Capítulo
de "O Círculo da Lei"
Ancorado
há mais de três meses no porto do Rio de Janeiro,
esperando por reparos que seriam realizados pela Companhia
Carioca de Navegação e Armação
Ltda., o cargueiro Júpiter III encontrava-se em péssimo
estado, não sendo provável que zarpasse em menos
de uns seis meses. Havia quem defendesse a idéia de
que ele deveria ser vendido como sucata, para diminuir os
prejuízos já causados ao seu dono, a Transportes
Marítimos Caribeños. A TMC era uma empresa de
origem duvidosa, que atuava na região do Caribe e à
qual a Polícia Federal Brasileira atribuía,
ainda que apenas internamente, um caráter fraudulento.
Suspeitavam que não passasse de uma operação
de lavagem de dinheiro, vindo do tráfico de drogas
em toda a América Latina.
A presença do navio
ali no porto do Rio causava um certo incômodo ás
autoridades, mas nada havia que pudessem fazer, até
provarem o que já suspeitavam.
O barulho de metais em atrito acordou Fred do sono pesado.
Era a porta que estava sendo aberta. O homem que entrou não
falava um português muito claro. Havia uma mistura de
sotaque coreano no que ele dizia. Mal deu para Fred entender
que deveria levantar para acompanhá-lo. Andaram muito
por dentro do navio, até chegarem num compartimento
pequeno porém, bem arrumado. Aquele deveria ser um
posto de comando! Pensou o jovem, que nenhuma experiência
tinha em navios.
Os três homens que
o aguardavam, sorriram ao mesmo tempo quando ele entrou e
ele pôde reconhecer Martinez e Gerardo, muito embora
tivesse visto o segundo apenas uma vez até então.
O outro, um senhor mais idoso, também não lhe
era de todo estranho, mas não conseguia ter certeza
de onde o tinha visto antes.
Logo que lhe foi
explicado o porquê de estar ali, Fred sentiu que aquela
seria uma boa chance para que a polícia pudesse encontrá-lo.
O rapaz lembrava-se de ter visto em alguns filmes que ele
assistira, a polícia localizando os chamados de telefones
celulares. Só não sabia ao certo se isso seria
possível aqui no Brasil. Se fosse, certamente estariam
usando o sistema no seu caso? Tudo era dúvida para
ele.
Frederico ao ouvir
a voz de seu filho quase caiu sentado. Após duas semanas
inteiras de buscas inúteis atrás do colombiano,
ele já estava perdendo as esperanças. Desta
vez pôde falar mais com o menino e sentiu-se muito aliviado
sabendo que seu filho estava vivo. Duas perdas tão
importantes seriam demais para ele. Frederico teve a impressão
de que o filho estava bem, mas estava errado, Fred Jr manter-se-ia
apenas algumas horas sem uma nova carga de heroína.
A droga que é muito potente, dia a dia fazia de seu
corpo um prisioneiro mortal.
Logo ele sentiria
a falta da droga e nada a substituiria. Nem o próprio
garoto tinha consciência, no entanto, de que era assim.
O método usado por Martinez era muito eficaz. Demorava
em torno de sete a dez dias para que causasse uma dependência
física, prazo mais do que exagerado tratando-se da
Heroína, mas gastariam muito mais tempo até
que pudessem desintoxicá-lo depois. Além disso
Martinez não a aplicava a força. Pelo contrário,
ganhava a simpatia do rapaz tratando-o bem, como se estivesse
fazendo aquilo para evitar matá-lo. Para o rapaz o
inimigo era o chefão e Martinez alguém que se
apiedara dele e tentava socorrê-lo.
Quando terminou
de telefonar o jovem estava certo de que não demoraria
muito, estaria sendo resgatado. - Como os três puderam
ser tão burros, a ponto de deixá-lo falar por
todo aquele tempo?
Ouviu então
pela primeira vez a voz do velho a sua frente e teve certeza
de que ele já estivera em sua casa, mas ainda não
conseguia identificá-lo. Talvez fossem as roupas muito
esportivas que o homem usava. Nas festas das quais ele nunca
participava em sua casa, as pessoas trajavam sempre formalmente
e como seu contato com os convidados era muito superficial,
isto deveria estar atrapalhando.
Recebera de Martinez
uma ordem e mesmo sem saber bem o porquê, sentia uma
forte necessidade de obedecê-lo. Passando para outro
compartimento, acomodou-se na cama como indicado e estendeu
o braço sem discutir. A picada da agulha logo foi perdendo
a importância, devido ao estado de torpor que começava
a se instalar. Fred não teve tempo para perceber que
desta vez a droga era outra, simplesmente apagou.
-
Por ali! Por ali! Vocês, subam pela escada de lá!
- Rápido! Rápido! Não
deixem ninguém saltar do navio! Só atirem se
não puderem evitar!
A
massa de policiais movia-se como formigas sobre um doce. Tomaram
conta de todo o cais em menos de um minuto. Haviam atiradores
de elite colocados por cima de todos os telhados dos armazéns.
O porto parecia um verdadeiro formigueiro e o navio foi tomado
em poucos minutos. Em pouco tempo, dois homens vestindo os
coletes do departamento de polícia civil e com os rostos
tapados pelas máscaras negras, apareceram na ponte
de comandos do navio e um deles gritou:
-
Operação completa! Situação dominada,
sem baixas!
Era
a senha para que Heitor subisse a bordo. Estava tudo acabado.
Todas as salas haviam sido vasculhadas e certamente o jovem
estaria já em poder da polícia. Havia, no entanto,
uma coisa que estava fora do esperado: Heitor não ouvira
nenhum tiro. Seria quase impossível que os seqüestradores
não tentassem reagir. Experiência, ele tinha
de muitas outras batidas e quando chegavam ao confronto com
grupos muito bem preparados, sempre havia alguém que
tentasse ser herói. Por isso mesmo ele tinha trazido
tão grande contingente desta vez. Esperava uma imensa
troca de tiros.
Cansado, depois
de subir os quase cinqüenta degraus de madeira, que o
levaram a bordo do Júpiter III, Heitor olhou atentamente
para os vários operários de mãos elevadas.
Sem nada entender, os coitados sentiam-se ameaçados
pelas armas. O delegado
com meia dúzia que o convenceram de que ninguém
a bordo naquele momento era estrangeiro. Todos foram conduzidos
imediatamente para a delegacia.
Não passou
tanto tempo até que chegassem os dois advogados da
Companhia Carioca de Navegação e Armação
Ltda. A conversa foi longa e complicada, mas ao seu final
estava tudo esclarecido. Os trabalhadores nada tinham a ver
com o seqüestro. Mesmo o Capitão do navio nada
sabia a respeito. Haviam, porém, pessoas que representando
a TMC tinham permissão para entrar e sair do navio
até mesmo carregando grandes caixas, onde certamente
poderiam esconder um corpo.
Estas pessoas, que
na sua movimentação apenas apresentavam um crachá
padrão, não eram identificadas pelos trabalhadores,
na verdade mal tinham qualquer contato. Fato que não
ajudava em nada a investigação.
Heitor irritado
com mais aquela frustrante operação, não
se conteve e desceu o braço com o punho cerrado para
provocar um estrondo ao chocar-se contra a mesa. O seqüestro
do filho do Prefeito vinha sendo motivo de imenso alvoroço
da imprensa, que já não o deixava em paz. A
Polícia Federal estava também no caso e ele
precisava dar conta de cada movimento seu, o que não
era do seu agrado. A pressão exercida diretamente pelo
Prefeito já era algo que o incomodava o suficiente,
principalmente pela colaboração escassa que
conseguia dele, coisa que vinha estranhando demais.
A única informação
que Heitor possuía agora, era o modelo e cor do carro
que possivelmente tinha sido usado para conduzir o corpo do
rapaz, talvez já morto, para outro local. Isto não
é muito, quando se trata com perigosos profissionais
que inclusive poderiam desaparecer do país tão
fácil como entraram. Aquela era no entanto a sua única
pista e precisava ir atrás dela.
Quando acordou,
várias horas depois, o garoto viu um cenário
completamente diferente. Havia um forte cheiro de mofo no
ar e o quarto era somente um pouco maior do que o compartimento
que ocupara no navio. Ele teve a certeza de já não
estar tão próximo do mar como antes. Aos poucos
foi recordando da última cena e percebeu que tudo tinha
saído diferente do que esperara.
A única fonte
de luz naquele quarto mofado era uma pequena janela com grades
que situava-se a uns dois metros de altura e ele tinha uma
cadeira que serviria para alcançá-la. Não
havia outra coisa a fazer. Fred subiu rapidamente na ânsia
de reconhecer o lugar e quem sabe gritar por socorro. A frustração
foi imediata, quando avistou apenas um muro envelhecido e
úmido. A janela na verdade encontrava-se a menos de
meio metro acima do chão, explicando o exagerado cheiro
de mofo e a umidade das paredes manchadas. O pavor tomou-lhe
conta da mente. Sabia que logo seus pulmões estariam
como as paredes. Não podia ficar ali por muito tempo
e pôs-se a gritar desesperado mesmo temendo a possível
represália. Gritou por uns bons dez minutos, pedindo
por socorro, dizendo para quem pudesse ouvir que havia sido
seqüestrado, até que ouviu barulho na porta.
Um homem forte de
feições embrutecidas apareceu com uma marmita
de comida. Fred parou de gritar com medo, mas o homem parecia
nem importar-se com seus gritos, limitando-se a colocar a
marmita sobre a cama e sair sem dar uma palavra. A visão
daquele carcereiro medieval levou seu pensamento para a seringa
imediatamente e ele teve a impressão de que seu estômago
se revirava. Contorcendo-se, Fred começou a vomitar
um líquido quase incolor. A vontade de usar outra dose
começava a ser maior do que sua consciência,
por mais que ele tivesse tentado lutar contra ela. Aquilo
vinha do fundo de sua alma. Era maior do que ele próprio.
Estava viciado. Martinez tinha finalmente vencido.
Durante aproximadamente
vinte minutos ele se retorceu e gemeu, arrastando-se pelo
chão. Até conseguir olhar novamente para a comida
e comê-la, como se aquilo fosse o suficiente para afastar
a necessidade de uma nova carga de Heroína. Não
foi. Contrariando o que ele pensara o alimento parecia incendiar
todo o seu abdome. Restava bater desesperadamente à
porta e gritar pedindo a droga e foi o que fez.
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