Índice

I - A Arte de Ouvir
01. Som e silêncio
02. Pobres ouvidos
03. O ouvido oculto
04. No princípio era o Som
05. O som em curto-circuito

II - Biomúsica

III - Dentro da Música

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I
O ouvido oculto

Capítulos 1 a 5

Antônio da Rosa Maestro
Fragmento de auto-retrato - Van Gogh/1889
A Arte de Ouvir

(Para guardar o livro inteiro abra também as partes II e III antes de passar para off-line)

1. Som e silêncio.

ÔÔÔÔÔôôôôooooooooooooommmmmmmmmmmmmm......
— cantou o Universo.

A luz começou a dançar e nunca mais houve silêncio ou treva.

Se você está sozinho ou não se importa que os outros ouçam, experimente dizer, longamente:
— Ôôooooommmmmmmmmmmmmm...

O Som é O, uma bolha sonora em expansão,
a Luz é mmmmmmmmmm..., raio luminoso em movimento.

om

O som é uma onda sonora, o silêncio é um raio de luz.

Quebrado, o silêncio é som, vibração, ritmo, acorde: música!

Quebrado, o silêncio é uma estrela nova,

um sol, um si bemol.

Quebrado, o silêncio é luz em movimento.

 

O silêncio absoluto, já sabemos, só existe na imaginação.

Os monges tibetanos desceram ao fundo das cavernas em busca de silêncio e, entrando em estado de meditação, depararam-se espantados com os ruídos do coração, do estômago, do sangue correndo nas veias. A fome de sabedoria era tão grande que jejuaram e meditaram por anos a fio na mais completa escuridão, no coração de uma montanha, até que alguns lograram alcançar a façanha de fazer o coração bater tão lento que o organismo já não fazia mais qualquer ruído. Só então perceberam a respiração da Terra e o estrondo de seus vulcões de luz interior.

Dê a si mesmo a oportunidade de imaginar o seu universo a partir da seguinte idéia: tudo aquilo que não é luz é som, tudo aquilo que não é som é luz. Pense nisto não como uma teoria científica, mas como um artifício de cálculo.

Imagine som e luz como pólos opostos de um sistema:

O branco é Yang, ativo e positivo, o preto é Yin, passivo e negativo.
O branco é raio de luz, o preto é onda sonora.
O silêncio está na parte branca, raio de luz, gameta, força criadora;
a música está na parte preta, bolha sonora, óvulo, ressonância formadora;
Um leva a semente do outro, não podem aniquilar-se;
a luz é reflexo do som, o som, eco da luz.

Quando éramos crianças ensinaram-nos:

— o contrário de luz é treva e o contrário de som é silêncio. Já adultos, aprendemos que silêncio absoluto e treva absoluta são artifícios de cálculo, não são realidades objetivas.

Talvez já tenhamos maturidade para imaginar:

— o contrário de luz é som, o contrário de som é luz.

Som e luz estão em pólos opostos.

A separá-los está a esfera sonoro-luminosa de contornos imprecisos a que chamamos de realidade objetiva, o som e a luz em natural harmonia de cores e movimentos. Forma, cheiro, cor, sabor e sonoridade serão variações e interações entre freqüências infinitamente diversas de som e luz em atividade.

As estrelas ficam invisíveis durante o dia, mas estão sempre no céu. Os sons cósmicos são inaudíveis mas existem, as ondas sonoras do canto das estrelas atravessam nosso corpo físico o tempo todo.

Uma onda sonora pode atravessar o ar, o mar, o casco de um navio, o nosso coração, o fígado e o cérebro. Um bom par de ouvidos humanos pode perceber entre 16 e 20 mil ciclos por segundo, mas existem freqüências sonoras de milhares ou milhões de ciclos por segundo, existem sons que não percebemos porque vibram a segundos, minutos, séculos ou eras por ciclo.

Ninguém pode separar o silêncio do som ou a luz da treva.

Nem mesmo em sonho.

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2. Pobres ouvidos.

"Sei que a arte é irmã da ciência,
Ambas filhas de um Deus fugaz,
Que faz num momento,
E no mesmo momento desfaz.
Esse vago Deus por trás do mundo,
Por detrás do detrás,
Cântico dos cânticos,
Quântico dos quânticos."
(Gilberto Gil).

A História escreverá: a Era do Racionalismo, iniciada na Renascença, se extingue por volta do ano 2000 DC.

Tudo o que podemos ver, ouvir, tocar, cheirar ou lamber é apenas um décimo de tudo o que a ciência já provou existir, mesmo que a grande maioria dos cientistas ainda insista em ficar esmiuçando estes dez por cento da realidade, de costas para o invisível, agarrados ao eixo da racionalidade enquanto o Universo continua em expansão e jamais se repete.

Um arco íris completo está sempre no céu; só podemos perceber uma estreita faixa de cores, e assim mesmo sob determinadas condições climáticas. Há mais de setenta cores no espectro, mas nossos olhos só vêem sete delas.

Da Canção do Universo, tudo o que podemos ouvir com nossos humanos ouvidos equivale a uma oitava, doze notas num piano com pelo menos 70 teclas brancas e 50 teclas pretas.

Será mera coincidência termos sete cores no espectro luminoso e sete notas na escala musical?

— Por que sete notas, sete cores e apenas cinco sentidos físicos?

Fomos ensinados a não acreditar na imaginação, mas a existência do mundo imaginário é hoje um fato comprovado pela Física Quântica. A intenção do pesquisador interfere nos fenômenos microcósmicos. A imaginação do observador é um fato científico relevante.

A visualização de imagens na tela da mente e a audição de sons interiores à consciência são ligações do cérebro com o nosso mundo interior. Poderiam ser considerados órgãos de sentidos físicos voltados para dentro de nós mesmos, completando as sete possibilidades cromáticas.

Quando ouvimos música, uma energia sonora organicamente arranjada penetra nossos ouvidos, corações e mentes em freqüências sônicas, ultrassônicas e subsônicas. As inaudíveis serão inóquas?

Cada corda vibrada lança no ambiente ondas harmônicas imperceptíveis que vão, de um modo ou de outro, ressoar no íntimo de nossos órgãos internos, ecoar em nossos neurônios e reverberar em nosso campo magnético pessoal. Os sons harmônicos superiores, inacessíveis ao ouvido humano, venham de um violino ou mesmo da voz humana, podem quebrar um cristal à distância.

O som realiza alterações importantes na aura eletrônica de todo e qualquer ser, vivo ou inanimado, interferindo direta e por vezes violentamente em vibrações subatômicas que estamos longe de perceber ou imaginar.

Cada átomo realiza sua própria canção, vibrando a milhões de ciclos por segundo, tão rápido que nem podemos imaginar, quanto mais ver ou ouvir. No espaço, sons cósmicos atravessam o vácuo, que julgávamos silencioso. A música das esferas celestes, no concerto das galáxias, pode ser ouvida por nosso coração e nosso subconsciente, mas não pode ser racionalizada dentro de nossos limites auditivos e visuais.

A nota aguda quebra o cristal, a musicoterapia acaba com a depressão, as vacas leiteiras, as abelhas e os operários de fábrica produzem mais ouvindo boa música, as plantas reagem à música sem ter ouvidos, há músicas que fazem rir, chorar, dançar, lutar, lembrar de alguém... O universo sonoro vai muito além do que podemos notar ou medir com instrumentos físicos.

Arquimedes gritou: Eureka! Para que algo entre, algo precisa sair.

Newton proclamou: a toda ação corresponde uma reação na mesma direção e em sentido contrário.

Lavoisier poetizou: nada se perde, nada se cria, tudo se transforma;

Einstein radicalizou: o tempo é relativo, a ordem aparente depende do observador mais que dos fatos.

O som audível é interceptado por nosso corpo. Entra pela pele e faz vibrar os órgãos internos.
Uma parte é decodificada pelos ouvidos e transformada em informação racional. No mesmo compasso, sons inaudíveis criam ressonâncias harmônicas em nossos campos biomagnéticos.

— O som se perde dentro de nós?
— Lembra de Lavoisier? Algo se transforma.

— O som entra e sai sem deixar vestígios?
— Lembra Isaac Newton? Não há ação sem reação.

— A música produz alterações físicas em nossa vida?
— Lembra Einstein? Tocava violino todos os dias.

Sempre que ouvimos música, algo em nós se modifica.

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3. O ouvido oculto.

“Mesmo esquecendo a canção,
o que importa é ouvir,
a voz que vem do coração”.
(Fernando Brant)

Tudo tem um som, mesmo vibrando em freqüências inacessíveis até para os mais requintados aparelhos sensores de ficção científica.

O som audível causa em nós efeitos físicos evidentes e perceptíveis e mais outros tantos efeitos sensíveis ou insuspeitáveis. Ao mesmo tempo, sons inaudíveis atuam na Natureza à revelia de nossa razão, de modo orgânico, harmônico, evolutivo. Para cada informação sonora que possamos perceber há pelo menos nove outras atravessando nossos átomos, tecidos e idéias, das quais nem tomamos conhecimento.

A teoria mais em voga na Física Moderna escolheu a palavra “strings”, cordas, para emprestar imagem a uma descrição do universo que, finalmente, passou a incluir o mundo incorpóreo. Já não era sem tempo. Há cinco mil anos os místicos são ridicularizados ao falar em raios invisíveis, ondas inaudíveis e dimensões inacessíveis.

“A teoria das cordas cósmicas — superstrings — na forma atual, foi proposta em 1984... É a mais promissora teoria no momento. Nesta teoria, as “partículas” fundamentais são cordas que vibram. As ressonâncias nestas cordas criam as partículas diferentes. Cada corda é extremamente pequena, cerca de 1020, ou 100 bilhões de bilhões de vezes menor do que um próton, e vibra em um espaço com 10 dimensões. Como o espaço-tempo tem 4 dimensões, as outras 6 dimensões seriam colapsadas, e portanto não observáveis. Nesta teoria, padrões vibracionais distintos de uma mesma corda fundamental (um loop), dão origem a diferentes massas e diferentes cargas de força. A teoria requer a existência de 9 dimensões espaciais e uma dimensão temporal, com um total de 10 dimensões. As outras dimensões estão enroladas sobre si mesmas, com distâncias menores que o comprimento de Planck, e portanto não podem ser detectadas. Esta teoria ainda precisa ser testada.”
(Prof. Kepler de Souza Oliveira Filho). (Grifos nossos).
(Extraído de
: http://www.if.ufrgs.br/~kepler/fis207/univ/univ.html).

Quando Hermeto Paschoal diz: — tudo é música, não é apenas figura de linguagem ou abordagem poética do fenômeno. Segundo a física mais avançada, há cordas vibrando no microcosmos, strings, violinos, música!

A mesma ciência que há trezentos anos prefere acreditar mais em microscópios, telescópios e computadores que nos próprios olhos e ouvidos, está chegando à mesma conclusão que Buda havia sugerido 500 anos antes de Cristo: o mundo é uma ilusão, maya. Um string mal pode ser imaginado, é incorpóreo por definição e é disso que tudo se compõe, é disso que somos feitos.

O que nossos sentidos físicos percebem é uma projeção, precipitação material resultante da interação entre energias imperceptíveis, enroladas sobre si mesmas.

Se tudo é manifestado a partir de vibrações imateriais, então a poesia serve melhor à ciência que a matemática:

A luz é reflexo de uma intenção que lhe é interior, sua sonoridade.

Este conhecimento não cabe numa fórmula matemática e não pode ser expresso em palavras. A metáfora é: ao mesmo tempo, a luz está dentro do som e o som está dentro da luz. No cosmos, no macro e no microcosmos, a existência de um implica na existência de outro. Tudo o que há se resume a ecos e reflexos interativos.

Pensamento holístico é buscar a síntese onde já não cabe mais análise. Se pudéssemos isolar um string não poderíamos identificar sua origem ou finalidade através de análise. Na verdade, nem precisamos de um supermicroscópio para entender que a corda é tão somente som e luz em movimento. E se dividirmos um string em mil elementos, cada um deles será tão somente som e luz em movimento.
Esta é a síntese que se impõe para a compreensão da Natureza micro e macrocósmica num só conceito: tudo é som e luz em movimento.

Tudo é música!

Num piano, ao tocarmos a nota no centro do teclado todas as demais cordas afinadas em vibram sutilmente. Além destas, outras cordas afinadas em tons harmônicos também se manifestam como se mãos invisíveis viessem fazer vibrar apenas algumas e não todas as cordas, obedecendo a padrões bastante previsíveis.

A este efeito pode-se chamar ressonância harmônica. Este efeito ocorre em todas as dimensões macro e microcósmicas, onde quer que haja som e luz em movimento: em tudo.

Além dos sons que não percebemos por falta de atenção, há um número infinito de ondas sonoras atravessando continuamente nosso corpo, ele próprio uma fonte borbulhante de ruídos orgânicos. Para a percepção de sons inaudíveis, atividade indispensável à nossa sobrevivência, poderíamos imaginar um ouvido oculto na altura do plexo solar, um captador de vibrações e ondas sonoras pertencentes a oitavas muitíssimo mais altas que as percebidas pelos ouvidos físicos. Um órgão de sentidos não-físicos ou extrafísicos, um tchacra, como ensinaram os hindus e já comprovaram os cientistas ocidentais.

Na presença de um músico ou de uma orquestra, preste atenção na harmonia entre o que seus ouvidos escutam e o que seu coração extrafísico sente. Permita, conscientemente, que seu coração participe da experiência de ouvir. Preste atenção ao que você sente “fisicamente” no centro do peito, num globo que inclui o coração e com ele pulsa em sincronia.

Para o ouvido oculto não importa tanto a letra da canção, vale mais o sentimento do músico, sua vibração pessoal e a ressonância que os acordes possam provocar nos ouvintes.

Não esqueça que o coração extrafísico será muito mais sensível e afinado que o aparelho auditivo ligado ao cérebro. Ambos, coração e ouvidos, ouvem a mesma música, mas o coração percebe uma faixa de freqüências muitíssimo maior. O som audível, interpretado pelos neurônios, propicia diversas ligações e sinapses nos níveis conscientes e inconscientes de nossa personalidade. O coração, por sua vez, além de escutar, repercute harmônicos, “canta” junto.

A sensibilidade auditiva pode ser ampliada através de exercícios bastante simples. Por exemplo, ocasionalmente feche os olhos e concentre sua atenção nos sons que estão compondo seu ambiente. Há sempre surpresas.

• Sons afinadores de ouvidos relaxam o corpo e aguçam a mente: o mar quebrando na praia, quedas d’água, córregos e riachos, o vento nas folhas da mata, a sinfonia dos pássaros na aurora e no entardecer, chuva no telhado, música de ótima qualidade, especialmente quando ouvida na presença do músico sem a intermediação de meios eletrônicos.

• Sons desafinadores de ouvidos tensionam o corpo e entorpecem a mente: motores (especialmente motocicletas, britadeiras e grandes veículos); máquinas industriais, música alta demais, rápida demais ou de péssima qualidade.

Diga-se de passagem, fones de ouvidos só deveriam ser usados por quem anda perto de aviões; engaiolar música no cérebro é torturar a natureza por motivos fúteis.

O que acontece com a harmonia pessoal quando o cérebro registra uma informação sonora e o coração percebe outra muito diferente?

• Um homem corre na beira da pista para exercitar os músculos com um headphone nos ouvidos: o cérebro ouve Mozart enquanto o coração procura estar atento ao trânsito;
• a moça ouve new wave com o cérebro enquanto seu coração escuta o estridente e monótono ritmo das máquinas de malhação;
• um outro caminha à beira mar num dia de sol e prefere ouvir heavy-metal num rádio de ouvido;
• uma senhora dorme enquanto o televisor despeja na sala a trilha sonora de um filme de terror.
Este tipo de dissociação entre emoção e pensamento é um atentado à saúde física e intelectual de qualquer pessoa.

Concentrando nossa atenção em música de alta qualidade realizamos novas sinapses e ligações entre os hemisférios do cérebro, ficamos mais inteligentes e sensíveis. Se a música nos emociona, nosso coração se torna mais leve e saudável, o humor melhora, a capacidade de amar se amplia, a felicidade sorri para nós.

Por outro lado, concentrando nossa atenção em música de má qualidade abrimos espaço em nossa harmonia pessoal para frustrações, azares, ódios e mágoas. Quando nosso coração é tocado por esta vibração, fica pesado, o bom humor se esvai, a irritação se instala e a felicidade se retira.

A música modifica a harmonia do ambiente em que atua e altera fisicamente o universo subatômico de tudo a que atinge. Nossos neurônios e níveis inconscientes de pensamento são profundamente afetados pela presença de ondas sonoras ritmadas e harmônicas.

A música nasce do atrito. Antes de haver som é preciso que haja tensão e conflito: a corda afinada, o couro esticado, a palheta sensível, o arco vergado, a bolha de silêncio, música potencial, som no escuro. Antes da música vem a percussão, o atrito, o golpe, o assoprão, a corrente elétrica, a respiração, atividade, raio de luz.

A música é, então, um momento de transformação, de alteração da realidade. Aquilo que pode mudar um homem, pode mudar um grupo, o que pode mudar uma comunidade pode transformar a sociedade.

Música é energia. Parece óbvio, mas a grande maioria dos cidadãos do planeta está entrando no novo milênio acreditando ainda que música é apenas informação e lazer.

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4. No princípio era o Som.

“Tudo é um, tudo é mil,
tudo acaba e nada tem fim.
Tudo discorda em harmonia universal,
tudo é assim musical.”
(Péricles Cavalcanti).

O Som sempre foi sagrado.

Desde as mais remotas eras, dos primórdios de cada civilização na Terra aos mitos da criação do Universo, o Som, mais que a Luz, é o instrumento dos deuses e a causa primeira de toda manifestação.

— “No princípio era o Verbo e o Verbo era Deus”.

— “Então Deus disse: — haja luz, e a luz se fez”.

— Os cientistas modernos confirmam que tudo começou num big bang, um grande estrondo, o som antes da luz e da forma.

A música na Terra provém de inúmeras vertentes. Das tribos africanas e americanas surge o ritmo xamânico, do Nepal vem a dança sacra, da Índia os mantras e ragas, há as preces cantadas e instrumentais espalhadas pelo mundo árabe. Mas é da China Imperial que nos vem a mais antiga e fundamental raiz da árvore musical moderna.

Há cinco mil anos atrás, quando o Imperador da China chegava para vistoriar uma região distante, em vez de reunir-se com as autoridades ou com os nobres da região, sentava-se para ouvir música. Conforme a música, podia ele avaliar se naquela região havia fartura e harmonia ou discórdia e perigo de conflitos ou de escassez. Na música chinesa havia apenas cinco notas que eram tocadas isoladas, raramente em acordes. As cinco notas sagradas representavam terra, água, ar, fogo e éter; eram símbolos místicos, sons mágicos.

Os músicos, sob intensa concentração, feriam uma corda e o som era ouvido com extrema atenção até que se extinguisse. Havia um rigoroso controle sobre o tipo de som que se podia executar. Era proibido inovar pois os chineses tinham convicção de que distorções na música poderiam desestabilizar a economia e abalar o império. Pode parecer absurdo, mas cabe lembrar que algumas dinastias chinesas lograram durar mais de mil anos.

Dizem os historiadores que a música chinesa original perdeu-se justamente por ser tão radical quando à proibição de inovações. Se a vanguarda pode desestabilizar um império, a rigidez pode revelar-se sufocante e igualmente mortal.

As províncias chinesas formavam grandiosas orquestras, com milhares de músicos, o que indica que seu conceito de música era participativo. Muitos tocavam para poucos, ao contrário do que fazemos hoje quando um único artista pode atingir milhões de ouvintes ao mesmo tempo.

Mais de mil anos de monástico silêncio dão origem na Europa a um novo movimento. O Renascimento tem como fundo musical a obra iluminada de compositores como Bach, Beethoven, Mozart, Strauss, Tchaikovsky e tantos outros. Todos estes extraordinários artistas conheciam e buscavam, conscientemente, utilizar as tonalidades místicas da música e seu poder de elevar o espírito.

Ao mesmo tempo, a Reforma Protestante se faz pelo talento de Martinho Lutero para compor hinos religiosos capazes de mexer com o coração e o imaginário das pessoas.

“Ele mesmo escreveu a Spalatin: “É minha intenção, tendo em vista o exemplo dos profetas e antigos pais, fazer salmos germânicos para o povo, isto é, cânticos espirituais pelos quais a palavra de Deus possa permanecer viva pelo canto”. Escreveu trinta e sete hinos; alguns, vieram dos salmos; outros, tradução de velhos hinos latinos e, alguns, composições originais. Cantavam-se eles por toda parte, permeando a mente popular com as grandes verdades da doutrina reformada. Nas estradas germânicas que se entramearam de homens e mulheres para comprar indulgência, agora ecoavam as alegres estâncias dos reformadores. Os católicos disseram: "Lutero nos causou maior mal com seus hinos que com seus sermões". O cardeal Tomás-á-Jesu escreveu no século XVI: "O interesse por Lutero aumentou de modo extraordinário pelo canto de seus hinos, em toda classe social; não somente nas escolas e igrejas, mas nos lares, oficinas, mercados, ruas e campos.” (Extraído de http://www.jmc.org.br/hinologi.htm).

Lutero modificou a face da Europa com seus hinos, confirmando a teoria chinesa de que a música pode inspirar revoluções culturais.

O som sempre foi sagrado.

O que fizemos com a música neste final de milênio é bastante semelhante ao que fizemos com as florestas, os animais, os rios, os mares, a camada de ozônio, o ar das cidades, a cultura das massas. Tornamos tudo muito sujo, feio, malcheiroso, barulhento e insalubre.

Poucas tradições religiosas ainda guardam a sacralidade do som, como o budismo tibetano, por exemplo. Na cultura dominante do Planeta, o homem já nem se lembra mais que o som foi um dia mais sagrado que a luz.

A industrialização dos meios de divulgação resultou na sabonetização da música popular. A música "enlatada" e os mitos virtuais da grande mídia, emulados por meios de massificação da informação cada vez mais poderosos, dominados por grupos sempre mais e mais gananciosos, competitivos e materialistas, apagaram de nossas memórias os aspectos sagrados da música.

As diversões eletrônicas tomaram conta de toda a nossa cultura musical. Não há mais saraus, serestas e serenatas, não há tertúlias nos CTGs, não se faz mais roda de músicos nas escolas de samba, não se vê mais famílias reunidas para cantar, tocar e ouvir música. Música só através de alto-falantes.

Jamais uma gravação poderá substituir uma apresentação ao vivo, não importa o grau de desenvolvimento tecnológico que possamos alcançar. As informações acústicas destinadas ao coração de quem ouve não podem ser captadas ou retransmitidas por instrumentos tridimensionais.

O Século XX será lembrado na História da Música como um tempo de experimentação e delírio na criação de música destinada apenas à mente dos ouvintes, na qual os aspectos técnicos e visuais são mais valorizados que os atributos harmonizadores do som.

Sobre um fundo musical de bips eletrônicos, jingles e canções de videogame, um guitarrista frenético derruba um mogno milenar com acordes distorcidos, um teclado lança fumaça negra nas camadas exteriores do planeta e um cantor vestido em roupas brilhantes atormenta seu público ignorante com canções que enaltecem a tragédia e alimentam sentimentos de mágoa e rancor. Pobres ouvintes.

O que diria Confúcio, (que recomendava ao povo chinês evitar inovações e variações tonais), se viesse auditar a música que se faz nas atuais províncias do Ocidente? Por certo, após um giro pelo dial de nossas emissoras de FM o sábio ficaria consternado e, com sua experiência, diagnosticaria todas as nossas mazelas apenas pelo som que produzimos e consumimos: graves desequilíbrios ecológicos, indigência intelectual, miséria cultural e brutais conflitos sociais.

Neste cenário de fim de mundo surgem as raízes de um movimento new age, com explícitos propósitos espiritualistas (e implícitos propósitos mercantilistas); os roqueiros progressivos andam em busca da metamúsica, ao mesmo tempo que a música instrumental vai abrindo espaços junto a um público mais esclarecido; a onda unplugged demonstra a preocupação dos artistas com a natureza de sua música e há um número crescente de pais e professores empenhados na musicalização das crianças.

É apenas o começo, sintomas de regeneração. A evolução natural e inevitável de todos os sistemas vivos aponta um novo caminho a partir do início do Terceiro Milênio. A fusão entre os sons relaxantes do Oriente e os sons energizantes do Ocidente deverá resultar numa música mais consciente, mais comprometida com os efeitos imperceptíveis da energia sonora.

Muito breve a Ciência será levada a admitir oficialmente que o mundo material é apenas o esqueleto de um universo invisível de energias poderosas. O som integral e a luz integral, em suas infinitas escalas, serão então melhor observados, sem o temor dos antigos teólogos e sem a arrogância dos materialistas modernos.

O som sempre será sagrado.

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5. O som em curto-circuito.

“Eu minto, mas minha voz não mente,
minha voz soa exatamente,
de onde no corpo da alma de uma pessoa
se produz a palavra eu.”
(Caetano Veloso)

Podemos dividir a História da Música em antes e depois da invenção do microfone. A revolução cultural patrocinada pela possibilidade de capturar e manipular ondas sonoras trouxe efeitos profundos, talvez até mais significativos que os proporcionados pela invenção do automóvel, da pílula anticoncepcional e do computador.

É impossível imaginar o mundo moderno sem telecomunicações, ou seja, sem microfones.

O que se diz unplugged ou acústico nos espetáculos da moda, mesmo evitando distorções e efeitos, não dispensa microfones. O mercado de discos apresenta uma série de álbuns de música acústica. Ora, como seria possível gravar um CD acústico? Acústico precisa ser sem microfone, pois não? Qualquer música que saia de um alto-falante já não é mais música natural ou integral, a maior parte de seus componentes sutis foi filtrada pelo microfone ou alterada pelos transistores.

Para se ouvir boa música sem microfone nestes tempos, só em orquestra de câmara, ensaio de coral, recital de piano, pagode de fundo de quintal e pouca coisa mais que isto. Os próprios músicos modernos compõem e ensaiam em casa utilizando aparelhos eletrônicos de gravação e reprodução.

Agora, para ouvir música criptografada eletronicamente basta apertar um botão em qualquer lugar, na sala, no quarto, no banheiro, no automóvel, na rua, na praia, onde for. Nos shoppings, restaurantes e supermercados, a música "ambiente" é inevitável. Na televisão, a música enlatada pega carona em filmes, novelas, noticiários e anúncios. Até o caminhão do gás toca música. — Estamos cercados!

A tecnologia do som avança em velocidade supersônica enquanto os músicos ficam cada vez mais distantes do público e menos conscientes das profundidades interiores que a energia musical pode alcançar.

Música acústica é música integral e ao vivo. Do ponto de vista holístico, há mais música no desafinado cantor de chuveiro que num rádio que toca Mozart.

Som naturalSom eletrônico

No primeiro dos dois gráficos de freqüência acima, vemos o som de um trio de vozes naturais. No segundo, a mesma canção depois de passar por um microfone de altíssima qualidade. O limite do microfone é dimensional, não há como ensinar um microfone a perceber emoções ou intenções. Por mais sensível que seja o captador, há no som elementos de freqüência emocional que lhe são inacessíveis.

Os equipamentos eletrônicos eliminam ou ignoram o som de inúmeras e amplas faixas de freqüência subjacentes ou sobrejacentes à escala de sons audíveis, entre elas a emoção, o sentimento, a intenção, incluindo-se os aspectos inconscientes da expressão do músico. Ora, a música sem emoção vale um décimo do que é.

Infelizmente, pelos mesmos motivos, teclados eletrônicos e instrumentos com captação direta apresentam os mesmos limites eletrônicos, são excessivamente imprecisos na transmissão de emoções e sentimentos. Atingem facilmente a mente e favorecem a audição física no mesmo compasso em que dissociam os tchacras extrafísicos de seus sentidos físicos correspondentes.

— Qual a diferença entre um violão desplugado e uma guitarra ligada? Ambos fazem soar música no ambiente, o timbre é semelhante, ritmo, harmonia e melodia são idênticos, então qual é o problema? Se um músico se emociona tocando um ou outro instrumento, isto não passa para sua música de qualquer modo?

O som de um violão desplugado é livre como o canto de um pássaro na mata. O som de uma guitarra é como o canto do mesmo pássaro numa gaiola de metal. A diferença é de contexto, de textura energética. A diferença é entre a livre ressonância característica e particular de cada nota em cada instrumento e a vibração submetida a elementos estranhos à natureza do som. O mato, as flores, o ninho por perto, os outros pássaros de sua espécie, os inimigos naturais, o alimento a ser buscado, tudo isto compõe uma sinfonia da qual o canto do pássaro é apenas parte integrante. Na gaiola, sua música incorpora a falta de liberdade, as grades, as paredes, a comida fácil demais, a presença dos humanos, o ruído da cidade.

O contexto da música, por efeito da ressonância harmônica, é parte de sua complexidade. A diferença entre o violão e a guitarra não é apenas formal, é contextual.

Som acústico é caligrafia, som elétrico é texto de máquina de escrever; o violão natural pode ser menos filtrado de ruídos e imperfeições de execução, mas contém a ressonância viva da madeira. Se o que procuramos é autoconhecimento e aprofundamento da consciência, então precisamos ouvir a respiração do músico, sentir seu cheiro, observar seus olhos, vibrar em harmonia com a música que compõe o ambiente. Assim como não se pode fazer um exame grafológico de um texto datilografado, não há como receber informações de caráter metafísico através de instrumentos eletrônicos.

A música eletronicamente modificada é impessoal. Esta impessoalidade, marca das relações humanas neste final de século, está expressa na música que fazemos ou digerimos em nosso dia-a-dia. A quantidade de cópias vendidas e o número de pagantes determinam o sucesso ou o fracasso de um artista. Quanto mais impessoal, repetitiva e visual for a obra de um músico, maiores suas chances de ser reconhecido pelo mercado.

Em busca deste paradigma de sucesso, os jovens talentos musicais de nossa época concentram sua atenção nos elementos mercadológicos e visuais de sua obra. Estudar música até atrapalha; empiricamente já sabem que profundidade mística e qualidade emocional não fazem qualquer sentido no rádio e na televisão. Os cantores atuais em lugar de aulas de canto preferem estudar expressão corporal. Os instrumentistas preocupam-se com a técnica e a rapidez, a marca e o preço de seus teclados, baterias e guitarras, deixando de lado a competência pessoal para criar, transmitir e receber emoções através do som. Utilizando a música como veículo para obter comodidades, desperdiçam o conforto interior que a harmonia pode proporcionar.

O microfone afasta o músico de seus ouvintes assim como afasta o político de seus eleitores. O microfone engendra a enganação que leva à fama tantas nulidades neste inverno frio que vêm atravessando as relações humanas.

Se o meio é parte integrante da mensagem, como afirmou McLuhan, o ouvinte é parte da música. Quando a música é fruto de reprodução eletrônica, o ouvinte é passivo, só a sua mente racional está em ação; o cd toca sempre igual, independe do ouvinte. Quando a música é natural, o ouvinte também é parte da canção, todo o seu corpo ressoa harmônicos inaudíveis, expressando no ambiente sua arte de ouvir; a atenção do ouvinte entra na música através da interação vibracional com o músico.

Na Grécia Antiga, depois em Roma, teatros construídos segundo regras inteligentes de aproveitamento acústico permitiam a participação de milhares de ouvintes em espetáculos onde, é claro, não havia equipamento de som. As paredes reverberavam e permitiam a audição a longa distância. Teatros ocidentais construídos antes do advento do microfone respeitavam regras simples de acústica e favoreciam a audição de solistas e instrumentistas mesmo em espetáculos intimistas.

A sonorização de ambientes deveria ser trabalho para arquitetos engenhosos, não para engenheiros eletrônicos como acontece usualmente.

Observe como são feios os "aparelhos de som": carrancudos, caolhos, metaloplásticos, totêmicos, medonhos. São o retrato perfeito da música que executam, uma música ceifada de emoções, carente de afeto, sem alma e de coração mudo. Para "ver" um pouco melhor o que é música, observe a beleza física dos instrumentos de uma orquestra sinfônica durante um concerto, com suas madeiras e metais, suas curvas femininas, seu brilho suave, a graça de seus movimentos, o balé das mãos, dos olhos e das emoções dos músicos em busca de harmonia.

Estes são eloqüentes aspectos visuais de uma realidade sonora que insistimos em ignorar com base em nossa incipiente racionalidade de sete mil anos; enquanto isso, nosso coração que conta milhões de anos de evolução aguarda paciente por uma nova primavera onde a música integral virá florir à beira dos caminhos, perfumando e colorindo a criação da evolução do homem.

 

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