A Influência da Abolição da Pena de Morte na Evolução do Sistema Penal Português. O Valor Positivo da Abolição da Pena de Morte no Sistema Jurídico

 

5. A prevenção geral mediante intimidação geral: O perigo de se confundir justiça com utilidade

I. O que (explicando)

A justiça não legitima a pena de morte. Mas explicá-la-á a necessidade ou utilidade social?
A campanha abolicionista foi inicilmente alimentada sobretudo pela demonstração da sua inutilidade. Deslocado o problema da pena de morte para o campo da prevenção geral ou da eliminação individual, indispensáveis à defesa social, a sua solução fica dependente da apreciação empírica. Será de manter a abolição ou de restaurar a pena de morte consoante ela se mostrar ou não necessária ou inútil em cada momento. E, deste ponto de vista, é despiciendo encarecer a gravidade e o perigo que a questão reveste para o progresso moral da ordem jurídica.
No passado, frequentemente se confundiram os fins de intimidação geral e de retribuição. O castigo moldar-se-ia em função das conveniências da intimidação geral. Mas também na época moderna a necessidade social foi invocada como argumento decisivo para restauração da pena de morte onde ela já for a abolida. ALFREDO ROCCO, no seu discurso ao Senado Italiano em 1925, defendendo a restauração da pena de morte, expressou-se assim: «Nós cremos que o indivíduo é um meio e não um fim, que a sociedade tem fins próprios que transcendem a vida do indivíduo e aos quais os fins individuais devem subordinar-se. Esta hipótese, que parecia absurda à filosofia do individualismo, em que o indivíduo é reduzido ao valor de meio, reconhecêmo-la como perfeitamente normal e a única apta a explicar certos grandes fenómenos da vida social qu a doutrina liberal não explica senão como absurdas degenerescências ou monstruosas heresias; por exemplo a guerra, o sacrifício da vida dos indivíduos a um fim mais alto, as necessidades históricas ou imanentes do Estado e da Nação. Ora, se este sacrifício total da vida se impõe a homens que nada têm a censurar-se, a cidadãos exemplares, porque não poderá o mesmo sacrifício impor-se aos delinquentes, os quais por certo não merecem a mesma piedade e a mesma consideração, pela necessidade social da intimidação e da eliminação? Se se reduz ao valor de meio o soldado, porque não poderá sê-lo o delinquente? Em consequência a razão justificativa da pena de morte deve encontrar-se sobretudo na necessidade da defesa social, para obtenção da qual a pena última, embora possa parecer cruel, do ponto de vista individual, não é de rejeitar já que nesta matéria o que deve pervalecer acima de tudo é o interesse social».
Justificar uma pena em função predominantemente da prevenção geral é na verdade - há que reconhecê-lo - transformar o condenado em meio ou instrumento do poder do Estado. A pena não será justa, nem então precisa de o ser. Será útil como veículo da intimidação de todos os cidadãos. A pena de morte, porque mais terrífica, será mais idónea para servir de exemplo, prevenindo os crimes em geral. A medida da pena será então a utilidade pública, como se esta em vez de objecto fosse critério de valoração jurídica. E contudo, a dignidade do homem, mesmo se delinquente, não consente a sua degradação a simples meio. O homem não se dilui na sociedade a que pertence; é nela elemento autónomo e livremente actuante. A sociedade que o esquece diminui-se a si mesma.
O sofisma da argumentação agrava-se com a inovação de um inexistente paralelismo com a situação do soldado. Os cidadãos que, como soldados, defendem a Pátria não são condenados pelo Estado a morrer; o terror nunca fez heróis. Batem-se por valores mais altos, no cumprimento do dever que lhes cabe como cidadãos; não são um meio para realização de fins, que por os transcenderem, não seriam seus. Defendem a Pátria que é sua, valores que a todos pertencem, e que à guarda de todos se encontram. E o delinquente? É admissível que deva sofrer a pena de morte, de suportar qualquer pena, para que o Estado possa criar um exemplo? Ainda que subrepticiamente, esta função da pena reaparece constantemente, dando conteúdo à medida ou desmedida da repressão.
Mas, se a intimidação geral não pode, por si e autonomamente, ser um fim legítimo da pena, mas tão somente um efeito da pena justa e não será justa a pena que se serve do delinquente como meio para atemorizar os outros, por outro lado não está provado que o temor da pena de morte afaste mais eficazmente do crime. E se a justificação da pena de morte se buscar exclusivamente na sua necessidade ou na necessidade de maior intimidação, haveria que demonstrar essa sua superior eficácia. O que os factos registam porém é que o valor exemplar da pena de morte actua por maneira inversa da que se pretende.
O terror como forma abusiva da justiça, é uma força bárbara que se não refreia. Não respeita balisas. Quando o Estado mata para dar um exemplo que julga salutar, insensivelmente alarga o campo de aplicação da pena de morte. O terror gera o terror. E neste pendor todas as penas cruéis de outrora receberiam de novo a sua justificação. Porém, hoje em dia, nos países que mantém a pena de morte, o Estado, como agudamente acentuou CAMUS, não acredita verdaddeiramente na exemplaridade da pena de morte. Se acreditasse, as execuções continuariam a ser públicas para que o desejado exemplo actuasse mais vivamente sobre os cidadãos.
É que o exemplo mais nefasto é o exemplo que provenha do próprio Estado. O papel que ele desempenha na morigeração dos costumes e na elevação espiritual da vida colectiva é enorme. A boutade de ALPHONSE KARR no Parlamento francês convidando os homicidas a começarem abstendo-se de matar, para que o Estado se sentisse autorizado a abolir a pena de morte, revela o círculo vicioso em que cai o terror como sistema. É ao Estado que cabe dar o exemplo, pois que a pena de morte endurece o espírito público, habitua-o à crueza e à brutalidade.
As execuções públicas foram durante muito tempo acontecimentos festivos. E a habituação, a acomodação ao terror, torna inevitável um agravamento deste, para se recuperar a eficácia pretendida. Ao invés a moderação das penas, aumenta a sensibilidade pública quanto à repressão e fortalece a sua eficácia. A lei não pode entrar em competição de brutalidade com os delinquentes, para não dar, pelo seu exemplo, causa ao entorpecimento moral da sensibilidade pública.

II. O como (dizendo)

A lei de 1 de Julho de 1867 aboliu a pena de morte na Metrópole, para os crimes comuns. Por decreto do governo do Duque de Saldanha de 9 de Julho de 1870 tornou-se extensiva a referida abolição às Províncias Ultramarinas, decreto confirmado pela Lei de 27 de Dezembro de 1870. Manteve-se apenas no Código de Justiça Militar em tempo de guerra, mediante a ressalva constitucional: no caso de beligerância com país estrangeiro e para ser aplicada no teatro de guerra.
Partidários convictos da abolição da pena de morte, bem como muitos países que a suprimiram, admitem-na por excepção, nos casos de grave perturbação da ordem social interna ou em tempo de guerra. A necessidade em tais casos, sobrepor-se-ia à justiça da pena. Mas porque a justificação seria inoperante, quis buscar-se para estas situações de grave perigo para a segurança interna ou externa do Estado um fundamento bastante para a excepção admitida, fundamento que seria o direito de legítima defesa do Estado.
A legítima defesa justifica indubitavelmente, quando racionalmente necessária, a morte do agressor. Mas não é de invocar aqui. A defesa é legítima para suspender ou evitar um perigo em execução ou iminente. É sempre uma acção directa que pode ter lugar, se absolutamente necessária, na repressão de uma amotinação, no julgamento duma revolução, ou em casos semelhantes. Mas a pena de morte não é uma defesa. É aplicada quando o criminoso já foi detido e se encontra sujeito à autoridade da lei e dos tribunais. A punição já não pode qualificar-se de acto de prevenção dum perigo em execução ou iminente, mas de repressão de um crime perpretado. Já não é legítima defesa.
Importa referir que é precisamente nos períodos mais perturbados da vida social que cresce a tendência para formas aberrantes de repressão. A história dos nossos dias demonstra que durante e no final da última guerra mundial (1939-1945) se deu uma inflação de execuções capitais, num delírio de medo e de repressão, de ódio e de vingança, que fundamente marcaram os povos que sofreram essa provação.
Em Portugal, os limites da ordem constitucional (Constituição Política de 1933, art. 8º, n.º 11) tornaram praticamente inutil a excepção referida. A guerra é, no séc. XX, uma guerra total. O perigo que se pretende conjurar com a pena de morte surge tanto no teatro de guerra como for a dele. E as modalidades de guerra não declarada e de guerra subversiva substituíram, com inusitada frequência, o velho conceito de beligerância com países estrangeiros.

 


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