por João Paulo Cursino
P. Santos
Quem começa a assistir a Jornada nas Estrelas
logo se familiariza com a natureza aparentemente militar da Frota Estelar. Embora
pareça óbvia, essa característica é veementemente contestada por muitos trekkers,
com boas razões. Neste artigo, analisam-se alguns aspectos que sustentam as
afirmações em ambos os lados da questão.
Quando Gene Roddenberry concebeu Jornada nas
Estrelas, ele não foi inteiramente claro em sua escolha a respeito da Frota Estelar.
Conforme se vê na literatura,
"Apesar de a Enterprise ser uma nave militar,
sua organização é apenas semimilitar. (...) O POSTO, QUANDO USADO APROPRIADAMENTE,
PODE SER UMA FORMA AGRADÁVEL DE RECONHECER ASCENDÊNCIA (...) SE OS
TRIPULANTES SE LEVANTAM QUANDO NOSSO CAPITÃO ENTRA NA SALA, (...) ELES
ESTÃO, DE FATO, DIZENDO "AQUI ESTÁ UM HOMEM QUE ATINGIU GRANDES
REALIZAÇÕES, FOI AGRACIADO COM ALTAS HONRAS E CONQUISTOU GRANDE
ACLAMAÇÃO". (...) E VOCÊ NÃO PRECISA SER MILITAR PARA FAZER ISSO. (...) Entretanto,
muitas das tradições, títulos e terminologia do passado foram mantidos. Da mesma forma como
nossa Marinha de hoje guarda vestígios do tempo de Drake."
(WHITFIELD, Stephen E.; RODDENBERRY, Gene. The Making of
Star Trek. New York: Ballantine, 1991. p. 209-210. Os trechos em CAIXA ALTA são
de Roddenberry; os demais, de Whitfield.) Ou seja, a palavra do próprio Grande Pássaro da Galáxia é
ambígua, dizendo apenas que a Frota não é necessariamente militar e
permitindo a analogia com as marinhas de hoje.
É preciso ver que, especialmente no início da série Clássica, a
instituição a que pertencia a Enterprise não estava claramente identificada. Em
"The Conscience of the King", fala-se em "serviço espacial"; em "Tomorrow Is
Yesterday", na "Agência de Pesquisa Espacial da União Terrestre". Esses nomes
merecem suas próprias análises, que não serão traçadas aqui. Por ora, cabe dizer que
a palavra inglesa "service" costuma ser empregada no sentido de "força armada", mais
do que nosso "serviço militar" em português. Tal nomenclatura autoriza ressalvas à
noção de "não militar".
Além disso, algumas evidências permitem especular sobre uma
Frota de natureza militar. Tomem-se os uniformes por exemplo. Seu uso generalizado
e portador de uma simbologia (posto, especialidade e, na Clássica, distintivo para a
nave) assemelha-se ao que se vê nas forças armadas atuais. Esse uniforme está
sujeito a um regulamento estrito, evidenciado pela proibição do brinco bajoriano em
"Ensign Ro". De ainda maior importância é a hierarquia, com postos que têm os
mesmos nomes daqueles na Marinha dos Estados Unidos. Há uma estrutura bem
definida, com uma clara divisão de funções e responsabilidades conforme o grau
hierárquico — tal como nas forças armadas atuais.
Há mais aspectos da Frota Estelar que se originam no ideário
militar. Alguns exemplos são a noção de que a decisão de um oficial é final; o credo de
que não se questionam as ordens de um superior; e a responsabilidade do superior
pelos atos dos subordinados (neste caso, cabe lembrar que somente se imputa a
alguém a responsabilidade por um ato quando essa pessoa pode decidir sobre ele).
Alguns desses aspectos oriundos da caserna são mais explícitos e rígidos: a exigência
de continuado cumprimento do dever e a sujeição à corte marcial são típicas
manifestações que se aplicam ao pessoal da Frota.
A visão de uma Frota Estelar que fosse ao menos inspirada em
instituições militares cresceu com a interpretação do diretor Nicholas Meyer em seu
A Ira de Khan. Para esse filme, Meyer escolheu não apenas um uniforme
bastante distinto, mas, também, uma estrutura e seus procedimentos regulamentares,
todos ajustados coerentemente a um padrão castrense. Essa visão seria reforçada pelo
mesmo diretor em A Terra Desconhecida.
Por mais atraentes que sejam essas evidências, elas não parecem
bastar para uma qualificação definitiva. Uniformes, símbolos, hierarquia e regulamentos
são comuns em muitas instituições, não apenas as militares. Esses itens estão
presentes, por exemplo, em companhias aéreas. Os demais elementos valorativos e
legais também encontram similares civis.
Quando a Nova Geração foi criada, alguns componentes
militares fizeram-se presentes desde o início: em "Encounter at Farpoint", Riker cobra
posição de sentido de um informal LaForge. Mesmo assim, a ambigüidade
roddenberriana manteve-se. Nas palavras de Otto Heuer,
"De acordo com o ST:TNG
Writer's/Director's Guide (1987):
"A Frota Estelar NÃO é uma organização militar... Não há
continência. Podemos ouvir a palavra 'Senhor', mas sua intenção é o mesmo tipo de cortesia
usado por profissionais juniores e seniores em aeronaves comerciais...
"A Frota Estelar ainda é basicamente não militar (exceto quando
encurralada, como na situação com os borgs). O ST:TNG Writer's Technical
Manual da quarta temporada diz para mentalmente fundirmos a NASA, a Guarda Costeira e
navios de pesquisa como o Calypso para termos um conceito da missão da
Enterprise. Imagino que devamos acreditar que cortes marciais sejam não militares, hm?"
(HEUER, Otto. Welcome to the "Frequently Asked Questions" List
from rec.arts.startrek.misc. WWW: http://www.ee.surrey.ac.uk/Contrib/SciFi/StarTrek/FAQ.html, 27/10/1994.) De todo modo, nota-se que, no primeiro ano da NG,
os personagens passaram a ser mais cooperativos e voltou-se ao estado original
de um sentimento não militar entre irritantes "amiguinhos".
Um detalhe que puxa para a tese da Frota militar é sua radical
missão de combater as guerras da Federação de Planetas Unidos, como se vê em
"Errand of Mercy" e, de forma menos aberta, em "Balance of Terror" e "Arena". Da
mesma forma, aquele pacífico estágio inicial da NG não durou muito: com a redução da
influência do Grande Pássaro, a Frota voltou a militarizar-se. A nova onda recrudesceu
em face de hostilidades trazidas à composição das histórias, com a contínua guerra
contra os borgs, o retorno dos romulanos ao cenário cosmopolítico e a revelação de
tensões remanescentes após um conflito com Cardássia.
A esse propósito, não resta dúvida de que a Frota tem sido
encarregada de implementar a política externa traçada pela diplomacia da Federação.
Ao longo de todas as séries, os exemplos são vastos, como em "A Piece of the Action",
"Unification", "The Adversary", "Caretaker" e até mesmo no lamentável Nêmesis.
Por isso, repetidas vezes, a missão de fazer a guerra veio às mãos da Frota Estelar.
Três anos após o fim da NG, os produtores de Deep Space Nine jogaram
a Federação em uma guerra contra o Dominion, expondo-nos ao retrato de uma Frota
imersa em operações táticas. Essa aparência tem dominado a Internet desde então,
evidenciando uma aceitação geral, entre os trekkers mais recentes, de que a Frota seja
plenamente militar.
Se a Frota Estelar ainda é ostensivamente destinada à exploração
pacífica do espaço, ressalte-se que, pelos elementos oferecidos a quem assiste, ela
também é a única instituição a fazer uso das armas em defesa da Federação. Várias
naves não pertencentes à Frota têm sido vistas a explorar o espaço ("Hero Worship",
"Vortex"), mas não se tem visto qualquer emprego bélico fora da força. Da mesma
forma, quando se discute a polêmica existência de um Corpo de Fuzileiros da Frota
Estelar, há sempre a idéia de ele ser parte integrante da Frota, não uma corporação à
parte.
Apesar da tentação oferecida pelos elementos acessórios,
prefiramos ater-nos a essências. O que define uma instituição militar não é tanto seu
emprego em operações bélicas quanto seu papel institucional e, com igual (senão
maior) importância, sua fundamentação em hierarquia e disciplina. Cabe lembrar que,
no Brasil, os Corpos de Bombeiros e Polícias Militares são definidos como tais, mas
não são forças armadas nem se dedicam a operações de guerra. O mesmo se pode
dizer da Guarda Costeira dos Estados Unidos, subordinada ao Departamento de
Comércio em tempo de paz. Assim é que a nitidez e a consistência com que se
respeita a hierarquia da Frota a constituem no elemento que mais fortemente leva o
trekker a atribuir uma natureza militar à instituição. Portanto, passemos à disciplina.
Na Antigüidade, os exércitos sempre aterrorizaram as populações.
Os soldados eram homens rudes, pagos pelas pilhagens e divertindo-se em estuprar
as filhas do inimigo. Na Baixa Idade Média, a classe dominante européia iniciou uma
tradição em contraste com aquele triste histórico, adotando os ideais de nobreza da
cavalaria e condenando excessos mundanos. No século XVII, o austero Oliver
Cromwell aproveitou esses ideais e criou o primeiro exército cujos homens se faziam
respeitar pela disciplina, atingindo uma eficiência que modelou o exemplo para todas
as forças armadas.
Desde então, a evolução tem sido contínua. Já não se vêem as
fáceis penas de morte daquele tempo; na Marinha do Brasil, a Revolta da Chibata pôs
fim aos castigos corporais em 1910; e os soldados já não são presos se faltar um botão
no blusão, como no Brasil de cinqüenta anos atrás. De modo geral, podemos observar
um decréscimo das imposições disciplinares ao longo dos séculos recentes. Isso
permite uma especulação: como será a disciplina dentro de mais trezentos anos? Não
seria de espantar se víssemos militares mais descontraídos no trabalho e, quiçá,
mesmo a continência fosse abolida. A disciplina poderia vir mais de um respeito sincero
do que de uma imposição regulamentar, especialmente se a humanidade adotasse
valores mais evoluídos. Isso parece familiar?
Segundo uma percepção já exposta pelo autor em seu artigo
A
canonicidade em Star Trek, uma obra compartilhada não resulta apenas da visão
de uma pessoa. Com as inovações trazidas por outros, ela adquire vida própria,
podendo, até mesmo, discordar das intenções de seu criador original. Realmente, há
vários elementos de Jornada nas Estrelas que contrariam as determinações de
Gene Roddenberry, sem, com isso, diminuírem o valor deste universo.
Em face dos elementos essenciais da hierarquia e da disciplina,
aliados à função institucional de implementação da política externa estatal, torna-se
razoável concluir que a Frota Estelar se enquadre em uma definição militar. Esse é o
ponto de vista do autor, baseando-se em evidências dispersas pelo conjunto da obra
de Jornada e resolvendo as ambigüidades da formulação original de Gene
Roddenberry. Por outro lado, reconheça-se: também parece haver razões bastantes
para não se desconsiderar o entendimento contrário.
No final das contas, tudo que se pode afirmar definitivamente é que
o debate sobre esta questão não está encerrado. Como, de ordinário, ocorre a tanta
coisa em Jornada nas Estrelas.
Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei
no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente em
http://www.geocities.com/jpcursino/frotamil.htm em 12 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem
obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a
reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página
de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com
omissão
da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra
do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é
registrado.
Jornada nas Estrelas e tudo que vai dentro são marcas da Paramount
Pictures, não pretendo violar normas nem direitos, esta página é só diversão, não há
finalidade comercial, etc.
jpcursino(arroba)yahoo.com
29 de maio de 2004