Leitura e escrita: um processo geminado
Adair
de Aguiar Neitzel
Doutoranda em Literatura - UFSC
Professora da Rede Pública Estadual de
SC
Cientes de que o ensino da Língua Portuguesa não
pode restringir-se à transmissão de regras gramaticais
e de que a leitura pode ser uma atividade deflagradora da
produção textual, buscamos alternativas de trabalho
para as aulas de Língua Portuguesa e Literatura,
conjugadas com as modernas tecnologias, especificamente a
informática. A primeira reflexão que propomos é: para
que escrevemos na escola? Se o estudante não pode
sociabilizar seus escritos, a tarefa de escrita pode
tornar-se uma atividade vazia de significação. Escrever
é um ato que envolve partilha, doação, reciprocidade.
Esse é um dos problemas da redação escolar, escreve-se
para um único leitor: o professor.
A segunda reflexão que propomos é sobre o ato de
leitura. "Le verbe 'lire' avait, pour les Anciens,
une signification qui mérite d'être rappelée et mise
en valeur en vue d'une compréhension de la pratique littéraire.
'Lire' était aussi 'ramasser', 'cueillir', 'épier', 'reconnaître
les traces', 'prendre' 'voler'. 'Lire' dénote, donc, une
participation agressive, une active appropriation de l'autre.
'Ecrire' serait le 'lire' devenu production, industrie: l'écriture-lecture,
l'écriture paragrammatique serait l'aspiration vers une
agressivité et une participation totale. ('Le plagiat
est nécessarie' Lautréamont.)" (Kristeva).
Assim,
ler não é uma atitude passiva, não se reduz a simples
decodificação de sinais gráficos, mas pressupõe uma
atividade de reconstrução de sentidos. Ela não é um
ato solitário porque envolve o diálogo com o
interlocutor, que pode ser com diversos escritores. No
momento em que fazemos o cruzamento de um texto com outro,
que introduzimos questões, os interlocutores ampliam-se.
Nesse sentido, a leitura é sempre escritura, são
processos geminados. O texto literário apresenta sempre
o duplo escritura-leitura, ele é uma rede de
conexões, atravessado por várias formações
discursivas. Leitura e escrita são processos
intercomplementares.
Todo texto possui linhas de força e pode atuar sobre
o histórico, porque ele é composto de signos e estes são
portadores de sentido que variam de acordo com o contexto:
"Le texte donc est doublement orienté: vers le système
signifiant dans lequel il se produit (la langue et le
langage d'une époque et d'une société précise) et
vers le processus social auquel il participe en tant que
discours" (Kristeva). O texto anuncia a existência
de vários discursos, ele desperta, acorda o adormecido.
A sociedade escreve-se no texto, pois este não é a
simples reunião de enunciados sintagmáticos e
gramaticais.
Preocupados então com a leitura e a produção no
espaço escolar, propomos que essas duas atividades,
tratadas a partir de agora como uma única, sejam aliadas
às modernas tecnologias, especificamente o uso do
computador. Nosso objetivo é utilizar a máquina como
uma ferramenta que enriqueça a leitura e a produção,
através da confecção de homepages.
A utilização do computador em sala de aula pode
oferecer meios de divulgar, sociabilizar a produção
escolar. O texto ao ser lançado à rede pode ser
acessado de qualquer parte do mundo. Compartilhar o
escrito com várias pessoas oferece sentido à redação
escolar. Além disso, as ferramentas disponibilizadas por
alguns programas de edição de texto, como o corretor do
Word, auxiliam os alunos e o professor na correção
ortográfica das redações. A produção de homepages
(hipertexto) altera a visão da redação escolar e da
pesquisa, sua forma de composição, estruturação, bem
como a leitura.
A composição tipográfica e topográfica da homepage
promove diferentes modos de pensar, formas de
organizar o pensamento e a ação, de se relacionar com o
conhecimento. É um outro tipo de acesso ao patrimônio
da cultura humana. Um meio que desafia, exige e estimula
o intelecto. Sua produção requer operações
intelectuais que vão desde o manuseio da escrita, da
imagem, do som, até a escolha da melhor cor, tamanho e
tipo de letra, etc. Essa atividade exige atenção,
abstração, capacidade de comparar e diferenciar. Ela é
uma rede potencialmente infinita de comentários e
debates.
Os alunos iniciam a construção de um sítio a partir
da célula mater: Madalena,
conto de Clarmi Régis. Ao abrigo do imaginário, ocorre
a proliferação desse conto, acontecendo a coabitação
de diversas produções, é a etapa de captação de
sentidos, abraçando-se diversas construções por
analogias e/ou contrastes que gerem diferentes práticas
significantes.
O discurso literário torna-se um gesto representativo
de uma coletividade produtora: cada texto linkado ao texto-mater
é responsável pela nova significação que Madalena
passa a ter. Clarmi Regis não é mais a escritora
onipotente e onipresente, seu texto estabelece uma ponte
para outros escritos, ele é parte de uma produção
coletiva, sua dimensão democrática se esgarça na tela
do computador. Ela divide essa responsabilidade com uma
coletividade que alarga o campo semântico de seu conto
com estruturas complementares. Além disso, a medida que
o leitor vai linkando ao texto-mater outros escritos ele
torna-se, literalmente, escritor.
Essa transgressão do espaço do papel à tela do
computador oferece uma liberdade de compilação que é
difícil manter fora do ecrã. Sabemos que o cruzamento
de informações não é uma característica singular do
texto digitalizado, do hipertexto, pois as palavras
possuem sua carga semântica e ambígua independente do
meio de veiculação das informações. Qualquer texto
literário "se présente comme un système de connexions
multiples qu'on pourrait décrire comme une struture
de réseaux paragrammatiques. Nous appelons réseaux
paragrammatique le modèle tabulaire (non linéaire)
de l'élaboration de l'image littéraire, autrement dit,
le graphisme dynamique et spatial désignant la pluridétermination
du sens (différent des normes sémantiques et
grammaticales du langage usuel) dans le langage poétique.
Le terme de réseau remplace l'univocité (la linéarité)
en l'englobant, et suggère que chaque ensemble (séquence)
est aboutissement et commencement d'un rapport
plurivalent."(Kristeva).
Entretanto, não podemos ignorar que o computador é
um meio muito mais favorável a esses diálogos e
cruzamentos textuais pela sua capacidade de armazenamento.
Do ponto de vista da produtividade, o leitor tem maior
liberdade de reescritura que o escritor no texto impresso.
A folha de papel é um espaço restrito para o escritor,
o livro é um espaço finito para seu idealizador.
No hipertexto
encontramos um processo que materializa as relações
no texto e entre textos. A lei da linearidade é quebrada.
Mesmo que o texto impresso priorize o código da lógica
não linear, induzindo o leitor a efetuar mentalmente
cruzamentos, mantendo o processo dinâmico da leitura-escritura,
o hipertexto formaliza esse código organizando-o e
exteriorizando-o. Nesse sentido, o hipertexto revela-se
como uma prática literária de exploração e descoberta
das possibilidades de expressão da linguagem verbal e não-verbal,
libertando o sujeito de certas restrições materiais.
Esse duplo jogo de leitura e construção insere o
texto num processo em constante movimento, pois ele
jamais se encerra, mesmo quando volta-se para si próprio
é reconstruído, a cada link ele é enriquecido,
portanto sua estrutura é móvel. Há a exploração semântica
da superfície lingüística do conto, gerando diversas
práticas significantes. Ele ata-se a outros textos,
dobra e desdobra-se, é lido e relido pelas suas dobras,
alterando o sistema semiótico em que está inserido. O
leitor não é submetido a um único centro regulador de
sentido, pois "le texte se construit une zone de
multiplicité de marques et d'intervalles dont l'inscription
non centrée met en pratique une polyvalence sans unité
possible" (kristeva). Cada signo é a janela, a
entrada para outro texto.
Um processo ao mesmo tempo catalisador e estrelar,
envolto num imenso movimento de vaivém; ao mesmo tempo
que o indivíduo filtra as informações elas são
vaporizadas. O texto renasce a cada link efetuado, a
palavra é semente que germina e brota uma nova página
através de seu potencial criador.
Segundo kristeva o diálogo comumente estabelecido
entre os textos é uma seqüência duplamente orientada
pelo ato de reminescência a necessidade de chamar
outro texto e pela somatória, a transformação
dessa escritura. Essa junção de sintagmas onde um
endereça-se ao outro dá-se por significação, descrição,
narração num ato de complementação, mas também por
exclusão abrindo espaço para a coexistência de
paradoxos.
Parte-se do sema para trabalhar-se a exploração da
verticalidade do texto, buscando não só os significados
dos signos, mas desencadeando um processo de construção
que gerará outros significantes e significados. A expansão
da palavra-tema determina o florescimento da rede. "Aussi
voit-on de nos jours le texte devenir le terrain où se joue:
se pratique et se présente, le remaniement
épistémologique, social et politique" (Kristeva).O
texto gerado e o compilado estão presentes um no outro,
numa relação dialógica.
Esse trabalho evidencia a ambivalência dos enunciados
linguísticos; a linguagem é tratada segundo a lingüística
generativa que a vê como sistema dinâmico de relações.
As palavras não se encerram na lei gramatical que as
quer reger, por isso é comum o leitor relacionar ao
texto faces desconhecidas pelo próprio escritor.
Deslizando do círculo da pura digestão do texto didático,
bem como da pura utilização do computador como mais um
meio tradicional de transmissão de informação,
buscamos transformar as aulas de Língua e Literatura num
teatro de múltiplos cenários, onde o espectador diverte-se
errando (segundo Nietzche o homem moderno tornou-se o
espectador que se diverte e erra).
Bibliografia Básica:
BARTHES, Roland. S/Z uma análise da
novela Sarrasine de Honeré de Balzac. Trad. de Léa
Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
DELEUZE, Guilles e GUATTARI, Félix. "Introduction:
Rhizome", em Mille Plateaux. Capitalisme e
Schizophrénie. Les Editions de Minuit, Paris, 1980.
LUIZ DOS SANTOS, Alckmar. http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/hiper.html.#hipertexto
. Por uma teoria do hipertexto literário.
KRISTEVA, Julia. Semeiotike: Recherchers pour une sémanalyse,
coleção Points - Essai, Editions du Seuil, Paris.
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