ICQ:2403779

 


 

Acaso

      Superlotado, o ônibus mais parecia uma estufa ligada, até uma tênue fumaça pairava sobre suas cabeças. O rosto de sofrimento era uma constante nos homens e mulheres que se chocavam a cada curva. Até o momento, no entanto, ninguém pensava, sequer, reclamar de qualquer desconforto. As pessoas algumas vezes, por total acomodação, acostumam-se com as situações e levam a vida sem se perguntar o porquê de tais coisas.
      Maurício não, ele estava ali por absoluta necessidade, mas aquilo não se tornaria uma rotina em sua vida, não agora que ele estava prestes a realizar a maior façanha de sua vida. Nunca mais seria obrigado a humilhar-se daquela maneira. Suportar aquele suor correndo pela densa barba.
      O ônibus fez uma grande curva para a direita e todos foram jogados repentinamente para o outro lado; alguns pareciam que iriam sair pela janela. Aqueles que estavam sentados apenas olhavam os corpos balançando e franziam a testa em reprovação, mas não mexiam seus corpos. O suor de um se misturava ao de outro.
      Precisamente às treze horas, o ônibus parou no ponto, quase em frente à banca de jornal. Maurício saltou e atravessou a rua rapidamente, para entrar no banco, junto com a doce senhora de seus setenta anos.
      Na agência bancária tudo era diferente. Ali sim o ar era puro, as moças por trás das mesas eram bonitas. Tinha até aquela lourinha de olhos azuis, que brilhavam como se fossem dois enormes diamantes. Era um passa para lá e para cá de lindas pernas torneadas, sorrisos alvos em rostos de felicidade. Ali sim é que seria muito bom de se trabalhar. Aquilo é que era um ambiente saudável.
      A placa charmosa, em acrílico fumê, pendurada sobre a mesa mais próxima, indicava a recepção, mas não era o local procurado por Maurício. Ele realmente procurava era pelo pequeno cilindro à prova de balas, que abrigava os vigilantes. Quando o avistou, começou a caminhar para lá. Eram dois, os guardas. Um encostado à pequena cabine, enquanto o outro lhe contava qualquer coisa interessante, mas sem perder atenção aos presentes.
      Maurício distava uns quatro passos dos dois, quando rapidamente levou a mão esquerda ao peito e tossiu. Tossiu como se já fosse desmaiar ou vomitar. Ao mesmo tempo afrouxou os joelhos e foi lentamente caindo e se contorcendo. Sob o olhar atônito dos vigilantes, o rapaz ia se transformando numa massa retorcida. Tão retorcida, que lhes deu a certeza de estarem vendo o ser mais indefeso do mundo.
      O primeiro a aproximar-se foi um velho senhor. Ele olhou para os vigilantes como se lhes pedisse ajuda para o pobre e indefeso moço que parecia sufocado. Só quando o primeiro vigilante se achegou dele, foi que Maurício esboçou falar algo com muito esforço. Algo que o guarda não conseguia entender. No bolso da calça! No bolso da calça! Repetia o pobre rapaz, em sua voz quase inaudível.
      Alziro, com sua experiência de vigilante já de dez anos, olhou em todas as direções primeiro e só quando constatou a tranqüilidade do restante do cenário, que até contrastava com aquela cena grotesca, foi que ele decidiu enfiar a mão direita no bolso de Maurício, em busca do possível vidro de remédios. Até sentiu um enorme alívio, quando percebeu que o vidro realmente estava lá.
      Puxar a mão com o objeto, já foi uma tarefa bem mais complicada. Ou bem saía a mão, ou bem o vidro daquele bolso apertado, e o rapaz cada vez mais asfixiado. Alziro não poderia fazer outra coisa, se não pedir ajuda ao colega. Afinal que mal teria? E depois tinham que resolver a situação complicada.
      Os dois colegas ajoelhados ao lado do rapaz, um com mão presa em seu bolso, foram presas fáceis. Com movimentos tão rápidos como os de um gato em fuga, o jovem passou da posição inferior em que se encontrava para outra bem diferente. Em poucos segundos, a situação estava totalmente dominada, ele rendera os dois e agora o banco já era seu.
      A arte de Maurício não parava por aí. Ele também discursava com certa eloqüência. Usando não tantas palavras, convenceu a todos de que colaborando ninguém sairia ferido. Ele também sabia exatamente o que procurava no banco.
      Uma vez o cofre aberto, o próprio gerente apanhou as duplicatas pedidas por ele. Maurício apenas conferiu os documentos e os devolveu à pasta. Estavam todas ali. Representando mais de dois milhões de reais, a pasta leve e fácil de ser transportada, não passara mais do que algumas horas naquele cofre de banco. Maurício sentia já o sabor da parte que lhe caberia.
      Tudo, casualmente ou não, saíra como o planejado. Estava já na hora de deixar o banco. Bastaria o ônibus estacionar lá do outro lado da rua e o sinal fechar, para que ele corresse no meio da multidão e desaparecesse do outro lado do ônibus. Depois puxar a barba e jogá-la. Jogar também o casaco numa esquina qualquer. Rico, seria um outro homem. Viveria uma outra vida.
      O sinal fechou, o ônibus parou, as pessoas começaram a atravessar a rua, mas pareciam lerdas. Ele não, não seria lerdo para sair dali. Não fazia parte daquele rebanho de ovelhas medrosas. Ao contrário mesmo largando por último, seria o primeiro a estar lá do outro lado. Do lado rico do mundo.
      Maurício já alcançava o meio da rua quando percebeu, como os outros já haviam feito, o guinchar de uma freada.. Tarde demais. Aconteceu. Seu corpo foi arremessado à distância. Papéis voaram para todos os lados. Um barulho seco juntou o corpo novamente ao chão e o sangue começou a escorrer-lhe da boca. A policial correu até o corpo. Vendo que nada mais havia para fazer, virou-se para caminhonete.
      Na placa se lia: ACA5000

 

 

 

Despertar

      O som estridente do rádio relógio, em sua cabeceira como sempre, marcava a hora precisa de acordar. Já eram seis horas da manhã e aquele seria sem dúvida, um dia completamente diferente em sua vida, levantando num único gesto sentiu-se renascendo. Se tinha algo de que realmente sempre gostara, eram os desafios, de qualquer natureza, mas desafios...
      Hoje prestaria sua primeira prova do vestibular, abria-se à sua frente uma grande porta para o futuro e quem poderia imaginar os sentimentos que estariam envolvidos, as angústias, os medos, as dúvidas, as alegrias, os desejos. Ah! os desejos...
      A escolha da carreira a seguir, foi sem dúvida desde o início o mais fácil, já que sempre tivera grande inclinação pela "FILOSOFIA", na verdade nunca sofrera qualquer influência, nem mesmo dos pais, apesar de saber, que na opinião deles "DIREITO" seria a escolha mais acertada.
      Entretanto, agora era hora de encarar o perigo de frente. Passando pelo espelho pode dar uma olhadela em seu próprio perfil, parou por um segundo para auto admirar-se, deu de ombros e seguiu em direção ao chuveiro. Sobre a cadeira de diretor, ao lado da porta do banheiro, estavam as roupas que vestiria, já separadas desde a noite anterior, como era seu costume. Parou novamente para vislumbrá-las e franzindo a testa desviou-se como se não aprovasse de um todo, porém não houvesse outra opção melhor para o momento. Entrando no banheiro, foi logo acendendo a luz, mas apenas a pequena dicróica que ficava sobre o centro do espelho, onde fitou-se demoradamente, prestando atenção em cada um dos detalhes de seu rosto, especialmente nos grandes olhos azuis, que brilhavam por debaixo das belas sobrancelhas, combinando tão acertadamente com seu fino e discretamente longo nariz arrebitado de forma muito leve na ponta.
   - Arrebenta! Foi o pensamento espeloteado, que de pronto lhe veio à mente, como se um raio saído do espectro à sua frente, lhe tivesse penetrado a testa...
      Foi inevitável a cômica idéia, de que estava vivendo um momento de puro narcisismo, o que forçou-lhe a esboçar um longo e delicioso sorriso.
      Enquanto observava sua alva e perfeita dentadura, por entre os carnudos lábios, naturalmente corados, mesmo agora que acabara de acordar, foi passando a mão no cabelo, como se desejasse desde já escolher o penteado que lhe deixaria o rosto mais realçado sobre seu lindo e longo pescoço, para o qual adoraria possuir um colar cravejado de diamantes. Muito bem, era hora do chuveiro e neste dia não poderia deixar o tempo passar tranqüila e relaxadamente, como sempre fazia em suas manhãs. Sob a gostosa água, que caía de uma ducha, daquelas de dar inveja nos melhores hotéis cinco estrelas, pegou o sabonete, escolhido em loja especializada, pois fazia questão de que seu banho tivesse um aroma espetacular, costumava pensar, que era no banho onde seus melhores sonhos aconteciam, raramente tivera tanto prazer quanto durante um banho. Sempre começava pelos cabelos, e com seus olhos fechados acariciava-os demoradamente, como se precisasse lavar fio por fio, repetindo a manobra com o creme condicionador. Era mais do que sonhar, era um delírio, algumas vezes quando estava assim, pensava que provavelmente era a única pessoa no mundo capaz de ter delírios tão realistas e tão ininterruptos. Como se nada importasse, seguia seu banho passo a passo, sentido deliciosa e demoradamente a carícia da esponja ensaboada, que lhe percorria o corpo, primeiro pelo pescoço, conseguia sentir a pressão como se fosse a mão mais suave e maliciosa, roçando-lhe lentamente, aquecendo levemente sua alma. Descendo pelo tronco num movimento quase em câmera lenta, sentia-se como se tivesse a mais gostosa das companhias, ali junto de si. Nos flancos era como ser totalmente segura e apertada, por braços fortes e ao mesmo tempo delicados, subia então com um esfregar gentil e suave, até sentir que as pontas dos mamilos endureciam, como se a polpa de uma gostosa fruta estivesse projetando-se através de sua casca macia, como se fora um pêssego maduro sendo mordido, aquilo sim lhe fazia sentir prazer, e o prazer era em sua opinião o único motivo de existir. Ainda queria sentir-se mais realizada e por isso mesmo, voltava a descer lenta e suavemente, passando pelos quadris, onde sentia uma profunda excitação, só em lembrar para onde se dirigia agora, mas ao atingir as coxas, aí sim é que o prazer parecia fluir em suas veias, brotando em cada um de seus poros, misturando-se com a deliciosa água morna e a macia espuma branca que se lhe avolumava aos poucos pelo corpo, como se estivesse engolindo-a inteira, então aquela mão escorregadia e quente lhe chegava ao pedaço mais gostoso do corpo, que era a parte interna das coxas. Neste exato momento sentia como se uma grande labareda lhe tomasse conta de todo o corpo, como se todos os sons do universo se fizessem ouvir ao mesmo tempo, como se os aromas de todos os campos e de todas as flores se unissem ao mais puro cheiro de sexo selvagem, era o orgasmo... como podia fazer aquilo nem podia saber, mas simplesmente acontecia...
      Após terminar o banho, começava a se secar cuidadosamente, usando sua macia toalha, fofa como plumas, que esfregava com grande sensualidade e leveza, garantindo também um acalorado envolvimento, com a gostosa sensação de proteção, a qual parecia mesmo precisar naquele momento de fragilidade e entrega total ao prazer, podendo ainda permitir-se outra carícia, pois era a vez de perfumar-se, o que fazia com a maior calma, porém desta vez suas mãos escorregavam sobre a pele macia, com movimentos não tão lentos, era como se pretendesse apagar aquele fogo com o frescor de sua colônia pós banho, por outro lado deixando no ar o aroma de verão e escondendo qualquer resquício de sua "combustão espontânea", mas na verdade, o que sentia era diferente, o aroma doce que lhe banhava, provocava ainda maior excitação e acabava por iniciar novo delírio, que se prolongava enquanto lentamente vestia-se, agora em frente a um grande espelho, onde podia vislumbrar todo o seu corpo, parecendo dançar aos movimentos de enfiar-se por dentro de cada peça de roupa, como se fora uma crisálida retornando ao que antes fora seu casulo. Ao mesmo tempo em que percebia beleza em seus trajes, parecia esconder o melhor de si dentro deles, o casulo lhe era encantador pelas cores, mas ao mesmo tempo tirava-lhe a liberdade, que o delírio, somente o delírio, podia oferecer-lhe. Em sua mente era inconcebível, o fato de que não pudesse simplesmente desfilar sem as aprisionantes vestes, deixando combinar todo um belo corpo, com seu maravilhoso sonho de ser...
      Podia se imaginar naquele momento, em meio a uma festa, sendo o centro de todas as atenções, com toda sua exuberância, provocando em cada um dos homens ali presentes, uma sensação de impotência, por não poderem tocar-lhe, segurar sua mão, acariciar seus ombros e dançar de rosto e corpos colados. Eles teriam que contentar-se com o desejo da possessão daquele anjo de candura, com quem certamente lhes seria impossível o contato, enquanto escolheria segundo sua vontade e só pela sua vontade, aquele a quem se juntaria para desfrutar dos gemidos prazerosos, dos sons de milhões de sinos batendo, dos artificiais fogos subindo aos céus e tudo se enchendo de múltiplas cores, como que numa comemoração àquela dupla, que acabara de surgir...
      Em meio ao êxtase , como não poderia deixar de ser, algo despertador repentinamente acontece, para lhe destruir de forma súbita e radical... Alguém bate à porta de seu quarto, enquanto houve-se uma voz, que vai dizendo em tom apressado...
   - Alexandre, meu filho, você já está pronto? Seu café já está servido! Você precisa estar lá em meia hora! Vamos meu filho...
      Como as palavras, algumas vezes podiam ser tão cruéis... Despertá-lo de um devaneio como aquele, era para Alexandre a maior das punições, tão esmagadora como o próprio castigo de sentir-se uma maravilhosa mulher que ardia prisioneira naquele corpo de formas masculinas e horrendas.

 

 

 

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