Série Clássica, a não canônica

por João Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
29 de maio de 2004

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           Em Jornada nas Estrelas, a gente sempre considera como canônico aquilo que tenha sido apresentado pela série Clássica na televisão. É para considerar mesmo. Um dos problemas com o uso do termo "canônico" é que ele significa "sagrado", o que está associado à idéia de "dogmático". Por esse tipo de associação, acostumamo-nos a, implicitamente, considerar intocável, imutável, tudo aquilo que tenha aparecido na série Clássica sobre o universo de Jornada nas Estrelas.

           Entretanto, é preciso lembrar que a série Clássica foi escrita sem esse tipo de preocupação. Os elementos que hoje são canônicos sempre foram meros acessórios e, naquela época, não se lhes dava qualquer atenção especial: eram criados e declarados conforme a conveniência do roteiro. Isso acontece ainda hoje, mas, como há uma base sobre a qual se constroem contradições ou complementaridades, temos um julgamento em relação a essa base. Não era o caso no tempo da série Clássica, quando tudo estava sendo feito a partir do nada sem qualquer preocupação particular com a continuidade.

           A melhor forma de se avaliar como eram tomadas as decisões sobre os elementos acessórios é ler The Making of Star Trek, publicado por Stephen Whitfield e Gene Roddenberry enquanto a série ainda estava no ar. Nesse livro, vê-se que o que importava era a coerência dos personagens, era o quanto um acessório faria ou não sentido na sociedade humana de um futuro. Não se falava tanto assim em "Federação", senão como uma espécie de generalização onde a Terra se inseriria, uma comunidade a indicar a união de povos além das fronteiras do convencional. Não se falava especificamente em "século XXIII": a série somente seria datada positivamente, sem sombra de dúvidas, bem mais tarde, pela Nova Geração. O que bastava era que fosse ambientada "em um futuro", que tanto podia ser dali a duzentos, trezentos, ou novecentos anos.

           Dessa forma, veja-se que a própria série Clássica, "intocável mãe de tudo que é canônico", está, por diversas vezes, em contradição com o que vemos e acreditamos a partir das outras séries, e os problemas que criou ou já eram insolúveis então, ou se tornariam insolúveis no correr dos anos. Vejamos alguns exemplos:

           1. O posto de Spock — É uniformemente aceito, sem questionamentos nem dúvidas, que um uniforme da Clássica com duas faixas ininterruptas na manga seja um uniforme de Comandante. Entretanto, submeto três fatos à apreciação de vocês:

           (a) Nunca foi dito que aquelas faixas fossem um indicativo de posto. Nosso bom-senso diz isso, os personagens agem e falam conforme aquelas faixas, mas nunca afirmaram categoricamente. A dedução tem sido nossa todos esses anos.

           (b) Nos episódios "Court Martial" e "Tomorrow Is Yesterday", Spock usa as duas faixas contínuas, mas é positivamente identificado como um Tenente- Comandante.

           (c) Não há um episódio onde Spock seja positivamente, com absoluta certeza, identificado com o posto de Comandante.

           Em conclusão, podemos afirmar que não sabemos (e não que sabemos) uma série de coisas: primeiro, não poderíamos, de pronto, associar as duas faixas do uniforme ao posto de Comandante; segundo, não podemos afirmar que Spock seja um Comandante full.

           Nosso bom senso diz que Spock é, sim, um Comandante; tradicionalmente, desconsideramos os episódios acima e atribuímos o que ouvimos a "alucinações auditivas", por assim dizer. Os mais puristas podem até mesmo admitir que Spock seja, sim, um Tenente-Comandante; e que use as duas faixas contínuas como uma prerrogativa da função de Imediato, que seria típica do posto acima do seu. Isso seria bastante lógico e até aceitável, mas não me parece que seja uma racionalização adotada por ninguém.

           2. O século em que se passa a Clássica — Em "Space Seed", diz-se que Khan foi exilado no espaço no final do século XX. Quando ele acorda de seu longo sono, pergunta a Kirk "Quanto... tempo...?", e nosso bravo Capitão responde "Duzentos anos." Façam as contas: com isso, a Clássica estaria no século XXII. O livro Star Trek Chronology, do casal Okuda, racionaliza a possibilidade de que o Capitão estaria preferindo não liberar toda a informação ao desconhecido Khan.

           Ora, francamente.

           Mais tarde, em "Tomorrow Is Yesterday", um oficial da Força Aérea dos Estados Unidos captura e interroga Kirk, que responde com evasivas. Então, o oficial ameaça trancafiá-lo por "duzentos anos". Kirk, com olhar resignado, diz que isso lhe parece "just about right", ou seja, mais ou menos o que lhe seria correto. Façam as contas de novo: século XXII. A mesma racionalização acima pode ser aplicada, é apenas humor etc., mas, outra vez: fala sério.

           Por sinal que "T.I.Y." é um episódio ótimo, cheio de suspense, ação e humor, mas tem um final completamente furado e, por outras razões, é uma tremenda ameaça à continuidade — inclusive porque muitos elementos históricos são fundados nele. Uma referência clássica à Clássica (perdoem-me a redundância) é a expedição a Saturno comandada por Shaun Geoffrey Christopher, mencionada unicamente nesse episódio. Da mesma forma — e esta é imbatível — a tão controversa, combatida e idolatrada referência a uma classe Constitution de apenas doze naves, feita por Kirk casualmente a Christopher no turboelevador ("Deve ter custado uma fortuna uma nave deste tamanho." — "Só há doze como esta na frota.").

           Aí, muita gente se agarra (eu sou um) à célebre identificação da cerveja romulana em A Ira de Khan: "safra de 2283". Pensamos: arrá! Identificou século XXIII! E eu digo: não, senhor. Só está dizendo que o filme é ambientado em ou após 2283. Pode ser qualquer ano: 2284, 2286, 2293, 2301, 2364 e até, por que não, 3341 ou 5967. E isso se quisermos entender a frase com a implicação de ser 2283 do nosso calendário. Pode muito bem ser o romulano ou algum outro. Pode nem ser calendário.

           3. A odiada tradução "vulcaniano" — Para informação de vocês, Spock declara-se um "Vulcanian" (sic) no original em inglês, não uma, mas várias vezes, em "Court Martial" e, depois, de novo, em "A Taste of Armageddon". E agora? será que essa tradução é tão errada assim?

           4. Teletransporte com os escudos levantados — Impossível, certo? Requer alguns milagres e malabarismos, equalização de freqüências, habilidades incomuns de Scotty ou O'Brien, certo? Pois é. No entanto, fizeram isso duas vezes, e bastante casualmente, em "A Taste of Armageddon", sem nem ao menos atentarem para o fato de estarem furando os escudos — que, a propósito, não são chamados de "escudos", shields, mas de "telas", screens. Naquela época, ninguém ligava muito para esses bloqueios.

           Aqui, pode-se aplicar a Velha Máxima do Leandro e dizer que, olha, o fato de não terem mencionado os malabarismos não quer dizer que não tenham acontecido; pode ter sido um caso, sim, de exceção a uma regra já estabelecida etc. etc. Verdade, concordo. Mas isso seria um excesso de uso, aviltador da Velha Máxima, que é como o vinho: deve ser consumida com moderação e, principalmente — nunca é demais lembrar, tem gente que não o tem —, bom senso.

           É muito bom rever a série Clássica de vez em quando. Por todos os motivos habituais, mas também por esses. Para, inclusive, refrescar conceitos, voltar às origens. Para que não nos percamos em tecnicalidades e vejamos que o que realmente importa não é a continuidade a qualquer preço, mas a qualidade das histórias: a Clássica era a série que dava menos importância à continuidade, menos ainda, talvez, do que Voyager ou Enterprise. No entanto, é o que é e dura. Por quê? Por causa da qualidade das histórias, dos personagens, atuações e drama. Ninguém liga para a continuidade, que se ajusta se você souber dar importância ao que é importante.

           Dois de meus melhores professores dizem sempre que se deve voltar aos fundamentos, deixar a perfumaria para lá. O mesmo vale para Jornada nas Estrelas. É sempre bom voltar a ver a série Clássica, especialmente depois de um tempo, para recuperar o foco e "rever conceitos" (detesto essa expressão, mas creio que seja o caso).


João Paulo Cursino é o consultor para termos militares e técnicos nas traduções das séries Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager para a televisão brasileira.

Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente no Portal Jornada nas Estrelas Brasil (http://www.jornadanasestrelas.net) em 3 de maio de 2003 sob específica permissão do autor e republicado em http://www.geocities.com/jpcursino/tosnc.htm em 12 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omissão da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é registrado.

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