Leitura e escrita: um processo geminado

Adair de Aguiar Neitzel

Doutoranda em Literatura - UFSC

Professora da Rede Pública Estadual de SC

Cientes de que o ensino da Língua Portuguesa não pode restringir-se à transmissão de regras gramaticais e de que a leitura pode ser uma atividade deflagradora da produção textual, buscamos alternativas de trabalho para as aulas de Língua Portuguesa e Literatura, conjugadas com as modernas tecnologias, especificamente a informática. A primeira reflexão que propomos é: para que escrevemos na escola? Se o estudante não pode sociabilizar seus escritos, a tarefa de escrita pode tornar-se uma atividade vazia de significação. Escrever é um ato que envolve partilha, doação, reciprocidade. Esse é um dos problemas da redação escolar, escreve-se para um único leitor: o professor.

A segunda reflexão que propomos é sobre o ato de leitura. "Le verbe 'lire' avait, pour les Anciens, une signification qui mérite d'être rappelée et mise en valeur en vue d'une compréhension de la pratique littéraire. 'Lire' était aussi 'ramasser', 'cueillir', 'épier', 'reconnaître les traces', 'prendre' 'voler'. 'Lire' dénote, donc, une participation agressive, une active appropriation de l'autre. 'Ecrire' serait le 'lire' devenu production, industrie: l'écriture-lecture, l'écriture paragrammatique serait l'aspiration vers une agressivité et une participation totale. ('Le plagiat est nécessarie'— Lautréamont.)" (Kristeva).

HARPER, Babette et alii. Cuidado, escola! desigualdade, domesticação e algumas saídas. 23ª ed. Brasiliense, 1986.Assim, ler não é uma atitude passiva, não se reduz a simples decodificação de sinais gráficos, mas pressupõe uma atividade de reconstrução de sentidos. Ela não é um ato solitário porque envolve o diálogo com o interlocutor, que pode ser com diversos escritores. No momento em que fazemos o cruzamento de um texto com outro, que introduzimos questões, os interlocutores ampliam-se. Nesse sentido, a leitura é sempre escritura, são processos geminados. O texto literário apresenta sempre o duplo escritura-leitura, ele é uma rede de conexões, atravessado por várias formações discursivas. Leitura e escrita são processos intercomplementares.

Todo texto possui linhas de força e pode atuar sobre o histórico, porque ele é composto de signos e estes são portadores de sentido que variam de acordo com o contexto: "Le texte donc est doublement orienté: vers le système signifiant dans lequel il se produit (la langue et le langage d'une époque et d'une société précise) et vers le processus social auquel il participe en tant que discours" (Kristeva). O texto anuncia a existência de vários discursos, ele desperta, acorda o adormecido. A sociedade escreve-se no texto, pois este não é a simples reunião de enunciados sintagmáticos e gramaticais.

Preocupados então com a leitura e a produção no espaço escolar, propomos que essas duas atividades, tratadas a partir de agora como uma única, sejam aliadas às modernas tecnologias, especificamente o uso do computador. Nosso objetivo é utilizar a máquina como uma ferramenta que enriqueça a leitura e a produção, através da confecção de homepages.

A utilização do computador em sala de aula pode oferecer meios de divulgar, sociabilizar a produção escolar. O texto ao ser lançado à rede pode ser acessado de qualquer parte do mundo. Compartilhar o escrito com várias pessoas oferece sentido à redação escolar. Além disso, as ferramentas disponibilizadas por alguns programas de edição de texto, como o corretor do Word, auxiliam os alunos e o professor na correção ortográfica das redações. A produção de homepages (hipertexto) altera a visão da redação escolar e da pesquisa, sua forma de composição, estruturação, bem como a leitura.

A composição tipográfica e topográfica da homepage promove diferentes modos de pensar, formas de organizar o pensamento e a ação, de se relacionar com o conhecimento. É um outro tipo de acesso ao patrimônio da cultura humana. Um meio que desafia, exige e estimula o intelecto. Sua produção requer operações intelectuais que vão desde o manuseio da escrita, da imagem, do som, até a escolha da melhor cor, tamanho e tipo de letra, etc. Essa atividade exige atenção, abstração, capacidade de comparar e diferenciar. Ela é uma rede potencialmente infinita de comentários e debates.

Os alunos iniciam a construção de um sítio a partir da célula mater: Madalena, conto de Clarmi Régis. Ao abrigo do imaginário, ocorre a proliferação desse conto, acontecendo a coabitação de diversas produções, é a etapa de captação de sentidos, abraçando-se diversas construções por analogias e/ou contrastes que gerem diferentes práticas significantes.

O discurso literário torna-se um gesto representativo de uma coletividade produtora: cada texto linkado ao texto-mater é responsável pela nova significação que Madalena passa a ter. Clarmi Regis não é mais a escritora onipotente e onipresente, seu texto estabelece uma ponte para outros escritos, ele é parte de uma produção coletiva, sua dimensão democrática se esgarça na tela do computador. Ela divide essa responsabilidade com uma coletividade que alarga o campo semântico de seu conto com estruturas complementares. Além disso, a medida que o leitor vai linkando ao texto-mater outros escritos ele torna-se, literalmente, escritor.

Essa transgressão do espaço do papel à tela do computador oferece uma liberdade de compilação que é difícil manter fora do ecrã. Sabemos que o cruzamento de informações não é uma característica singular do texto digitalizado, do hipertexto, pois as palavras possuem sua carga semântica e ambígua independente do meio de veiculação das informações. Qualquer texto literário "se présente comme un système de connexions multiples qu'on pourrait décrire comme une struture de réseaux paragrammatiques. Nous appelons réseaux paragrammatique le modèle tabulaire (non linéaire) de l'élaboration de l'image littéraire, autrement dit, le graphisme dynamique et spatial désignant la pluridétermination du sens (différent des normes sémantiques et grammaticales du langage usuel) dans le langage poétique. Le terme de réseau remplace l'univocité (la linéarité) en l'englobant, et suggère que chaque ensemble (séquence) est aboutissement et commencement d'un rapport plurivalent."(Kristeva).

Entretanto, não podemos ignorar que o computador é um meio muito mais favorável a esses diálogos e cruzamentos textuais pela sua capacidade de armazenamento. Do ponto de vista da produtividade, o leitor tem maior liberdade de reescritura que o escritor no texto impresso. A folha de papel é um espaço restrito para o escritor, o livro é um espaço finito para seu idealizador.

No hipertexto encontramos um processo que materializa as relações no texto e entre textos. A lei da linearidade é quebrada. Mesmo que o texto impresso priorize o código da lógica não linear, induzindo o leitor a efetuar mentalmente cruzamentos, mantendo o processo dinâmico da leitura-escritura, o hipertexto formaliza esse código organizando-o e exteriorizando-o. Nesse sentido, o hipertexto revela-se como uma prática literária de exploração e descoberta das possibilidades de expressão da linguagem verbal e não-verbal, libertando o sujeito de certas restrições materiais.

Esse duplo jogo de leitura e construção insere o texto num processo em constante movimento, pois ele jamais se encerra, mesmo quando volta-se para si próprio é reconstruído, a cada link ele é enriquecido, portanto sua estrutura é móvel. Há a exploração semântica da superfície lingüística do conto, gerando diversas práticas significantes. Ele ata-se a outros textos, dobra e desdobra-se, é lido e relido pelas suas dobras, alterando o sistema semiótico em que está inserido. O leitor não é submetido a um único centro regulador de sentido, pois "le texte se construit une zone de multiplicité de marques et d'intervalles dont l'inscription non centrée met en pratique une polyvalence sans unité possible" (kristeva). Cada signo é a janela, a entrada para outro texto.

Um processo ao mesmo tempo catalisador e estrelar, envolto num imenso movimento de vaivém; ao mesmo tempo que o indivíduo filtra as informações elas são vaporizadas. O texto renasce a cada link efetuado, a palavra é semente que germina e brota uma nova página através de seu potencial criador.

Segundo kristeva o diálogo comumente estabelecido entre os textos é uma seqüência duplamente orientada pelo ato de reminescência — a necessidade de chamar outro texto — e pela somatória, a transformação dessa escritura. Essa junção de sintagmas onde um endereça-se ao outro dá-se por significação, descrição, narração num ato de complementação, mas também por exclusão abrindo espaço para a coexistência de paradoxos.

Parte-se do sema para trabalhar-se a exploração da verticalidade do texto, buscando não só os significados dos signos, mas desencadeando um processo de construção que gerará outros significantes e significados. A expansão da palavra-tema determina o florescimento da rede. "Aussi voit-on de nos jours le texte devenir le terrain où se joue: se pratique et se présente, le remaniement épistémologique, social et politique" (Kristeva).O texto gerado e o compilado estão presentes um no outro, numa relação dialógica.

Esse trabalho evidencia a ambivalência dos enunciados linguísticos; a linguagem é tratada segundo a lingüística generativa que a vê como sistema dinâmico de relações. As palavras não se encerram na lei gramatical que as quer reger, por isso é comum o leitor relacionar ao texto faces desconhecidas pelo próprio escritor.

Deslizando do círculo da pura digestão do texto didático, bem como da pura utilização do computador como mais um meio tradicional de transmissão de informação, buscamos transformar as aulas de Língua e Literatura num teatro de múltiplos cenários, onde o espectador diverte-se errando (segundo Nietzche o homem moderno tornou-se o espectador que se diverte e erra).

Bibliografia Básica:

BARTHES, Roland. S/Z — uma análise da novela Sarrasine de Honeré de Balzac. Trad. de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

DELEUZE, Guilles e GUATTARI, Félix. "Introduction: Rhizome", em Mille Plateaux. Capitalisme e Schizophrénie. Les Editions de Minuit, Paris, 1980.

LUIZ DOS SANTOS, Alckmar. http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/hiper.html.#hipertexto . Por uma teoria do hipertexto literário.

KRISTEVA, Julia. Semeiotike: Recherchers pour une sémanalyse, coleção Points - Essai, Editions du Seuil, Paris.

 

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Última atualização: 26/03/01 11:26:41

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