Comunalismo e Autonomia

 

 


Apresentação
Parte 1 - Declaração dos povos serranos zapotecos e chinantecos da Sierra Norte de Oaxaca
Parte 2 - Discriminação e democracia em estado multiétnico
Parte 3 - Comunalismo e autoritarismo
Autonomia para os povos da Sierra Norte de Oaxaca



Parte 1 - Declaração dos povos serranos zapotecos e chinantecos da Sierra Norte de Oaxaca


por Jaime Martínez Luna

 

Recebemos com profunda preocupação os fatos que estão padecendo nossos irmãos indígenas no Estado de Chiapas. Embora a sociedade nacional se tenha manifestado surpreendida pela violenta presença no cenário militar e político do Exército Zapatista de Libertação Nacional; nós não. Temos considerado o fato como a grande possibilidade para que nós, povos indígenas, sejamos reconhecidos em nossas verdadeiras necessidades, para que contribuamos com os princípios e conhecimentos que temos possibilidade de oferecer para toda a sociedade.

É do conhecimento de todos o permanente genocídio que se abate sobre nossos povos. Depois de quinhentos anos, não se procura compreender os nobres ideais que nós, povos indígenas, temos reproduzido e mantido, o profundo respeito pela nossa mãe terra e seus herdeiros, a permanente convicção de consensar nossa participação, e nossa possibilidade de prosseguir dando a nosso país uma identidade cultural digna e gratificante.

O que sucede no Estado de Chiapas, nos convida e nos convoca a uma serena reflexão do que somos e do que queremos ser no futuro, da impostergável organização que devemos ter para tornar realidade os sonhos que estão sendo enterrados por meio da violência, do engano, da exploração e da marginalização. Tempos de decisão e de reflexão nos esperam. Por ele emitimos a seguinte declaração para contribuir o debate sobre nosso futuro, e o do México.

PRIMEIRO

Nosso trabalho e nossos recursos naturais tem sido entendidos unicamente como uma mercadoria, um valor e um suor que só serve para enriquecer economicamente a alguns homens nunca para enobrecê-los. O resultado desta mentalidade tem sido a aprobiosa exploração de nossos povos e a cruel e irracional exploração de nossos recursos naturais. Temos constatado isso na mineração, na silvicultura, na selvagem concentração do manejo de nossos recursos aquíferos, e inclusive na utilitária exploração de nossos alimentos em benefício de um desenvolvimento industrial urbano e alheio a nossas necessidades de bem estar.

Esta situação expulsou de nossas comunidades a milhares ou milhões de nossos irmãos em busca do pão, do abrigo, de condições de vida que de maneira sistemática nos foram arrebatadas. Apesar disso seguiremos resistindo, um exemplo dessa resistência, se bem que violenta, é manifestado na atualidade pelos nossos irmãos do EZLN. Não podemos dizer que nos orgulhamos de seu método de trabalho, mas compreendemos seu desespero.

Para a solução desta insustentável situação em que vivem nossos povos, fazemos a seguinte proposta:

1.- Que seja reintegrada a terra a todas aquelas comunidades que demonstrem pelo ouso e pelo direito, a posse de seu território. Que seja avaliada a capitalização de seus recursos naturais usurpados e que com seu pago, estes recursos sejam orientados pelos povos indígenas na direção que mais considerem conveniente.

2.- Que o futuro uso, aproveitamento ou exploração, tanto de seu território como dos recursos que nele existem, sejam as comunidades que decidam o que fazer com base em suas organizações tradicionais, tenham ou não um reconhecimento governamental. Para a definição deste procedimento pode-se apelar fundamentalmente à decisão de suas assembléias e de suas autoridades tradicionais.

3.- Nos casos quando estes conflitos tenham que ser dirimidos entre as comunidades, que se nomeie um organismo técnico civil para sua solução, mas que em nenhum caso participe uma autoridade governamental, salvo como observador. O mesmo nos casos de problemas agrários internos, estes devem ser dirimidos a partir das próprias assembléias comunitárias. QUEREMOS AUTODETERMINAÇÃO SOBRE NOSSO TERRITÓRIO.

SEGUNDO

Não apenas neste período moderno trataram de nos impor uma organização social alheia a nossa cultura, há mais de quinhentos anos este fenômeno tem sido observado. À luz da realidade atual, podemos afirmar que não pode continuar essa homogeneização desta sociedade tão diversa e plural. É tempo que se reconheça que é precisamente nossa organização social e os princípios que nela se reproduzem o que tem permitido nossa sobrevivência. A eliminação de nosso território e das fontes elementares de vida seguem e seguirão ameaçando nossa existência. Nossa organização tem mostrado aspectos que não apenas são úteis para nossos povos como também para a sociedade em geral, por ela é recomendável recuperar e dar um impulso verdadeiro em todos os âmbitos. É através dela que temos resolvido nossas ancestrais necessidades sem negar tampouco o útil que possa oferecer-nos as outras sociedades contemporâneas. Quando afirmamos a riqueza de nossa organização social estamos referindo-nos a nossa vida assembleária, a nossos mecanismos de representação, a nosso trabalho coletivo e comunitário, a nossos conhecimentos, a nossas tradições e a nossas culturas particulares.

A força e reprodução do EZLN se explica em razão desta organização social, por isso para sua conservação e desenvolvimento propomos o seguinte:

1.- Que a sociedade nacional aceite como legítima e legal nossa organização social e política.

2.- Que os partidos políticos não sigam dividindo a nossas comunidades e doutrinando-a com base em princípios ocidentais e racionalistas que nada tem a ver com nosso comunalismo.

3.- Que seja esta organização que decida o futuro e as características do desenvolvimento que desejamos para as comunidades indígenas.

4.- Que a representação emanada desta organização seja levada em conta no concerto político nacional. OU SEJA, QUEREMOS AUTONOMIA POLÍTICA. Isto não que dizer que queremos seguir a antidemocracia, pelo contrário, consideramos que o respeito à nossa organização um princípio fundamental para a democracia.

5.- Propomos também que as instituições desenvolvimentistas e indigenistas desapareçam e que em seu lugar estejam as organizações que diretamente se relacionam com os técnicos na medida do necessário. Que os meios de comunicação que operam em nossas regiões passem ao poder de organismos civis que demonstrem interesse e capacidade para sua operação.

Consideramos que em nossa região como em outras do Estado de Oaxaca estas propostas são plausíveis e de fácil realização. Embora também visualizemos sua possibilidade em todas as regiões indígenas do país.

TERCEIRO

Desde sempre somos apelidados como índios frouxos porque não buscamos a acumulação de capital e menos ainda comodidades onerosas. Nos chamam de anticapitalistas e de socialistas primitivos. Sem embargo a realidade é distinta. Toda interpretação ocidental ou racional de nosso comportamento, tem como essência central a incompreensão de nossa filosofia econômica. Nossa relação com a terra é harmônica, por isso convivemos com ela, por isso não a utilizamos nem a exploramos. Não queremos dizer tampouco, que a fome e nossa situação geral em alguns casos nos tenha levado a casos extremos. A pressão sobre nós, tem provocado que estes princípios não se manifestem em toda sua intensidade e riqueza e que com o passar dos dias esta se siga deteriorando em prejuízo de nosso futuro e desenvolvimento.

O aproveitamento de nossos recursos florestais, minerais, aquíferos, faunísticos, assim como os ritmos e tecnologia que temos para o uso de nossa terra, devem ser respeitados em todas suas dimensões e categorias. Toda inovação tecnológica deverá ser também decisão de nossas comunidades.

A comercialização de nossos produtos assim como a de outros produtos que possamos gerar, deverão estar sob a responsabilidade independente dos conselhos comunitários de abastecimento e que sejam estes os que manejem a empresa Diconsa e seus armazéns.

Para o reforço desta filosofia econômica propomos o seguinte:

1.- Que aquilo a ser feito em matéria de desenvolvimento, seja decidido por nossas comunidades e organizações, definindo o regional de acordo com seus mui particulares interesses e necessidades.

2.- Naqueles casos onde existem programas de governo que tenham se adaptado a nossas particularidades, estes sejam tornados independentes, ou seja, que seja materializada a transferência de suas funções.

3.- Que os recursos econômicos sejam entregues à sua administração diretamente para estas unidades ou grupos de organizações sem a presença de nenhum intermediário. No caso mui particular de nossa região a entrega destes recursos deve restringir-se diretamente a cada autoridade municipal, e não apenas às cúpulas municipais.

4.- Quando as próprias autoridades municipais considerarem benéfica a presença de uma organização intercominitária ou grupo civil intermediário, isto deverá ser respeitado.

5.- Que a administração e aproveitamento dos recursos naturais renováveis e não renováveis passe para o poder das comunidades, sem a mediação da presença de autoridade governamental normativa, em outras palavras, QUEREMOS CAMINHAR COM AUTO-SUFICIÊNCIA ECONÔMICA DENTRO DE NOSSOS PRÓPRIOS PARÂMETROS.

6.- Que tudo o que é colocado aqui seja integrado como filosofia tanto nos programas de governo, os quais devem desenhar-se desde nossas comunidades, assim como em todos os preceitos constitucionais que devam intervir.

QUARTO

Independentemente dos esforços que se tem feito para que a educação leve em conta nossas particularidades culturais. Consideramos que a educação em vez de fortalecer-nos, tem minado ainda mais nossa organização, nossos princípios e nossos conhecimentos. No que diz respeito a nossos filhos obedece a alinhamentos institucionais tanto em conteúdos como em métodos e responsabilidades, a participação de nossas comunidades é nula. Os impactos negativos deste sistema é visto no desprezo que propicia ao nosso labor campesino, a permanente contradição que existe entre o que querem nossos professores e o que nós queremos, (se bem que haja excessões) a pouca relevância que dá à conservação de nossos recursos naturais, assim como a falta de respeito que sistematicamente se tem pelas nossas tradições. Isto se manifesta na mesma avaliação que se realiza da educação ministrada em nossas regiões. Avaliação que sempre resulta adversa e não leva em conta o outro lado da moeda.

Para impedir os permanentes abusos que se expressam nesse aspecto e com a finalidade de afiançar nosso desenvolvimento educacional e cultural que responda a nossas verdadeiras aspirações, propomos o seguinte:

1.- A criação de conselhos educativos, comunitários, mircroregionais e regionais, para o desenho dos conteúdos educativos que devam ser trabalhados. Estes conselhos educativos serão os responsáveis em verificar se a educação está orientada para o trabalho, para o respeito de nossos valores, para a participação em nossas tradições e para o tratamento dos valores nacionais que também nos sejam úteis.

2.- A nomeação de professores em cada comunidade deverá ser responsabilidade destes conselhos, que deverão ser selecionados de acordo com nossas necessidades linguísticas e organizacionais.

3.- Os recursos dirigidos à educação deverão chegar de maneira direta e em conjunto com os recursos que sejam utilizados em outras áreas do afazer comunitário. EM SUMA, A EDUCAÇÃO DEVE ESTAR NAS MÃOS DE NOSSAS PRÓPRIAS COMUNIDADES.

QUINTO

É evidente o divórcio entre os preceitos constitucionais, e nossas práticas tradicionais de justiça, apesar do agregado ao artigo quarto constitucional. Isto é mais dramático na aplicação das leis. O nível de corrupção nos encarregados de ministrar a justiça do Estado é tal que tem assustado nossas comunidades. O que sucede em Chiapas é uma resposta extrema ao que aqui ocorre, mas em todas as comunidades indígenas padecemos esta mesma situação. A tortura, o encarceramento injusto assim como a formação dos advogados nas Universidades vão nessa direção. Os governos estatais nem sequer dão conta da abordagem que se realizam a nível de nossas práticas tradicionais. O centros de readaptação, está mais que demonstrado, são centros de aniquilamento social, cultural e econômico. Sem embargo existe cegueira e ouvidos surdos para nossas experiências que poderia tratar estes assuntos de melhor maneira que qualquer preceito legal.

Para a solução desta permanente violação a nossos mais elementares direitos humanos, propomos o seguinte:

1.- Que desapareçam os centros de readaptação social e que em seu lugar se integrem centros ou conselhos de justiça comunitária e regional.

2.- Que nas Universidades desapareçam as escolas de direito, ou que estas tenham uma nova especialidade como o Direito Comunitário ou Tradicional.

3.- Que desapareçam todas as agências do ministério público e juizados assentados nas áreas indígenas, e que dêem lugar aos conselhos comunitários e conselhos regionais de justiça.

4.- Que os conselhos comunitários e regionais de justiça não tenham nenhum intermediário ante o governador e que os recursos econômicos destinados a esta tarefa sejam administrados por estes conselhos. Estes determinarão se é necessário uma equipe auxiliar ou fazer as coisas de acordo com nossas tradições. QUEREMOS AUTONOMIA JURÍDICA DENTRO DE UM ESTADO DE DIREITO QUE RESPEITE NOSSO DIREITO COMUNITÁRIO.

NOSSA REGIÃO TEM SE COMPORTADO ATÉ ESTE MOMENTO MUI CONSERVADORA COM A NAÇÃO, PORQUE TEMOS HERDADO O ESFORÇO E A CONVICÇÃO DE BENITO JUÁREZ. SEM EMBARGO, NÃO SE DEVE ESQUECER QUE SOMOS UM VULCÃO LATENTE QUE EM QUALQUER MOMENTO PODE ENTRAR EM ERUPÇÃO, SE NÃO ATENDEREM AS VELHAS REIVINDICAÇÕES DE JUSTIÇA PELA QUAL TANTOS SERRANOS TEM DADO SUA VIDA.

Tudo o que foi acima delineado é um primeiro rascunho sujeito à análise dos intelectuais, técnicos, autoridades e cidadãos em geral, em toda a região das montanhas zapotecas e chinantecas de Oaxaca. A região agradeceria sua opinião e suas correções.
 
Guelatao de Juárez. 13 de fevereiro de 1994



 

O autor/compilador pode ser contatado no seguinte endereço:

Jaime Martínez Luna
Fundación comunalismo
domicilio conhecido
Guelatao de Juárez, C.P. 68770, Oax. México
      c.e.: [email protected]
      tel: 955-36026


 
[em livre tradução para a língua portuguesa
pelo Coletivo Periferia -- http://www.geocities.com/projetoperiferia



railtong@g.com
Travessa do Anfiguri 47, CEP 08050-570 -- São Miguel Pta. -- São Paulo -- Brasil]
 


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