ciência
Pesquisa de geneticistas da UFMG compara o DNA de brasileiros brancos
com o de europeus, africanos e índios, revelando que linhagens paternas
vêm quase todas de europeus, enquanto as maternas têm forte contribuição
indígena, maior que a de africanas __única surpresa no padrão
esperado de miscigenação
Retrato molecular do Brasil
Reprodução
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Aquarela sobre papel de Aimé-Adrien
Taunay, datada de 1827, mostra o interior de uma habitação de
índios bororos |
Marcelo Leite
Editor de Ciência
O presidente Fernando Henrique Cardoso gosta de dizer que tem o pé
na cozinha. Ainda na condição de candidato, em 1994, apontou o próprio
parentesco com a senzala. Como branco e brasileiro, porém, o mais
correto -geneticamente correto- seria dizer que ele também tem o pé na
oca. A conclusão está numa pesquisa realizada pela equipe de Sérgio
Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a propósito
dos 500 anos do país. Pena batizou-a como "Retrato Molecular do
Brasil", uma referência ao "Retrato do Brasil" de Paulo
Prado, de 1927. E, claro, à fértil tradição de trabalhos que culmina
em duas obras-primas do ano de 1933, "Raízes do Brasil", de Sérgio
Buarque de Holanda, e "Casa Grande & Senzala", de Gilberto
Freyre. Os genes não costumam mentir. "Quem herda não
furta", dizia-se antigamente, em sentido tanto patrimonial quanto
genealógico. Pois agora eles estão comprovando que a miscigenação
deixou marcas profundas na população que se autoclassifica como
branca, a maioria (51,6%) do país segundo o IBGE. Marcas contribuídas
por mães índias e negras, porém. Resumidamente, eis as conclusões do
grupo de geneticistas: a quase totalidade dos genes dos brancos
brasileiros de hoje herdados por via paterna vieram de portugueses; já
no que respeita ao que foi recebido pela linhagem materna, 60% veio de
índias e de negras. O trabalho será publicado na edição de abril da
revista "Ciência Hoje". Para Sérgio Pena, a surpresa maior
foi encontrar tamanha contribuição de "sangue" (o correto é
dizer ancestralidade) indígena na população branca. "Todo mundo
no Brasil já aceita o fato de que nós somos mestiços, mas não com índios",
diz. Surpreendente também, para o geneticista, é ter encontrado zero
de traços genéticos índios nas linhagens paternas. Tudo se encaixa,
no entanto, com o que se sabe do padrão de ocupação do Brasil
colonial: homens portugueses que deixavam as mulheres em Portugal e aqui
se juntavam com mulheres indígenas, num primeiro momento, e depois com
as escravas negras.
Cromossomo Y
Pena e seu grupo utilizaram marcadores genéticos já clássicos para
estudos de genealogia na escala de populações, o cromossomo Y e o DNA
(ácido desoxirribonucléico, a molécula-código da hereditariedade) de
mitocôndrias. Sua vantagem é que esses elementos genéticos são
transmitidos unicamente por um dos "lados" da linhagem,
respectivamente a masculina e a feminina. Cromossomos Y existem apenas
em homens e só podem ser herdados do pai. O mesmo se pode dizer, quase
100%, sobre os pequenos trechos de DNA existentes nas mitocôndrias (órgãos
responsáveis pela produção de energia dentro das células): elas são
recebidas somente da mãe, por intermédio do óvulo. Quando um
espermatozóide penetra no óvulo, suas mitocôndrias terminam
descartadas, sem contribuir com material genético para a progênie.
Bem, isso é verdadeiro quase 100%, mas não 100%.
Em dezembro passado,
artigo publicado na revista "Science" revelou que ocorre ao
menos alguma mistura (recombinação, no jargão genético) entre DNA
mitocondrial (mtDNA) de gametas masculinos e femininos. Um dos autores
do estudo é John Maynard Smith, que figura entre os maiores biólogos
do século. Segundo Sérgio Pena, porém, esses eventos de recombinação
ocorreriam com milhares de anos entre si. A diferença indicada pelo
artigo de Maynard Smith seria apenas entre algo impossível e algo muito
raro. Como todo material genético, o cromossomo Y e o mtDNA sofrem mutações
ao longo do tempo. Populações atuais, assim, carregam em seus genes
registros dessa história genética, na forma dos chamados polimorfismos
(diferenças por assim dizer periféricas na sequência de letras químicas
de um determinado ponto do genoma, ou coleção de genes). Como não
ocorre recombinação, esses trechos de DNA são transmitidos em bloco
de geração para geração, permitindo rastreá-los ao longo da história
-e da geografia. Esses blocos, ou grupos de polimorfismos característicos,
são conhecidos como haplótipos.
Adão americano
"Os estudos filogeográficos usando o cromossomo Y baseiam-se na
teoria, universalmente aceita, de que todos os haplótipos de
cromossomos Y existentes hoje derivam de um haplótipo ancestral que
estaria presente entre os primeiros Homo sapiens", explica Pena em
seu texto. "À medida que os homens migraram para novas regiões,
esse conjunto inicial de genes foi sendo modificado por mutações, o
que gerou novos haplótipos, cada um comportando-se como uma linhagem
evolutiva independente. Em geral, quanto mais antigo o haplótipo, maior
sua distribuição geográfica." Foi com base nesse tipo de análise
que Pena, em conjunto com Fabrício Santos, também da UFMG, localizaram
em 1995 a provável origem dos ameríndios na Sibéria Central. Eles
compararam os polimorfismos dos índios brasileiros atuais com os de várias
populações do mundo. O maior grau de semelhança indicou os altais,
nas montanhas de mesmo nome, e os ketis, na bacia do rio Ienissei.
Falou-se, então, em um "Adão americano", ou seja, o
ancestral comum que teria adentrado as Américas há cerca de 12 mil
anos para fundar a população encontrada no século 16 pelo colonizador
europeu. No caso da população brasileira presente, a história ensina
que foi formada por europeus, africanos e ameríndios, fundamentalmente.
O time da UFMG partiu então em busca dos polimorfismos já conhecidos
como peculiares desses grupos em uma amostra de brancos, para medir o
efeito da miscigenação entre as pessoas que (ainda) se classificam
como tal. Foram analisadas amostras de DNA de 200 homens e 247 mulheres
não-aparentados, escolhidos aleatoriamente entre universitários e
pacientes de estudos de determinação de paternidade. Como essa
amostragem tinha muitas pessoas de classe média e alta, o DNA de um
grupo de dez trabalhadores rurais do vale do Jequitinhonha -uma das regiões
mais pobres de Minas Gerais- foi usada para comparação, como uma forma
de controlar distorções socioeconômicas.
Sangue de índia
Entre os homens, como foi dito acima, não houve grande surpresa. Nada
menos do que 98% dos haplótipos encontrados por Sérgio Pena e seus
colaboradores (Denise Carvalho-Silva, Juliana Alves-Silva, Vânia Prado
e Fabrício Santos) são claramente atribuíveis a uma origem européia,
particularmente a portugueses (que possuem uma fisionomia genética própria,
na paisagem da Europa, por conta da influência moura, ou norte-africana,
em sua história). A comparação foi estabelecida com auxílio de uma
amostra de 93 homens portugueses, fornecida pelo geneticista Jorge
Rocha, da Universidade do Porto.
Os outros 2% de ancestrais Y vieram de grupos africanos, verificou a
equipe da UFMG. Digno de nota é que os geneticistas encontraram zero
-isso mesmo, zero- de linhagens ameríndias paternas no sangue dos
brancos de hoje. Ou seja, do ponto de vista genético e estatístico,
brasileiros do sexo masculino vivos não têm ancestrais índios do
mesmo sexo (nem mesmo entre seus tataravós).
Bem diferente é o panorama da genealogia colonial oferecido pelas
linhagens maternas, ou seja, pelos polimorfismos do mtDNA. Nesse caso, a
distribuição é bem mais uniforme: 39% de contribuição européia,
33% de indígena e 28% de africanas.
A variação das linhagens maternas entre as várias regiões, no
entanto, mostra-se considerável. No Sul, por exemplo, predominam os
haplótipos de mtDNA de origem européia (66%). Como esperado, também,
no Norte há maior proporção de linhagens indígenas (54%), e no
Nordeste, de africanas (44%). A região com maior uniformidade, e assim
mais próxima da média brasileira, é o Sudeste.
Masculinidade portuguesa
Sérgio Pena acaba de retornar de Portugal, onde apresentou seu trabalho
aos colegas de além-mar. Como a população brasileira é bem maior do
que a da ex-metrópole e sua componente masculina é majoritariamente
proveniente daquela banda da península Ibérica, o geneticista
brasileiro conta, divertido, ter afirmado que o Brasil é hoje reduto da
masculinidade portuguesa (uns 40 milhões de cópias do cromossomo Y,
contra 5 milhões em Portugal). Um certo mal-estar, diz, percorreu a
platéia. Acrescentou, então, que na realidade o Y português havia
vencido no Brasil. "Aí eles gostaram." Pena faz também um cálculo
semelhante para os haplótipos de fonte indígena no Brasil. Quando os
lusos deram por aqui, estima-se que havia cerca de 4 milhões de índios
no que se tornaria o território nacional, dos quais metade homens.
Hoje, como há na população um terço de haplótipos indígenas (mtDNA),
isso corresponderia a algo como 50 milhões de linhagens ameríndias, ou
pelo menos dez vezes mais do que havia quando a Terra dos Papagaios foi
descoberta. Segundo o geneticista da UFMG, essa descoberta da alta
proporção de matrilinhagens indígenas revelou um novo instrumento de
pesquisa no que chama de garimpo genético (ou arqueologia). "O
homem branco brasileiro é um repositório fantástico de ancestralidade
índia", afirma. "Podemos garimpar linhagens extintas no
branco brasileiro."
Relevância social
"Vários autores (...) enfatizaram a natureza tri-híbrida da
população brasileira, a partir dos ameríndios, europeus e
africanos", escrevem Sérgio Pena e seus colaboradores da
Universidade Federal de Minas na conclusão do trabalho.
"Os dados que obtivemos dão respaldo científico a essa noção e
acrescentam um importante detalhe: a contribuição européia foi
basicamente por meio de homens e a ameríndia e africana foi
principalmente por meio de mulheres. A presença de 60% de
matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é
inesperadamente alta e, por isso mesmo tem grande relevância
social."
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