por João Paulo Cursino P. Santos
Este artigo continua a série que, através de
exemplos, procura mostrar a dinâmica do processo de tradução para dublagem de
Jornada nas Estrelas. Desta vez, trataremos de um tema que, há tempos,
traz dúvidas a muitos trekkers: o grau hierárquico do Chefe O'Brien.
Oficiais e praças
Em todo o mundo, a hierarquia militar é dividida em
dois grandes estratos: os oficiais e as praças (assim mesmo, no
feminino). Existem várias diferenças entre os dois grupos, mas a principal é que
somente os oficiais podem assumir funções permanentes de comando, seja de um
pequeno pelotão (no caso de um Segundo-Tenente) ou de um exército inteiro (caso
de um General-de-Exército). Existem exceções a essa regra, chamadas praças
especiais, mas delas não trataremos aqui.
Outra diferença é que somente os oficiais possuem
uma patente. Segundo o Aurélio, patente significa
claro, visível. Assim, uma patente industrial é o título que exibe
uma invenção, para que todos saibam que seus privilégios são exclusivos do
inventor. Da mesma forma, uma carta patente é o documento que comprova
o grau hierárquico do oficial.
Em inglês, os oficiais são ditos officers,
palavra que tem um sentido mais abrangente do que o português oficial e não
necessariamente se refere a militares. Assim, o policial civil também é dito police
officer, assim como uma empresa tem seu Chief Executive Officer (CEO).
Para especificar os oficiais militares, o inglês chama-os de commissioned
officers ("oficiais comissionados"), porque, em séculos passados, suas
prerrogativas eram estabelecidas por uma carta de comissão emitida pelo Rei — à semelhança de nossa carta patente. Portanto, quando um oficial inglês
é punido e loses his commission, diz-se, em português, que ele perde sua
patente.
Em contraste, as praças mais qualificadas são ditas
petty officers ou non-commissioned officers, "oficiais não
comissionados", o que, freqüentemente, abrevia-se para non-com ou NCO.
Todas as praças também são chamadas de enlisted, mas essa palavra
costuma ser mais usada especificamente para as praças menos qualificadas.
Petty officers
Segundo se vê na literatura, Gene Roddenberry
determinou que
"A categoria de 'praças' ['enlisted men'] não existe. Jornada
nas Estrelas funciona com a premissa de que todo
homem e mulher a bordo da U.S.S. Enterprise seja equivalente a um astronauta
qualificado, portanto um oficial [officer]."
(WHITFIELD, Stephen E.; RODDENBERRY,
Gene. The Making of Star Trek. New York: Ballantine, 1991. p.
209.) Confirmando meu artigo sobre a natureza militar da
Frota, esse texto é ambíguo. Para "oficial", o original diz apenas "officer", não
necessariamente excluindo os non-commissioned officers. Isso permite o
entendimento de que haja praças, contanto que sejam NCO, que têm maior
qualificação. Mesmo assim, a interpretação mais popular atribui ao Grande Pássaro
da Galáxia a declaração de que sua Frota Estelar realmente não teria praças. Isso
encaixa-se na analogia aos astronautas, que, no tempo da primeira edição do livro
(1968), eram sempre oficiais.
Entretanto, Jornada nas Estrelas é uma obra
compartilhada, tendo ganhado vida própria e fugido ao controle de seu criador. Das
diversas evidências contra aquela posição original, destacam-se duas: o tripulante
Simon Tarses, que "The Drumhead" enfatizou não ser um oficial; e o Chefe O'Brien,
com sua célebre "insígnia mutante". Ao longo das séries, O'Brien já foi visto com
insígnias idênticas às de Tenente e de Alferes, além de outras duas que não
apareceram em nenhum oficial, apesar de, aparentemente, ter sido promovido
apenas uma vez.
Independentemente das insígnias, o que importa é
que O'Brien já disse e repetiu que não é um oficial.1 Mais ainda: em "Family",
Sergey Rojenko fica feliz em cumprimentar o irlandês, "um Chief Petty
Officer" como ele. Nos dias de hoje, petty officer é um nome comum a
vários graus hierárquicos de praças da Marinha dos Estados Unidos, equivalentes a
nossos sargentos. Isso sugere traduzir petty officer como sargento;
mas, para tanto, seria preciso que o termo original fosse sergeant (conforme
usado pelas outras forças de lá), o que não é. Petty vem do francês
petit (pequeno) e, efetivamente, aquela Marinha chama suas praças
de "oficiais pequenos". Idealmente, a tradução de Chief Petty Officer deve, de
algum modo, repetir o étimo da palavra oficial.
No caso de "Family", também era preciso encontrar
uma locução que se encaixasse na bocada do ator. Apesar de o CPO ser uma
praça, isso conseguia-se pelo uso da palavra oficial mais outra que a
completasse, de modo que este consultor escolheu oficial ajudante. Contudo,
tal escolha passava a impressão errada, e o raciocínio seguido permitia conflitos no
futuro. Era preciso encontrar uma tradução substituta e, nos anos seguintes, tracei o
que se segue.
Em primeiro lugar, é preciso que a tradução para
petty officer denote estar "abaixo" dos oficiais, ao mesmo tempo em que
apareça a palavra oficial. Portanto, propõe-se suboficial. Surge, aí, um
problema: a expressão petty officer não se aplica a um, mas a sete graus
hierárquicos navais (Petty Officer First Class, Chief Petty Officer, etc.),
enquanto, no Brasil, Suboficial é o nome dado a apenas *um* grau
hierárquico da Marinha.
Por outro lado, não existe nenhuma outra expressão
da Marinha americana que se deva traduzir como suboficial. Então, não há
incompatibilidade; poderemos traduzir como Suboficial de Primeira Classe,
Suboficial-Chefe etc. Portanto, fica a ressalva de que o nome
Suboficial na Marinha americana não é como o Suboficial na Marinha
do Brasil. Este é um caso de tradução com significado diferente do que a palavra
tem no Brasil, mas não seria o único: por exemplo, o Sub-Lieutenant (oficial)
da Real Marinha (Reino Unido) está no mesmo nível de nosso Segundo-Tenente e
acima de nosso Subtenente (praça); o Sergeant Major é um sargento (praça),
mas o Sargento-Mor do Brasil Colônia tornou-se o atual Major (oficial).
Assim, ficou escolhido que Chief Petty
Officer poderia traduzir-se como Suboficial-Chefe.
Confirmação
Em Guaratinguetá, SP, a Força Aérea Brasileira mantém sua Escola de Especialistas
da Aeronáutica. Ali, são formados mecânicos de aeronaves, técnicos em eletrônica avançada e controladores de vôo, que, após concluir o curso, são as praças mais
qualificadas daquela Força. Quando eu acreditava que esta matéria já estivesse pronta, descobri que a Força Aérea Argentina possui uma escola semelhante, que,
na bibliografia, foi objeto do seguinte comentário:
"The Escuela de Suboficiales (NCO School), (...)"
(MOSQUERA, Javier; CETTOLO, Vladimiro; MARINO, Atilio. Argentine Air Force. Air International, Stamford, Lincs, UK, v. 64, n. 4, p. 45, Apr. 2003.) Podemos tomar essa como uma confirmação da possibilidade de se traduzir non-commissioned officer como suboficial.
Considerada a analogia entre NCO e petty officer, esse é um argumento favorável. Naturalmente, isso dependerá do contexto, pois "praça" também pode aplicar-se.
Consulte-se, ainda, o Dicionário inglês-português editado por Antônio Houaiss (Rio de Janeiro: Record, 2002). Ali, a tradução dada a petty officer é suboficial, sem dúvida pela carência de um termo sem outro significado.
(Por outro lado, discordo de muitas traduções que o mesmo dicionário dá para postos militares.) "Hippocratic Oath"
Para este episódio da quarta temporada de
Deep Space Nine, surgiu a missão de traduzir a passagem abaixo, referente
a O'Brien.
Para designar o grau hierárquico de qualquer
militar, a única palavra inglesa é rank. No Brasil, a palavra correta varia. Nos
termos do Estatuto dos Militares (Lei no 6.880, de 9 de dezembro de 1980), artigo 16 (com
grifos deste autor),
"§ 1o - Posto é o grau hierárquico do oficial, (...) confirmado
em Carta Patente. (...)
"§ 3o - Graduação é
o grau hierárquico da praça, (...)." Ora, se O'Brien é uma praça, a frase "Rank: Chief
Petty Officer" é fácil de se traduzir como "Graduação: Suboficial-Chefe". O problema é
que, logo em seguida, o trecho abaixo é dito a respeito de Bashir.
E agora? Bashir é um oficial; logo, o correto seria
dizer "Posto de Tenente". Mas o objetivo do original em usar a mesma palavra
rank foi enfatizar a diferença hierárquica entre os dois personagens. As distintas
traduções posto e graduação impedem o uso de uma mesma palavra
em português e, com ela, a comparação.
Impedem? O Estatuto deixou uma brecha: ambos os
parágrafos mencionam grau hierárquico, tornando a expressão comum aos dois
casos. Infelizmente, não há espaço na bocada para rank se tornar grau
hierárquico: conte as sílabas! Portanto, o Leitor poderá ouvir, na versão dublada do
episódio, as falas que se seguem.
Por curtas que sejam, essas falas sintetizam toda a
dedicação desta equipe à tradução de Jornada nas Estrelas para a audiência
brasileira. De fato, cada pequena frase que se ouve pode congregar horas de pesquisa
e reflexão. Nesta peça, o autor espera ter contribuído para formar uma percepção do
trabalho que se derrama sobre cada detalhe, cujo resultado verificamos quando
assistimos às séries dubladas.
Nota
João Paulo Cursino foi oficial do Exército até 2003 e é
o consultor
para termos militares e técnicos nas traduções das séries Jornada nas Estrelas: A Nova
Geração, Deep Space Nine e Voyager para a televisão brasileira.
Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei
no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente em
http://www.geocities.com/jpcursino/obrien.htm em 8 de junho de 2004. A reprodução só é franqueada a quem
obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a
reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página
de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com
omissão
da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra
do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é
registrado.
Jornada nas Estrelas e tudo que vai dentro são marcas da Paramount
Pictures, não pretendo violar normas nem direitos, esta página é só diversão, não há
finalidade comercial, etc.
jpcursino(arroba)yahoo.com
8 de junho de 2004