Joinville
Progresso chega
com estação ferroviária
A partir da obra, em
1905, avenida Getúlio Vargas se desenvolveu
Maria Cristina Dias
No início deste século, um caminho ainda estreito, com valas laterais
para drenagem do solo úmido e apenas macadamizado, começava a assumir
papel de destaque na vida econômica da cidade, que rapidamente se
expandia. Era a "Katharinenstrasse", a rua Santa Catarina que
levava a população do centro de Joinville à distante zona Sul. Aos
poucos ela foi se desenvolvendo, sendo alargada, calçada até se
transformar nas décadas de 30, 40, 50 e até 60, em importante pólo
comercial da região. Hoje, conhecida como avenida Getúlio Vargas, ela
ainda é uma das principais e mais movimentadas vias de Joinville.
Primeiro foram as carroças, depois as bicicletas, bondes e automóveis.
Devido à posição estratégica, desde que fora aberto, ainda no século
passado, o caminho era intensamente usado pelos veículos e pedestres, que
tinham nele praticamente o único acesso à zona Sul. Mas a construção
de um empreendimento no início do século iria contribuir para alavancar
o progresso da área: a Estação Ferroviária de Joinville.
Era final de 1905 e a cidade evoluía a olhos vistos, impulsionada pelo
ciclo da erva-mate, o que certamente influenciou na decisão de incluir
Joinville no caminho dos trilhos da rede ferroviária. Inicialmente, a Cia
Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (que em 1901 obteve a concessão da
construção do ramal São Francisco do Sul) não incluía a antiga Colônia
Dona Francisca entre as localidades que comporiam a rede.
Ao contrário. Segundo o historiador Carlos Ficker, no livro "História
de Joinville, Crônicas da Colônia Dona Francisca", o traçado
original da linha passava a cerca de 25 quilômetros ao sul, sem atingir
Joinville. Apenas em 1902 isto foi modificado, em atendimento a um apelo
da Câmara Municipal ao então Ministro da Viação, Lauro Müller.
Definição
Com isso, a nova linha passaria pela cidade. O local para a estação
ferroviária foi então definido, seria na "Katharinenstrasse".
Na época, para ir a São Francisco do Sul, era preciso pegar um dos
vapores e seguir pelo rio Cachoeira, já que praticamente não havia ainda
estradas transitáveis para lá.
Após determinado o curso da nova linha, os trabalhos começaram a
evoluir. Logo em 1903 foi realizado o levantamento topográfico de toda a
área e, no início de 1905, começavam as obras de terraplanagem no
sentido São Francisco, Joinville, Itapocu. Naquele mesmo ano, foi
aprovada a planta da Estação Ferroviária de Joinville, obra de porte
situada quase no final da rua Santa Catarina, que foi erguida no antigo
terreno dos Joenck, sob a administração de Fernando Lepper.
Comunidade de Joinville cobrou
melhoria da infra-estrutura urbana
Com a decisão de passar a estrada de ferro por Joinville, a população
previu a evolução do local e a necessidade de melhorar a infra-estrutura
urbana. Ficker cita comentários da época, embora sem explicitar a fonte.
"Com a breve inauguração da estrada de ferro, a rua Santa Catarina,
cujos terrenos já subiram muito de valor, vai aumentar e triplicar o seu
trânsito em veículos, que transportarão pessoas e mercadorias de e para
a estação férrea. Quem, compreendendo essa necessidade, quisesse
corrigir a imprevisão do passado, devia começar pelo alargamento desta
rua. A sua edificação tem, por felicidade, guardada certa linha em recuo
de alinhamento, de modo que, para se estabelecer hoje o alargamento, só
se torna necessária a retirada dos cercados existentes à frente das
casas, alargando-se o leito da rua, estabelecendo-se entre o alinhamento
das casas e as valas de escoamento o trânsito para pedestres, deixando-se
livre aos veículos todo o espaço do centro".
A entrega da Estação Ferroviária de Joinville ao público ocorreu em
clima de festa, em 29 de julho de 1906. Era um domingo e desde cedo os
moradores da cidade se dirigiam para a "Katharinenstrasse" para
assistir, no final da tarde, a chegada da primeira locomotiva à cidade.
Segundo os registros da época foi grande a afluência das pessoas, que
margeavam a linha ou na plataforma para ver o comboio que se aproximava. A
banda de música "Guarany" também compareceu e, com a execução
de diversas peças, contribuiu para aumentar o clima de euforia.
Para comemorar o feito, a cervejaria Kuehne, cujo gerente era Guilherme
Walther e ficava instalada na antiga rua da Cerveja, atual rua Jaguaruna,
lançou no comércio uma nova marca de cerveja, a "Marca Progresso
1906". Era um momento de prosperidade para Joinville e para a avenida
Getúlio Vargas, que, por sua posição privilegiada, a partir daí, a
cada dia atrairia mais estabelecimentos comerciais e empresas dos mais
diversos ramos de atividade. (MCD)
Principal atacadista
Também estabelecido na avenida Getúlio Vargas estava o médico Jeser
Faria, genro de Jorge Mayerle, que, na mesma rua mantinha o maior comércio
atacadista da região, abastecendo não só Joinville, mas também as
cidades vizinhas.
Outro profissional liberal era o dentista Werner Neumann, próximo ao
secos e molhados de Leopoldo Elling. O caminho também contava com o secos
e molhados de Edgar Klein, com a loja de tecidos de Elias Zattar, a farmácia
Kuhmlehn e a de Leônidas Sá, o comércio de Chede Dippe e a loja de
fazendas de Feres Zattar. Os irmãos Parucker tinham uma funilaria e não
faltavam alfaiatarias na rua, além de muitos outros estabelecimentos.
Onde hoje está o Shopping Americanas ficava a fábrica de máquinas
Raimann, que produzia equipamentos para a indústria mecânica e no local
da atual Cipla, antes estava instalado o depósito de madeira de Bernardo
Stamm.
Abrangendo dois quarteirões e sendo cortado pelas águas de um riacho,
havia o ainda o Pasto do Walter, uma extensa área aonde os carroceiros
que vinham de outras paragens realizar negócios na avenida podiam deixar
suas carroças e cavalos. (MCD)
Caminho era marcado
por comércio e indústrias
Nas décadas de 30, 40, 50 e até os anos 60, a avenida Getúlio Vargas
era fundamental para o comércio de Joinville. Caminho para a Estação
Ferroviária, nela havia dezenas de casas comerciais de varejo e atacado,
grande parte delas de propriedade dos "turcos", como eram
genericamente chamados os árabes, libaneses, sírios e até turcos.
Antes disso, porém, do final da década de 10 até o início dos anos
20, uma indústria se destacou no início da rua, próximo ao hospital.
Era a "Companhia Chímica Industrial" e a Farmácia Flora Dubois
e Cia, de Oscar Neermann e do sócio Dubois. Alemão e farmacêutico de
formação, Neermann morava ao lado da empresa, que fabricava desde pílulas
fortificantes e contra a febre, até pó para pudim, essências para
gasosas, perfumes, artigos dentários, tintas a óleo e produtos químicos
em geral. O empreendimento fechou no início dos anos 20, quando a família
se mudou para Curitiba e depois São Paulo.
Padaria
Quase em frente à "Cia Chímica", ficava inicialmente a
padaria e, tempos depois, também a fábrica de biscoitos de Carl Kasting.
O estabelecimento funcionava no térreo, a família residia no segundo
andar e os empregados (que trabalhavam durante a madrugada) eram alojados
no último pavimento do prédio, que ainda hoje permanece no local.
A partir daí era possível contar com os serviços do soldador Conrado
Lindroth ou comprar pinheirinhos de Natal na Fábrica Heller. Nesse trecho
inicial se encontrava também o comércio dos "turcos", com a
Casa Oriental, de Calixto Zattar, um libanês que veio ao Brasil para
passar a lua-de- mel, em 1920, e jamais retornou à Pátria de origem.
Onde hoje é o supermercado Vitória, antes havia a fábrica de tubos de
concreto dos Irmãos Rosa e adiante a cabeleireira Nailda, que ainda hoje
está estabelecida no local. Mais a frente havia a ferraria de Emílio
Klass, o Café Amélia, da família Mendes, a marcenaria Eggert e o comércio
de tecidos de Abílio Farah. (MCD)
Casa de Caridade
surge com a colônia
Fundado há 146 anos,
Hospital já atendia os imigrantes
Maria Cristina Dias
Desde o início deste século, quem precisa de assistência médico-hospitalar
tem na avenida Getúlio Vargas um ponto de referência. É o Hospital
Municipal São José, o mais tradicional de Joinville. Embora a parte mais
antiga do atual prédio tenha sido erguida em 1906, a entidade já
funcionava muito antes. Fundado há 146 anos, apenas um ano após a
chegada dos primeiros imigrantes alemães e o início oficial da Colônia
Dona Francisca, a princípio era uma modesta casa de saúde e atendia os
colonos, que sofriam com as mazelas típicas de áreas tropicais e com as
dificuldades de se adaptar ao novo País.
Ainda em 1851, uma epidemia de tifo dizimou dezenas de imigrantes e
trouxe medo e insegurança aos que sobreviveram. A criação de um
hospital e a presença de um médico para atender à comunidade era uma
necessidade que já estava prevista. Ela fora determinada no contrato em
que o príncipe de Joinville cedia as terras que recebera como dote da
esposa, Francisca Carolina, à Companhia Colonizadora de Hamburgo, em
1849. O parágrafo oito era bem claro: "O sr Schroeder obriga-se a
construir, conforme a necessidade, igrejas, hospitais e escolas, e enviar
os respectivos sacerdotes, médicos e professores". E assim foi
estabelecida a casa de saúde.
A construção da Casa de Caridade, entretanto, só ocorreu no início
do século. Ela integrava a lista de compromissos pelo superintendente
Procópio Gomes de Oliveira durante a campanha eleitoral e em 4 de junho
de 1906 foi inaugurada.
Dificuldades foram muitas. A começar pela escolha do terreno, que
deveria ser em local apropriado e adquirido a preços módicos, já que o
aporte de capital era restrito. Foi então constituída uma comissão
formada pelo próprio Procópio Gomes, Abdon Batista e Oscar Schneider (três
importantes empresários da época, vinculados ao ciclo da erva-mate) para
viabilizar a obra.
O terreno foi obtido junto ao padre Carlos Boegershausen, que tinha uma
área de terras naquele local e a cedeu. Já o dinheiro para o
empreendimento foi obtido com a ajuda da comunidade. Conta Carlos Ficker
que havia uma "grêmio beneficente", que arrecadava recursos
para a edificação. Somados estes recursos à dívida que o Estado tinha
com o hospital velho e a venda do terreno onde ele funcionava juntou-se 40
contos de réis e foi possível o início das obras.
Banda de música na inauguração
O dia 4 de junho de 1906 foi festivo em Joinville. Desde as primeiras
horas da manhã a população se concentrava em frente ao novo prédio da
Casa de Caridade, que seria oficialmente entregue ao público às 10
horas. As sociedades musicais "Guarany" e "28 de
Setembro" animaram o evento, enquanto os presentes eram brindados com
o sorteio de bilhetes de entrada no Salão Mayerle e prêmios. À tarde,
no jardim Mayerle, na "Katherinestrasse" houve jogos de boliche,
rifas e outras diversões. Toda a sociedade estava representada.
No discurso inaugural, Procópio Gomes de Oliveira fez um relato das
dificuldades que foram superadas para realizar a obra: "O novo
hospital que hoje entrego ao município, eu espero e desejo que sempre há
de ser um verdadeiro asilo paternal, abrigo santificado para os
desventurados", discursou o superintendente, que, em seguida, abriu
as portas da Casa de Caridade e convidou a população a entrar e conhecer
as novas instalações. Nas enfermarias já havia 12 enfermos (internados
dois dias antes), sob os cuidados das irmãs. Havia instalações amplas
pra crianças, homens e mulheres, além de quartos reservados aos doentes
particulares.
O superintendente também homenageou o velho padre Carlos Boegershausen,
que por mais de 40 anos prestou atendimento à comunidade, além de ceder
o terreno para viabilizar a obra. Em função da idade avançada, ele
havia sido recentemente jubilado do magistério. Em dezembro daquele mesmo
ano, padre Carlos faleceria nas instalações particulares da Casa de
Caridade que ajudara a erguer. (MCD)
Mudanças incomodam
Muita coisa mudou na rua Getúlio Vargas nas últimas décadas e hoje,
os antigos casarões que já abrigaram prósperos estabelecimentos
comerciais e residências dividem espaços com novas edificações. Quem
conheceu outros tempos e ainda hoje está estabelecido na rua reclama que
o movimento diminuiu nos últimos anos. Há várias décadas o trânsito
na avenida Getúlio Vargas seguia em duas mãos, o que beneficiava o comércio
na área. Isso mudou a tempos, mas ainda é reclamação dos moradores.
"Tinha mais movimento", conta o comerciante Aderito Gaspar
Carvalho, 74 anos, que há 27 anos está radicado no local com a Casa
Carvalho, um armarinho. Sem se identificar, um morador nascido e criado na
região, lembrou que já houve solicitação dos comerciantes para o
restabelecimento da mão dupla e, em eleições passadas, um candidato à
prefeitura chegou a se comprometer a reverter a mudança, o que não
ocorreu. (MCD)
Personalidade polêmica
Em 1883, nascia na cidade gaúcha de São Borja, Getúlio Dornelles
Vargas, que anos mais tarde viria a se tornar presidente da República e
uma das figuras mais amadas e odiadas da história do Brasil. Amanhã, será
lembrado o 44º ano de seu suicídio, que abalou a nação.
Ditador para uns e "pai do trabalhador" para outros, Getúlio
iniciou a vida pública em 1909, como deputado em seu Estado natal.
Daquele ano até 1926, sucederam diversos mandatos na Assembléia local e
na Câmara Federal até que em 1926 assumiu o Ministério da Fazenda no
governo Washington Luis.
Após deixar a pasta da Fazenda, Getúlio foi eleito governador do Rio
Grande do Sul. Era a época da chamada "política do café com
leite". Após eleições de lisura duvidosa para a sucessão de
Washington Luis, a Aliança Popular liderada por Vargas e pelo paraibano
João Pessoa, perdeu o pleito.
A sucessão presidencial naquele ano, entretanto seria decidida por uma
revolução que, liderada por Vargas, eclodiu em 3 de outubro, rapidamente
se espalhou pelo País e terminou um mês depois, com a renúncia de
Washington Luis. Era o início da chamada "era Vargas", que só
terminaria com seu suicídio, em 24 de agosto de 1954.
A gestão de Vargas foi marcada pela repressão à expressão política
e, ao mesmo tempo, pelo avanço nas áreas social e econômica. Em 1937,
Getúlio lideraria outro golpe, desta vez para garantir sua continuação
no poder. Afastado tempos depois da presidência, mas com forte apelo
junto aos trabalhadores, ele se candidatou ao cargo e, desta vez, pelas
urnas, foi reconduzido ao comando do País, de onde só saiu, ainda
durante seu mandato, morto. (MCD)
Há 53 anos alfaiate
costura a vida na avenida
Em meio a centenas de caixas de camisa, cabides de roupas de estilos e
tamanhos diversos e tecidos das mais variadas cores e texturas, um
profissional há 53 anos se destaca na avenida Getúlio Vargas. É Daniel,
"o alfaiate da multidão", como indica a placa instalada sobre a
porta de sua loja. O estabelecimento já está naquele exato local há 38
anos, porém a história de Daniel e da antiga rua Santa Catarina se
encontrou antes, quando, em 1931, o menino com apenas um ano de idade,
foi, junto com a família, residir em uma antiga casa de madeira na
avenida.
A casa já não existe mais, mas as lembranças de quem passou a infância
no local continuam vívidas. Daniel conta que em 1945 começou a aprender
a profissão junto ao alfaiate Oscar Parucker, estabelecido na Getúlio
Vargas, onde hoje é Papelaria Cruzeiro.
A vocação foi determinada pelo pai. "Éramos em oito e eu era o
mais franzino de casa. Quando fiz 14 anos, o pai disse que estava na hora
de aprender uma profissão". E determinou: o melhor é ser alfaiate.
"Para mim isso bastou. No dia seguinte saí dizendo que ia ser
alfaiate", relembra.
Depois de aprender o ofício, ele ainda trabalhou algum tempo com o
mestre, até que resolveu abrir, em casa, o próprio negócio. "Dia 6
de setembro é o dia do alfaiate. E nesse dia, sem saber da data, trouxe
uma escada e, eu mesmo, preguei a placa. Estava meio acanhado. Ia começar
e na frente tinha outra alfaiataria estabelecida". O estabelecimento
era de Binkoski, mas o real motivo do acanhamento era o que dizia o
letreiro: "Daniel, O Alfaiate da Multidão".
O primeiro terno da carreira foi para o pai, o representante comercial
João Bernardino da Silveira, que também vendia fogos de artifícios e
tinha, em casa, uma fábrica de sacos de papel. "Ele comprou um corte
preto e disse: 'Esse aqui é para o meu enterro'". Depois vieram
muitos desafios. Como o de um funcionário da olaria de Max Schuelke (que
ficava ao lado da loja de Oscar Parucker) que era muito gordo. "Assim
que me tornei profissional tive vontade de fazer um terno para ele. Um dia
ele veio e eu tive o prazer". Outro caso interessante foi o de um
corcunda, que trabalhava para o atacadista Jorge Mayerle.
Naqueles tempos havia inúmeras alfaiatarias na rua Santa Catarina,
lado a lado com as lojas de tecidos dos "turcos". E a população
consumia. "Não se entrava em bailes em manga de camisa. Tinha que
ter terno e a profissão era requisitada", revela. (MCD)
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