A Grande Arte
Rubem Fonseca
O boliviano
não conseguira me matar, como Mateus lhe havia pedido, em Corumbá.
Isso o deixara frustrado. Depois de matar Mercedes, achou melhor sumir
o mais rapidamente possível, Fuentes agora não tinha dúvida
de que a polícia o soltara no Rio para segui-lo até Corumbá.
Ele pensou que eu devia também ser um tira, trabalhando com Mercedes,
ele nos vira juntos, várias vezes, no trem e no hotel. Mercedes,
para ele, morreu porque cometera o erro de se distrair, indo dormir no
meu quarto, que certamente eu era seu amante. Não se dorme em serviço,
era seu lema. Ele também se portara muito descuidadamente, fora
desatento, não percebera que Zélia era uma isca, colocada
por Mercedes, e quase se dera mal. Gostaria de poder falar com Mateus,
contar o que havia ocorrido, a razão de não ter executado
sua incumbência; não queria que seu prestígio profissional
fosse afetado. Tinha certeza de que Mateus entenderia sua explicação;
Fuentes sentia que Mateus gostava dele, Mateus respeitava pessoas sérias
como ele.
Antes
de morrer, Mercedes trava uma ferrenha luta com o boliviano, conseguindo,
diante de uma força brutal do homem, somente enterrar sua unha no
olho de seu assassino. Em conseqüência, Camilo perde a córnea,
ficando cego de um olho. Ao retornar a São Paulo, supondo que seu
comportamento ativaria a vingança do Escritório Central,
pois deixara de cumprir sua tarefa a contento, desativa seu apartamento
da Av. São João, entrega a Bento, o jornaleiro, algum dinheiro
para o pagamento de suas contas e, como não pode ir embora de vez
porque seu apartamento é o único contato dele com Mateus,
mantém-no fechado, marcando um encontro com o jornaleiro para o
próximo dia 15. Depois, viaja para o Rio, e decide ficar com um
olho cego por não poder comprar uma córnea de um ser vivo.
Por acaso, num supermercado, encontra Míriam, a mesma pessoa que
havia contratado os serviços do advogado Mandrake.
Fuentes
retorna a São Paulo. Quando chega ao apartamento, encontra Benito
assassinado na banheira e supõe que ele contara tudo o que sabia.
Entra no Cine Ipiranga, local combinado para o encontro, e consegue descobrir
dois homens suspeitos. Do primeiro, Lupicínio, rouba uma arma e
espera mais algum tempo para pegar o segundo, Dirceu que lhe confessa tudo.
No trecho transcrito abaixo, observamos a maneira onisciente de conduzir
a narrativa e a interferência da primeira pessoa, o tom moderno de
colocar o diálogo, e a rapidez das cenas, numa quase cinematográfica
seqüência.
O homem, para
não cair, apoiava-se, agora, no ombro de Fuentes. Seu hálito
recendia às balas de hortelã que chupara na sala de espera.
"Dou o serviço
e ficamos numa boa."
"Fala."
"Quem nos contratou
foi o Mateus."
"Benito estava
no contrato?"
"Não.
Só você. Estávamos esperando você no apartamento
quando o garoto chegou. Perguntamos por você e ele disse que não
sabia quem você era, que tinha ido lá para fazer a limpeza
do apartamento e mostrou o material de limpeza que estava carregando. Demos
um arrocho nele e ele contou que ia encontrar você no cinema."
"Só isso?"
"É isso
aí. Serviço completo. Teu negócio é o Mateus
ou mais em cima, sou apenas um técnico, como você. Tudo bem?
Numa boa?"
"Por que vocês
fizeram aquilo com o rapaz? Ele era medroso, bastava dar um grito com ele."
"Nada disso.
Precisou ser muito trabalhado para abrir o bico."
"Vou levar a
tua gravata, disse Fuentes afrouxando o laço da gravata do homem."
"Leva o que
quiser. Não diz pro Mateus que eu dedurei ele."
"Pode deixar.
É de seda esta gravata?"
"Seda pura.
Só gosto de vestir coisa fina. Compro tudo na..."
Não terminou
a frase. Sua língua tremulou por instantes inutilmente entre os
lábios abertos. A forte constrição aplicada no seu
pescoço impediu que qualquer som lhe saísse da garganta.
Fuentes revistou
os bolsos do homem: Dirceu Guimarães, outro Taurus, cinco notas
de mil, Elo, Diners, Credicard. Fuentes apanhou o dinheiro e os cartões
de crédito deixando o Taurus. Ao sair, tentou repetir o que fizera
com o corpo de Lupicínio, mas embora os pés de Dirceu permanecessem
no vaso, seu tórax caiu no chão e a cabeça apareceu
por baixo da porta, como se estivesse espiando em direção
às pias.
Fuentes pegou
um táxi na porta do Marabá e seguiu para a rodoviária.
Enquanto esperava o ônibus comprou um saco de biscoitos de polvilho,
que comeu encostado num canto, observando o movimento da estação.
Ele gostaria de passear um pouco, mas andar devagar chama a atenção
e quem anda depressa tem que chegar a um destino. O melhor seria sentar-se
num banco lendo o jornal ou fingir que dormia - mas ele não fecharia
os olhos nem numa igreja, se um dia fosse à igreja. Tinha que esperar
duas horas pelo ônibus do Rio, no qual conseguira passagem. Não
gostava de andar de ônibus devido aos assaltos que eram comuns na
Via Dutra, mas não queria gastar dinheiro numa passagem de avião.
Na verdade, tinha medo de viajar de avião. Mas isso ele não
sabia.
Esse boliviano,
no transcorrer da narrativa, vai deixando a cara de vilão e se transformando
numa espécie de herói a ser admirado, pois gradualmente vai
se tornando simpático ao leitor. Esperto, inteligente e isolado
de todos, consegue alguns poucos amigos nas classes menos favorecidas.
José
Zakkai
Tem por
cognome "Nariz de Ferro" e se autodefine como homem que sabem das coisas
e passa os dias ao telefone para se informar. É um anão presunçoso,
excessivamente falante, que, por dever favores a Raul, começa a
dizer coisas que sabia. Procura Mandrake com uma finalidade não
claramente definida e acaba se referindo ao Escritório Central e
ao submundo do crime. Os Cadernos de Lima Prado falam sobre um encontro
marcado com ele. Não se sabe o exato motivo da entrevista, mas,
através da leitura, Mandrake supõe que é feita uma
menção ao videocassete. Zakkai, apesar de ser sócio
em uma das firmas controladas pelo Escritório Central, não
conhece o envolvimento do presidente Aquiles com a Organização.
Mandrake quando indaga por que a Organização pretende matá-lo,
percebe que Nariz de Ferro sabe muito. Algumas informações
importantes são passadas para Mandrake: o Escritório Central
é uma associação criminosa que utiliza empresas legítimas
como cobertura e que se proliferam com o nome de "Aquiles"; Roberto Mitry
está envolvido e precisa ser eliminado; Nariz de Ferro está
brigando e enfrentando a Organização; Mandrake corre risco
de vida. Mais tarde, após descobrir o paradeiro de Camilo Fuentes,
nariz de ferro aproxima-se dele e lhe propõe trabalho, na tentativa
de fazê-lo seu braço direito. Camilo é encarregado
de matar Rafael, cena esta que vem descrita num dos momentos de maior violência
do volume.
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