A Grande Arte
Rubem Fonseca
Fuentes tirou
do bolso uma caixinha de papelão vermelha, com um rótulo
onde estava escrito "Homeopatia Faria, Variolinium 200a, 10papéis".
Dentro havia três baratas grandes, cascudas, vivas.
Fuentes retirou
uma das baratas, que se debateu entre seus dedos, agitando pernas e antenas.
Ao ver a barata, Rafael arregalou os olhos e ficou lívido. Fuentes
curvou-se sobre ele, segurou seu rosto e ficou e começou a enfiar
a barata na boca de Rafael. Rafael trincou os dentes e procurou livrar
o rosto da pressão dos dedos de Fuentes. Os dois lutaram por algum
tempo. Espremida contra os lábios cerrados de Rafael a barata despedaçou-se
cobrindo-lhe a boca e o queixo com uma gosma viscosa, fedorenta. Fuentes
olhou o rosto de Rafael, que rolou pelo chão como um rato envenenado,
raspando a boca no assoalho.
"E o videocassete?"
perguntou Fuentes.
Rafael vomitava,
espasmos violentos que não o deixaram ouvir a pergunta.
"Dá um
tempo", disse Nariz de Ferro.
Um cheiro acre
repugnante invadiu o ar.
Esperaram.
Rafael abriu
os olhos. Os olhos dele e os de Fuentes se cruzaram, um tentando entender
o outro.
"E o videocassete?"
disse Fuentes.
"O problema
é que ele não é covarde", disse Nariz de Ferro. "Nojo
de barata, acho que só nós dois, no mundo inteiro, não
temos, eu vi como você pegou nela. Certa época, quando eu
não tinha onde morar e dormia na soleira das portas, surgiu na cidade
um matador que jogava gasolina nos mendigos que dormiam e ateava fogo.
Matou um monte. Eu senti que ele ia me pegar; sabe, tive aquele pressentimento.
Ele quase me pegou mesmo. Acordei com o corpo todo molhado de gasolina,
ele tentando acender um fósforo e jogar em cima de mim, com a cara
de quem está acendendo o gás de um fogão. Corri como
um louco. E depois daquele dia passei a dormir dentro de um bueiro. As
baratas passeavam em cima do meu corpo, mas eu sabia que não iam
me fazer nenhum mal, no máximo chupar um pedacinho de lábio
aqui, uma pelinha do dedo ali, mas com elas eu estava seguro, a morte estava
lá fora, tinha duas pernas, dois braços, uma cabeça,
como eu, feita à imagem e semelhança de Deus Nosso Senhor
Jesus Cristo.
"O videocassete?"
Pareceu a Nariz de Ferro que a voz de Fuentes continha um certo desgosto.
Um dia de surpresas.
"Não
achei, China."
"não
me chama de China. Eu pedi tantas vezes." Não havia rancor, agora.
Os dois estavam cansados. Haviam chegado ao fundo.
"Você
procurou bem?", perguntou Nariz de Ferro.
"O cara... o
granfa tinha milhares de cassetes... mas esse... uma caixa preta..."
"Ele não
achou", disse Fuentes.
Nariz de Ferro
apanhou a tesoura que estava no chão. Estendeu-a para Fuentes.
"Acaba com ele."
"Não
mato um homem amarrado."
Rafael fechou
os olhos.
"Eu mato," disse
Nariz de Ferro.
Além
de Rafael, a guerra entre Nariz de Ferro e Lima Prado ainda produziria
outros mortos, entre eles o professor Hermes, perito em arma branca, ex-sargento
do Exército, o mesmo professor que ensinara Mandrake a manusear
a navalha. No texto selecionado abaixo, sob o olhar vigilante de Nariz
de Ferro, dá-se a luta entre os dois titãs do aço
- Hermes e Fuentes.
O sabre
grosso e afiado desceu com uma velocidade incrível. O desvio de
Hermes foi rápido e ele conseguiu livrar a cabeça. Não
impediu, porém, que o Machete atingisse de cheio seu ombro, dilacerando
os músculos trapézio e pequeno rombóide e fraturando
os ossos da clavícula e da omoplata. A faca continuou firme na mão
de Hermes, mas ele caiu sentado no chão, o rosto impassível,
lívido. O enchimento do paletó diminuíra um pouco
a força do golpe, impedindo que o aço entrasse mais fundo.
Hermes sentiu o silêncio ficar mais abafado, como se tivessem colocado
algodão nos seus ouvidos. Mas mesmo assim, conseguiu ouvir o sibilar
da lâmina cortando o ar antes de chocar-se com a sua têmpora.
(...) Nariz
de Ferro nunca havia ouvido um som como aquele, do machete de Fuentes rachando
a cabeça de Hermes. O golpe foi tão violento que um pedaço
da cabeça foi arrancado e atirado contra a parede. O som da pancada,
um som duplo, ficou no ar algum tempo, duas partes sonoras, a primeira,
um estrépito estalado como de madeira quebrando, a outra, um ruído
profundo e abafado, que Nariz de Ferro atribuiu aos miolos sendo expelidos.
Thales
Lima Prado tem uma complicada formação familiar. Embora tenha
sido mencionado na primeira parte do romance, é na segunda que chega
a ser desenvolvido plenamente como personagem. Vamos conhecer aqui as origens
dos Cadernos que deram a oportunidade para Mandrake reconstruir a trajetória
dele. A árvore genealógica dos Prado tem início com
José Joaquim de Barros Lima, filho de imigrantes, nascido no Rio
em 1845. Seus pais, depois de muita economia, conseguem comprar uma carvoaria
e mandar o filho estudar em Coimbra. Retorna formado e se casa com Vicentina
Cintra, filha de Abelardo Cintra, senador de grande prestígio, político
por ser republicano e abolicionista. Tem veleidades literárias,
freqüenta saraus e é amigo pessoal de Machado de Assis. Concorre
a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas é derrotado. A
partir daí, vive em função de suas atividades profissionais,
morrendo antes de tomar posse no cargo de Ministro do Superior Tribunal
Federal. De seus casamentos, tem duas filhas: Laurinda e Maria do Socorro.
Maria
do Socorro tem um comportamento estranho; veste-se de homem, é rebelde
e excêntrica. Travestida de homem, freqüenta os bordéis
de Luxo da Rua Taylor. As mulheres chegam a se apaixonar por aquele "rapaz"
delicado que lhes recita versos e nunca aparece despido. Quando desempenha
o papel de mulher, procura ser uma jovem normal, mas fuma em público,
dirige em alta velocidade e monta no Clube Hípico do Rio de Janeiro.
Acaba assassinada por uma amante, uma prostituta polaca e, embora a notícia
tenha sido abafada pela família, circula através de boatos.
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