Venha Ver o Por
do Sol
Ela
subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam
rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos
baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato
rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era
a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo
blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito
jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes.
Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais
ele chegaria aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me
aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de
sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui?- perguntou
ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro.- Hem?!
- Ah, Raquel...- e ele tomou-a pelo braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras,
azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza,
sentir esse perfume. Então fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? - Abrandara a voz - E que é
isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de
ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivo e mortos, desertaram todos. Nem os
fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo -
acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela
tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. -
Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um
instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa
risada.
- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um
último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta
buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do
sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria
era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se
isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa
que vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que eu iria, você está sendo fidelíssima. Então
pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse
ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos.
Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor
dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram
numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava.
Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio.
Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento -Você fez bem em
vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio
porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente,
não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber
que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma
das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se
arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério
abandonado, veja, completamente abandonado - prosseguiu ele, abrindo o
portão. Os velhos gonzos gemeram. - Jamais seu amigo ou um amigo do seu
amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por
favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a
mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os
ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha
medo...
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter-se alastrado
furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido
pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos
esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir
para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente
pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros
como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os
pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma
criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura
com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é
deprimente - exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um
anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei
onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da
tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe
dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar
mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já
ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas
voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e
lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorrisso
reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho
às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso,
não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano...
- É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda
sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum- respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a
inscrição de uma laje despedaçada: - À minha querida esposa, eternas
saudades- leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa
eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais
a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja-
disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita
de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do
musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita,
nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que
não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir
assim - Deu-lhe um rápido beijo na face.- Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! - Olhou para
atrás. - Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio - lamentou ele, impelindo-a
para frente. - Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de
lá que se vê o pôr do sol. - E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel,
andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então
doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa
capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos
com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as
duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente
bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos
com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês
duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim
meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. - Enfim não tem
importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira
selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita
porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo
de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro
do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que
adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um
tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera
dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto
que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita
da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra,
descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos
da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos,
velas, sinais da minha dedicação, certo?
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da
portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao
longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo?
Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele,
tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro
da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e
acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato.
Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita
azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora
consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os
olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos
seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos
olhos.
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de
ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para
trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! - ordenou,
torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu
idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais
estúpida!
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!-
Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela,
dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de
lágrimas. Ensaiou um sorriso.- Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas
agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!...- gritou ela, estendendo os braços
por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta
porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou
em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se.
Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um
pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os
olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi
puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola.
Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve
silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos.
E, de repente, o grito medonho, inumano:
-Não!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram,
semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram
ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra.
Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar
mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer
chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe
brincavam de roda. |