias de notoriedade, Bernard trava relacionamento social com o Diretor de Predestinação, o Supervisor de Bokanovskificação, o Meteorologista Residente e o Diretor de Crematórios, entre outros. O próprio Bernard ocupa um cargo relacionado com a hipnopedia e seu amigo Helmholtz é um Engenheiro Emocional. É imperativo ressalvar que a descrição acima, em grande parte, refere-se mais diretamente ao staff do Centro de Condicionamento de Londres do que à estrutura hierárquica da sociedade em geral. Mais detalhes sobre a estrutura social do Novo Mundo serão dados no próximo capítulo, especialmente no item dedicado à análise do sistema de castas.
1.2. O Sistema de Castas O sistema de castas é construído não em bases sócio-econômicas, mas em uma base genética. Cada indivíduo é predestinado a pertencer a uma ou outra casta desde a proveta. As diversas castas são idealizadas de modo a permitir o perfeito funcionamento da máquina social. Como resultado da predestinação genética in vitro e do processo "neo-pavloviano" de condicionamento( vide abaixo) , inexiste a possibilidade de ascensão ou queda social, no que diz respeito à mudança de uma casta para outra. Aliás, nenhum indivíduo, mesmo um Épsilon, desejaria mudar de casta, tal o seu nível de condicionamento. Cada um é "feliz" em seu status social e em sua função. Para as atividades intelectuais e de chefia, foi criada a casta superior, dos Alfas, exteriormente caracterizados pelo uso de roupas de cor cinza e pela compleição física avantajada(à medida em que o grau de importância da casta diminui, as pessoas recebem um corpo menor e um cérebro menos capaz). Eles formam a elite diretora do Novo Mundo. Os principais personagens do romance são Alfas, exceto Linda(uma Beta-Minus) e John, nascido fora dos limites do Novo Mundo, não pertencendo, portanto, a nenhuma das castas. Como nas demais castas, temos a subdivisão entre Alfa-Plus e Alfa-Minus, embora não esteja claro em que exatamente consiste a diferença entre uma situação e outra. Situada logo abaixo na escala de dominação, temos a casta Beta, cuja cor das roupas não é enfatizada, talvez por não carregar o estigma das castas inferiores. Os Betas estão situados tão perto dos Alfas que suas atribuições não estão claramente diferenciadas. Eles formam as chamadas castas superiores e vivem uma interação aparentemente pacífica. O D.H.C., um Alfa, quando jovem saiu com uma Beta-Minus, Linda, o que mostra a ausência de maiores preconceitos entre as duas classes. Nos níveis inferiores, os Gamas são marcados pelo uso do verde em suas roupas, e são considerados estúpidos pelos Betas, apenas um nível acima deles. Os Deltas usam roupas cáqui e os Épsilons, a casta mais baixa, usam roupas de cor preta, "que é uma cor horrorosa"(33). Temos, portanto, as castas Alfa, Beta, Gama, Delta e Épsilon compondo o tecido social do Novo Mundo. Há uma diferença real entre uma casta e outra, definida desde a sua predestinação e perpetuada em seu condicionamento, conforme veremos.
1.3. O Condicionamento Genético O processo pelo qual cada indivíduo é geneticamente condicionado a ocupar seu lugar no corpo social começa na Sala de Predestinação Social(21). Uma vez que não há necessidade de muitas mulheres férteis, o sistema permite o desenvolvimento normal de apenas trinta por cento dos embriões femininos. Os demais são deliberadamente tornados estéreis, através de doses maciças de hormônios sexuais masculinos(22). Além disso, cada bebê é "decantado" de acordo com o papel social a ele destinado, não só quanto à casta, mas também quanto ao tipo de atividade ou cargo a preencher:
Noutro ponto do condicionamento do embrião, temos o racionamento do oxigênio como meio de diferenciação entre as castas. Através da diminuição do oxigênio, conseguem-se cérebros menos capacitados e corpos mais raquíticos. Um indivíduo Épsilon, por exemplo, deve ter tanto um cérebro estúpido como um corpo de anão:
Um progresso científico perseguido pelo sistema era conseguir que um Épsilon, cuja mente estava amadurecida aos dez anos também estivesse fisicamente capacitado para o trabalho nessa idade.
Assim, seriam evitados "longos anos de imaturidade supérflua e desperdiçada"(23), i.e., dos dez aos dezoito anos. No longo itinerário percorrido pelas provetas com os embriões, outros detalhes de condicionamento eram lembrados. Por exemplo, a certa altura, aqueles que são predestinados a viver em regiões tropicais ou trabalhar em minas passam por túneis onde são submetidos alternadamente ao calor e ao frio, sendo que o frio é levado ao ponto de máximo desconforto, de modo que eles cresçam detestando climas frios. Mais tarde, suas mentes serão condicionadas a corroborar o julgamento de seus corpos com relação ao clima. Eles devem não só trabalhar no calor, mas amar o calor:
Nas salas de condicionamento neo-pavloviano, o processo é agora aplicado aos bebês já "decantados", i.e., fora das provetas, com apenas oito meses de idade(Cap. II, p. 27ss). Através de explosões, sirenes e choques elétricos, associados ao contato com flores e livros, consegue-se que as crianças da casta Delta cresçam "instintivamente" detestando tais coisas. A Comunidade precisava evitar que pessoas de castas inferiores gastassem tempo com livros, onde poderiam aprender coisas nocivas ao seu condicionamento. Quanto à natureza, representada pelas flores, tem o gravíssimo defeito de ser gratuita. Uma vez que não incentiva o consumo de bens e serviços deve ser igualmente detestada. Como se pode inferir do exemplo acima, todo o comportamento futuro de cada criança, mesmo das castas superiores, é cuidadosa e impiedosamente condicionado desde a mais tenra infância. Os resultados de tal processo são evidentes nas idéias e ações dos personagens através do livro. Vejamos dois exemplos: Em sua aula prática através do Centro, o D.H.C. e seus alunos passam pelo corredor próximo a um dormitório onde as crianças estão sendo submetidas a uma sessão de hipnopedia(processo de ensino durante o sono, sobre o qual falaremos adiante). Ao comando de "silêncio" transmitido pelos alto-falantes,
Tais ações "automáticas" são constantes no dia a dia das pessoas no "admirável mundo novo". Bernard, de quem se suspeita ter sido cometido algum erro de condicionamento ainda in vitro, e que tem algum nível de consciência crítica, não está livre da ditadura de sua programação genética. Quando o Selvagem lhe mostra uma cicatriz na testa, ele rapidamente muda o olhar , como uma imposição de seu condicionamento:
Além de pensar, fazer e gostar apenas daquilo que lhes foi predestinado, as pessoas também sabem apenas o necessário ao desempenho de seu papel no conjunto da sociedade. Daí as dificuldades de Linda diante das perguntas do pequeno John:
Não surpreende que ele logo chegue à conclusão de que "os anciãos do pueblo tinham respostas muito mais claras"(109). Os "selvagens" tinham uma explicação clara, ainda que não "civilizada", para questões profundas tais como a origem do mundo e da vida. Alfa ou Épsilon, pouco ou nada se pode fazer para fugir a esse comportamento pré-determinado. De acordo com Mustapha Mond, mesmo após ser "decantado", o indivíduo "continua dentro de uma proveta - uma proveta invisível de fixações infantis e embrionárias"(179). Isso é um fato mesmo para os Alfas, a não ser pelo fato de que, relativamente falando, suas "provetas invisíveis" são bem maiores e espaçosas que as dos outros.
1.4. A Hipnopedia O condicionamento in vitro é apenas o começo de um longo e meticuloso processo. A "educação moral, que nunca deve, em circunstância alguma, ser racional"(32) é levada a efeito através da técnica chamada "hipnopedia", ou ensino ministrado durante o sono. Por meio de mensagens gravadas e repetidas exaustivamente por aparelhos colocados sob o travesseiro das crianças e adolescentes, o sistema inculca-lhes o comportamento esperado e os preconceitos próprios das respectivas castas. O conteúdo do ensinamento, freqüentemente formulado em termos simplórios, sem qualquer brilho intelectual, consegue ser absorvido e alcançar sucesso apenas pela força da repetição. É um autêntico processo de lavagem cerebral. Uma lição, por exemplo, ensinava o seguinte a oitenta crianças Beta:
Uma lição como essa seria repetida cento e vinte vezes por dia, três vezes em cada semana, por trinta meses. Depois de tudo isso, torna-se impossível pensar diferentemente do pré-determinado pelo Estado:
Esse tipo de condicionamento não podia ser conseguido através de choques elétricos ou coisas do gênero. A hipnopedia é um verdadeiro curso de comportamento, para o qual deve ser usada a palavra, mas palavra "sem racionalidade"(33). De acordo com o Diretor, a hipnopedia é
A hipnopedia, transmitida em grande parte por meio de aforismos e máximas, revela suas marcas na vida das personagens nos mais diversos momentos de seu dia a dia. Muitas vezes relacionada à sexualidade das pessoas, encontramos a afirmação de que "todo mundo pertence a todo mundo"(42), que após sessenta e duas mil repetições torna-se uma verdade indisputável. Referindo-se ao consumo de soma(vide item abaixo), temos: "um centímetro cúbico cura dez sentimentos tristes"(53); ou, ainda: "um grama é melhor que uma raiva"(idem). É digno de nota o jogo de palavras em inglês, facilitando a memorização e posterior repetição. O efeito da hipnopedia pode ser avaliado em um exemplo prático: o caso de Lenina. Em todas as situações, ela tem um "provérbio hipnopédico" para justificar suas opiniões. Eles funcionam freqüentemente como um mecanismo de defesa. É como se ela citasse a Bíblia, a Constituição, ou algo parecido. O seguinte diálogo entre Lenina e Bernard, em uma sorveteria, ilustra bem essas afirmações:
Poderíamos aduzir vários exemplos nos quais Lenina e outros personagens citam a "sabedoria" aprendida através das infinitas repetições hipnopédicas. O exemplo acima, no entanto, é bastante eloqüente: demonstra a eficácia desse mecanismo tão bem usado pelo Estado, do ponto de vista de seus propósitos. A hipnopedia produz uma espécie de automatismo moral nas pessoas. Elas pensam e agem como programadas.
1.5. Soma Trata-se do mais um fascinante, ainda que terrivelmente maquiavélico, instrumento de dominação. É a droga perfeita, desenvolvida para atuar sempre que algo ameace sair errado ou interferir no condicionamento de alguém:
O Controlador Mundial Mustapha Mond conta aos alunos do Diretor como a soma foi criado:
O único tumulto de que se tem notícia no romance é provocado quando cento e sessenta e dois Deltas são confrontados com a possibilidade de serem privados de sua ração diária de soma(cap. XV). Mesmo assim, a confusão é provocada por um elemento estranho, não condicionado, o Selvagem, que se propõe salvar o grupo do que ele considera um veneno para a alma e para o corpo. Normalmente pacíficos, os Deltas se enfurecem e estão a ponto de trucidar o Selvagem e Helmholtz, que tenta ajudá-lo (Bernard se acovarda e apenas assiste à cena), quando a Polícia intervém. As armas usadas para acalmar a turba são emblemáticas: pistolas de água carregadas com líquido anestésico, uma Caixa de Música Sintética reproduzindo uma mensagem apaziguadora e máquinas pulverizadoras carregadas com vapor de soma. O resultado é quase imediato:
Em forma de sorvete, servido com café, vaporizado, ou mais comumente apresentado em tabletes fornecidos diariamente pelo Estado, a droga oficial cumpre bem seu papel de manter as pessoas "na linha". Os indivíduos que não apreciam soma tornam-se estranhos ao seu próprio mundo, como é o caso de Bernard, ou acentuam sua imagem de "não civilizados", como acontece com John, o Selvagem.
1.6. Promiscuidade Sexual Não há nada parecido com o conceito de família na Inglaterra da Era de Ford. Ao contrário, família é uma idéia do passado, desconhecida dos jovens alunos do D.H.C. Uma vez que a reprodução humana é toda feita em "chocadeiras", o sexo tem apenas a função de proporcionar prazer a homens e mulheres, além de, desta forma, servir como mais um mecanismo de dominação e perpetuação do Estado, à medida em que acalma, aliena e distrai os indivíduos. As pessoas não se pertencem, nem às suas famílias, pois estas não existem. Todos são membros do "corpo social". Naturalmente, a educação sexual é parte do condicionamento de todos os indivíduos, homens e mulheres. As crianças são estimuladas a praticarem "jogos eróticos". Um garoto que reiteradamente "reluta" em brincar sexualmente com uma menininha é levado ao psicólogo "apenas para ver se há alguma coisa anormal"(36). O sexo é encarado como uma espécie de entretenimento recomendado a todas as idades. Mais do que praticar sexo, é preciso fazê-lo livremente, com muitos parceiros. Lenina é enfaticamente advertida por sua colega e amiga Fanny pelo fato de estar saindo unicamente com Henry Foster já há quatro meses(42ss). Não era necessário, é claro, deixar Henry, mas apenas sair com outros homens além dele:
Mesmo enfrentando essa crise passageira, Lenina não foge à regra da promiscuidade geral:
Devido ao seu condicionamento na área sexual, a jovem Linda seria duramente rejeitada pelas outras mulheres na Reserva Selvagem, onde cada uma devia ter seu próprio homem, idéia absurda para Linda:
Transportado para a civilização, John jamais viria a entender a promiscuidade reinante lá. Mutatis mutandis, enfrenta o inverso da situação de sua mãe Linda. Bernard também tem problemas quanto à aceitação da promiscuidade proposta, pelo menos em se tratando de sua relação com Lenina. Era imperativo, para ser civilizado e integrado à sociedade, entender novamente o preceito de que "todo mundo pertence a todo mundo", em todo e qualquer aspecto. O sexo devia ser visto como mais um meio de ser feliz e viver contente.
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