UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - FAE - PROMESTRE
COMUNICAÇÃO SEMINÁRIO HUMANIDADES EM 30/07/2020
Meu nome é Vera Lucia Alves Sebastião, 64 anos, bisneta de pessoas que foram escravizadas. Sou professora de Língua Portuguesa dos nonos anos do 3º ciclo da Escola Municipal Prof. Lourenço de Oliveira. Entrei no Promestre em 2019 e a pesquisa que desenvolvo é o Projeto Saraus: a Poética e as Narrativas no Enfrentamento ao Racismo. Quero iniciar esta comunicação pedindo licença aos mais velhos e aos mais novos para falar desta pesquisa Saraus: a Poética e as narrativas no enfrentamento ao racismo. Também quero reverenciar nossos ancestrais que nos permitiram estar aqui neste momento estranho, sob pandemia, falando sobre nosso trabalho com o Oriki de Obatalá.
“Que a água seja refrescante
Que o caminho seja suave
Que casa seja hospitaleira
Que o Mensageiro conduza em PAZ a nossa PALAVRA”
E A NOSSA PALAVRA É: SOMOS TODOS IGUAIS EM DIGNIDADE E DIREITOS!!!
Este projeto é dedicado a Solano Trindade
Esta pesquisa nasce da necessidade de ser e de existir como mulher negra e professora, de dar resposta aos insultos, ironias e porradas racistas, sexistas, misóginas, machistas cotidianas, de minhas inquietações sobre a efetiva consolidação das Leis 10639/03 e 11645/08, dos conhecimentos da Formação Continuada, da participação nos Projeto Negritude e Cidadania e Projeto Alma Negra e do entendimento que os tempos mudam, os docentes envelhecem, se aposentam. Mas a necessidade de enfrentar o racismo permanece e infelizmente acirrou em 2020. Racismo aleija a alma. Racismo mata e mata muuuuuito.
O Projeto de pesquisa Saraus: a Poética e as Narrativas no Enfrentamento ao Racismo é também o registro do fazer pedagógico na conscientização de nossa comunidade escolar sobre a Consciência Negra, as Africanidades, a Negritude e Cidadania, a Cultura Negra, a Música Negra, o protagonismo das MULHERES NEGRAS, a Resistência Negra, os Quilombos, o Direito de ter Direitos e o enfrentamento ao Racismo. Racismo mata!! Racismo é crime!!!!!
Minha atuação docente é fundamentada pela pesquisa e o estudo constante da Língua Portuguesa e suas Literaturas, da História e Cultura da África, da Diáspora, da cultura produzida pelos Afro-brasileiros, da luta diária do Povo Negro, do samba, do Hip Hop, da poesia marginal, dos Saraus da periferia. Desde 2011, tento aprender as culturas dos Povos Indígenas do Brasil. Trabalho em mim e com os meus alunos os valores a partir das ideias de Ubuntu, Bem Viver e Bem Comum. É preciso estar alerta porque o racismo está sempre à espreita e como uma das formas do Poder é legião, como diria Roland Barthes. A música, a narrativa, a poesia, o rádio, a arte, a busca pelo conhecimento, cultura fazem parte do meu arsenal contra a dor.
A proposta de pesquisa é a organização de Saraus trimestrais, a partir da elaboração de Sequências Didáticas que organizem os componentes curriculares de Língua Portuguesa e suas Literaturas conforme constam nas Proposições Curriculares da Rede Municipal de Belo Horizonte, integrando-lhes os conhecimentos históricos, lingüísticos, filosóficos e culturais africanos, afro-descendentes e ameríndios, os conhecimentos produzidos pelos movimentos sociais e pelo Movimento Negro na lutas pelos direitos do Povo Negro visando o enfrentamento à discriminação e ao racismo.
As Proposições curriculares do ensino de Língua Portuguesa e suas literaturas foram elaboradas a partir de amplo debate com os professores de Língua Portuguesa da Rede Municipal e tem quatro princípios norteadores: a dimensão textual-discursiva, a dimensão sociológica, a dimensão semântica e a dimensão gramatical da Língua Portuguesa. E...não são um de rol de conteúdos. O princípio de organização são as capacidades lingüísticas que possibilitem aos estudantes práticas sociais que utilizem a Língua num constante processo de letramento das habilidades de ouvir, falar, ler e escrever. Os estudantes devem ser levados a desenvolver, a compreender textos orais e escritos, à compreensão da cultura escrita, à leitura e compreensão de diferentes gêneros textuais, à produção de textos escritos e à compreensão dos conhecimentos lingüísticos nas dimensões sociológica, semântica e gramatical da Língua Portuguesa.
Implica pesquisa de conhecimentos, saberes e tradições da História e Cultura da África, dos Afro-Brasileiros e das Nações Indígenas do Brasil, de narrativas orais e escritas, em versos e em prosa. Implica estudos dos gêneros textuais orais e escritos, do conceito de sequências didáticas, dos conceitos de raça, etnia, democracia racial, branqueamento, branquitude, negritude, racismo, racismo de marca, racismo estrutural. Implica estudar outros pesquisadores, outras epistemologias, os mestres dos saberes tradicionais, a sabedoria dos ancestrais, o protagonismo jovem, os causos, implica audição e relações mais horizontais.
Implica dialogar saberes tradicionais com pensadores, a arte oral imaterial dos Griot com poesia marginal, escritores africanos e afro-brasileiros com as narrativas africanas, das narrativas dos valores afro-brasileiros e ameríndios, com a filosofia iconográfica dos Adinkras que resultem num fazer pedagógico, num processo de educação das relações étnico-raciais, na produção de textos poéticos, textos narrativos, slogans, etc. em que se reconheça a Ancestralidade, presentificando experiências, construções e pensamentos produzidos em diferentes circunstâncias e realidades do Povo Negro e dos Povos Indígenas do Brasil.
Stuart Hall nos orienta nesta busca de diálogos.
Narrativas em língua oral, transformadas em textos escritos, em gêneros textuais, dirigido a destinatário específico – o ser humano - explicitando posicionamentos, explorando razão e emoção num pensamento voltado para a expressão adequada do que se pretende expressar, comunicar, vivenciar, denunciar, reivindicar. É a formação de um fazer pedagógico, de novos conhecimentos. Aqui é importante observar que Stuart Hall dialoga com Mikail Bakhtin
Narrativas que dialoguem, narrativas em versos, prosa, vídeos, pintura, quadrinhos, relatos de experiência, apresentações musicais, apresentações teatrais, saraus. Dialoguem e se constituam em instrumentos de aprendizagem. Aprendizagem compartilhada pela participação dos colegas professores de Língua Portuguesa, dos demais professores, dos pais, dos alunos, dos funcionários com suas histórias e talentos nos vários saraus vivenciados anualmente. Narrativas que são etapas de outras narrativas que resultem em saraus, anuais, trimestrais, numa espiral infinita de possibilidades poéticas e narrativas.
Propõe-se sequências porque se trata do desenvolvimento gradual de capacidades, de possibilidades de abordagens, apontando-lhes os desafios, sugerindo metodologias e estratégias. As sequências didáticas são organizadas, a partir de uma situação inicial, em várias etapas, em módulos, que permitem planejamento, elaboração de rotas, flexibilizações, correção de rotas, adequações, mas os objetivos são claros. Espera–se que o aluno aprenda em cada sequência, determinado gênero textual, determinado conhecimento, determinada filosofia com cada pensador, determinados fatos, determinados conceitos.
Sequências Didáticas são atividades escolares organizadas de maneira sistemática em torno de gênero textual oral ou escrito. Uma sequência é composta por quatro componentes: apresentação da situação, produção inicial, módulos e produção final. O foco é a aprendizagem de gêneros orais ou escritos. Pode-se flexibilizar a modulação de acordo com o evoluir da aprendizagem dos alunos. Pode-se rever os módulos, retomar conteúdos, mudar a produção final. As sequências pressupõem problematização, aprendizagem, finalidade, planejamento, elaboração, posicionamento, observação e análise do processo, elaboração de uma linguagem comum, a aquisição de uma linguagem técnica adequada à finalidade do que se escreve, o exercitar a expressão oral e a expressão escrita, atividades de culminância (DOLZ, SCHNEUWLY, 2011, pág. 88). Nessa pesquisa, a culminância das Sequências Didáticas Trimestrais são Saraus, os fios condutores de todo o processo de aprendizagem.
Sabe-se que “o ser humano só se realiza na fala” e que “a identidade e a cultura dos povos de uma nação é explicitada pela Língua de seus falantes”. Os Estudos Culturais têm presentificado a importância da linguagem na chamada “Virada Cultural” que constata a centralidade da cultura na produção de identidades.
A preparação do sarau e o próprio sarau são elementos de uma longa narrativa cujo desfecho pode ser uma aprendizagem mais afetiva, mais efetiva. Rogério Meira Coelho, um dos mentores do Coletivoz – Coletivo de Poetas do Barreiro - em sua dissertação “A palavração: atos político-performáticos no Coletivoz Sarau de Periferia e Poetry Slam Clube da luta” - nos esclarece.
Saraus na escola organizando o planejamento, as aulas, os fazeres pedagógicos, são narrativas que valorizam a identidade, a história e a cultura dos Afro-brasileiros, levando à conscientização dos direitos de cidadãos afro-brasileiros e ameríndios e ao reconhecimento das raízes africanas e ameríndias da nação brasileira.
É importante ressaltar que as narrativas histórico-culturais afro-brasileiras implicarão num fazer pedagógico que produzirá ferramentas contra outras formas de opressão: machismo, exploração e abuso de crianças, uso predatório do meio ambiente, consumismo, tirania, perda de direitos. Todavia, não se pode esquecer que o racismo é estruturante e hierarquizador da sociedade brasileira, seja em nível individual ou em nível institucional. É importante lembrar que
A narrativa é um instrumento de aprendizagem, conscientização, denúncia e resistência porque é a memória de tempos idos. A memória para não esquecer, para lembrar, para deslembrar, para não repetir, para reafirmar, para posicionar, para erguer a voz. “A memória não é apenas constatação do passado ou advertência; ela tem um vetor necessariamente projetivo. A elaboração da memória se dá no presente e vem responder as demandas do presente. Lembrar é resistir”. (MENESES,1999).
Os Procedimentos metodológicos para a pesquisa acadêmica consistem em pesquisa documental, pesquisa bibliográfica e pesquisa narrativa. Entretanto, no exercício cotidiano da docência, a pesquisa e o estudo são constantes, inusitados, flexíveis. É importante reafirmar a importância das bibliotecas das escolas da rede municipal e o reconhecimento do investimento constante tanto no aporte financeiro, na aquisição de livros, na formação dos profissionais. Tem sido fundamental o diálogo entre professores, estudantes e os educadores da biblioteca.
O produto esperado é um caderno de apontamentos, que também poderá ser disponibilizado em formato e-book, no qual serão colecionadas as sequências e os respectivos saraus, ou seja, os dados resultantes dessa extensa pesquisa como um recurso pedagógico para sugestão, consulta e ações educativas, que possam viabilizar outras narrativas, outras poesias, outras sequências didáticas, proporcionar aprendizagem, protagonismo e empoderamento.
É importante enfatizar que este trabalho de pesquisa é coletivo, em cada afirmação há vozes ancestrais, há vozes dos pensadores que embasam nossa fala, há vozes dos colegas docentes da EMPLO, dos professores e monitores da Escola Integrada, dos professores, dos monitores e estudantes do extinto Projeto Linguagens devido ao falecimento de sua coordenadora, professora Márcia Cristina, em fevereiro de 2018, que pesquisava e produzia teatro com a temática afro-brasileira, há vozes de gestões e coordenações, há vozes de estudantes de todas edições dos Saraus, de seus pais, mães e responsáveis, há vozes de nossos filhos, maridos, irmãs, irmãos, pais, mães, de nossas famílias, dos bibliotecários, das cantineiras, dos funcionários, dos porteiros, dos artistas. GRATIDÃO, MUITA GRATIDÃO.
Finalizando, quero lembrar que estamos na Década Internacional dos afrodescendentes – 2015 a 2024 e “nunca jamais em tempo algum” presenciamos ao vivo a crueldade de tantas cenas de covardia contra o Povo Negro. O Racismo mata mesmo!!! Agradeço a oportunidade de falar neste Seminário de Humanidades, à minha orientadora Professora Conceição, a querida Teca da Espiritualidade na Academia; ao querido Professor Pablo, às professoras Maria Amália e Teresinha, aos professores e colegas que organizaram este evento; aos colegas que organizaram este seminário. Vocês brilharam!!!! Agradeço o aprendizado compartilhado nas mesas e no chat.
VIDA LONGA COM SAÚDE SEM RACISMO, SEM FASCISMO!!!!
Valeu Valeu, PROMESTRE!!!