Capa (Fonte: ISTOÉ - Edição 1606 - 07/07/2000.)

Guerra aos planos
Cansados dos abusos cometidos pelos convênios, médicos e consumidores tentam virar o jogo

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Juliane Zaché, Lena Castellón e Mônica Tarantino

Foto: Max G. Pinto
O ginecologista Antônio Torquato Alves, 48 anos, se sentiu lesado como usuário e como médico. Em 1995, descobriu que sofria de esclerose múltipla. Ele atendia pacientes pela Amil. Quando a empresa soube da doença, o descredenciou. Alegou que ele diminuiria os atendimentos diários. “A empresa pressionava para que fossem realizadas 20 consultas por dia.” Na mesma época, o Saúde Bradesco o eliminou do convênio, ao qual era associado, por causa de sua doença. Ele conseguiu uma liminar garantindo o atendimento. Para o Saúde Bradesco, o contrato, feito em 1990, não dá direito à cobertura de doenças crônicas

Quem não conhece uma história de alguém que já tenha passado por apuros com o plano de saúde? Do reajuste de preços das mensalidades ao desligamento de hospitais conveniados, as queixas dos consumidores se somam. Sem contar com um sistema público de saúde de qualidade, o brasileiro está à mercê das empresas privadas. São cerca de 45 milhões de usuários que comprometem parte de seus rendimentos mensais para receber um atendimento médico de nível superior ao oferecido gratuitamente pelo governo. Ao menos em tese. De sete meses para cá – quando a regulamentação do setor ditada pelo governo entrou em vigor –, o que se verifica é que os consumidores continuam gastando saliva e paciência para ter o tratamento que se espera de um serviço pago. Em uma pesquisa realizada pela Istoé online com 222 leitores, 65% deles afirmaram estar insatisfeitos com seus planos de saúde. Até o ministro da Saúde, José Serra, já amargou surpresas desagradáveis por conta dos planos. Há dois anos, ele ficou revoltado quando soube que a mensalidade do convênio de sua mãe, Serafina, havia aumentado de R$ 200 para R$ 800 só porque ela mudou de faixa etária. E os usuários não estão isolados nessa briga. Ganharam o apoio dos médicos, que lançaram no mês passado uma campanha nacional para denunciar abusos impostos veladamente pelos convênios. Esses profissionais estão sendo pressionados a aumentar o número de consultas por dia, a diminuir os pedidos de exames e correm o risco de serem descredenciados se desobedecerem às recomendações. “Estamos à beira de um abismo com os olhos fechados”, desabafa o médico Florisval Meinão, diretor de Defesa Profissional da Associação Paulista de Medicina (APM).

Com o slogan “Chega de desrespeito”, a APM, a Associação Médica Brasileira (AMB) e outras entidades iniciaram a contenda com os convênios. A campanha diz o seguinte: “Tem plano de saúde que enfia a faca em você. E tira o sangue dos médicos.” O movimento quer chamar a atenção para as pressões a que os profissionais são submetidos e a consequente queda na qualidade do atendimento. Uma das principais queixas é a baixo valor pago pelas consultas. Os profissionais afirmam que desde 1996 os planos receberam 96% de aumento no reajuste das mensalidades, enquanto nos últimos oito meses houve redução de honorários. “Temos críticas severas aos planos com visão mercantil”, diz Eleuses Vieira de Paula, presidente da AMB.

Foto: André Sarmento
Normanei Rezende, 40 anos, era associada ao Unicor quando começou a sentir dor na perna direita, há dois anos. Para avaliação do problema, diagnosticado como desgaste ósseo, foi solicitada uma ressonância magnética. O exame foi recusado. O convênio negou também a fisioterapia necessária. Normanei optou pela Blue Life, que prometia carência zero e cobertura da fisioterapia. Só na hora de marcar consulta soube que havia carência. “Em abril, entrei na Justiça e a Blue Life recorreu”, diz. A empresa alega que Normanei sabia da carência

Indicador – Os médicos recomendam aos consumidores saber quanto as operadoras pagam aos profissionais pela consulta. Quanto maior o valor, mais chance de o usuário ser atendido por alguém melhor qualificado. A importância também denuncia o tamanho do respeito que a operadora tem pelo profissional e usuário. “Se o consumidor paga R$ 400 pelo convênio e o profissional recebe R$ 10 pela consulta, a qualidade do atendimento será afetada. Essa empresa está mais preocupada com o dinheiro. É bom lembrar que uma lavagem de carro em um lava-rápido sai por volta de R$ 12”, afirma José Luiz Amaral, presidente da APM.

As críticas dos médicos vão mais além. De acordo com Vieira de Paula, da AMB, as empresas burlam a regulamentação e pressionam os profissionais para reduzir os custos dos tratamentos de seus pacientes de maneira nada ética. Na prática, isso se traduz na colocação sucessiva de obstáculos para a realização de exames mais caros, como a ressonância magnética. O tempo e as condições de internação são outros problemas. É comum as operadoras insistirem em transferir um paciente em estado grave, internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), para o quarto. “Quem não fizer isso tem desconto de 20% a 40% nos honorários”, diz Vieira de Paula. Se o médico não seguir as regras, é descredenciado. Arlindo de Almeida, presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), entidade que representa boa parte das empresas, alega que as operadoras economizam em alguns casos para evitar desperdícios. “Certos pacientes visitam três médicos por dia e todos pedem o mesmo exame”, reclama.

Foto: Carlos Magno
Em 1995, a empresária carioca Esther Villela, 44 anos, teve a confirmação de que seu filho Igor, sete, era portador de leucemia (câncer nas células sanguíneas). Todo mês, a criança ficava internada. O número de internações ultrapassou o previsto no plano que tinha da Amil. A empresa se recusou a pagar o tratamento e Esther entrou na Justiça. A Amil teve de arcar com os custos. No dia 3 de maio de 1996, o garoto morreu. Apesar disso, o processo continuou correndo. Esther ganhou. “Nada paga a vida do meu filho. Só queria provar que brigar contra essas empresas vale a pena.” A Amil garante que mesmo antes da nova lei vendia contratos sem limitação de dias para internação. Lamentavelmente, Igor e Esther não usufruíram desse benefício.

Na campanha contra os planos, há outro alerta feito pelos médicos: poucos consumidores sabem que direitos têm ao assinar um contrato novo de convênio (consulte quadro à pág.99). É preciso saber que as empresas são obrigadas a arcar com os custos de tratamento de doenças pré-existentes, independentemente do tipo de plano escolhido. Essa obrigatoriedade passou a valer com a lei que regulamentou o setor, em vigor desde dezembro de 1999. Porém, com as novas regras, quem tem plano feito antes desta data se vê em situação mais difícil ainda. Por enquanto, para usufruir dos benefícios da nova legislação, esse consumidor precisa pagar um adicional (agravo) ou optar por um esquema no qual terá direito a essa cobertura somente depois de dois anos. Quem não concordar, tem de se contentar com as regras velhas. Ou isso ou esperar que esse grande emaranhado em que se transformou o assunto finalmente seja desfeito. Há pelo menos uma tentativa de executar essa árdua tarefa. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão do governo que fiscaliza os planos e seguros de saúde, deve definir em breve se de fato os consumidores com planos anteriores à nova lei terão de pagar o agravo.

Apesar de tanta confusão, a regulamentação, pelo menos, colocou um freio em algumas atitudes das operadoras, como a oferta dos planos. Antes as empresas decidiam livremente que tipo de serviço ofereciam aos clientes. “O mercado era completamente selvagem”, define Lucia Helena Magalhães, assessora de direção do Procon de São Paulo. Hoje as operadoras têm obrigação de oferecer o plano mais completo para o consumidor. Outro quesito solucionado na lei foram os reajustes das mensalidades, uma das principais reclamações dos clientes no Procon paulista. O aumento das mensalidades dos contratos novos e antigos passam a ser anuais, são autorizados pela ANS e devem constar no boleto de pagamento. Quem quiser se certificar ainda mais, pode consultar o site da agência (www.ans.saude.gov.br), com a lista das operadoras autorizadas a subir o preço. “Se houver denúncias, abriremos um processo contra a operadora”, informa o diretor de produtos da ANS, João Luis Barroca. O telefone para contato é: 0800611997.

Colaboraram: Francisco Alves Filho (RJ) e Ricardo Miranda (DF)

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