A Influência da Abolição da Pena de Morte na Evolução do Sistema Penal Português. O Valor Positivo da Abolição da Pena de Morte no Sistema Jurídico

 

4. A injustiça da pena de morte: Necessidade de referir todo o Direito a critérios de Justiça

Abolida a pena de morte, a sua sombra deixou de projectar-se sobre toda a escala de penas, e abriu a senda de uma evolução frutuosa. À luz desta evolução se desenha nitidamente a injustiça da pena de morte. Como reacção vindicativa é estranha ao direito; como retribuição da culpa é inadequada e abnorme.
A pena de morte é o aniquilamento total. Para respeitar a sua equivalência à culpa, esta teria de ser também total. Mas a culpa nunca é uma grandeza absoluta. Não existe uma imputabilidade sem falhas, uma vontade sem fraquezas, uma liberdade sem limites. Seja qual for a opinião que se diga sobre a importância da influência da sociedade sobre os indivíduos, ela não pode nunca excluir-se inteiramente. «Somos responsáveis todos por tudo», disse eloquentemente DOSTOIEVSKI.
A culpabilidade assenta na vontade, cuja deformação ou desvario a própria sociedade em maior ou menor medida influencia. Uma culpa partilhada é sempre uma culpa diminuída. Para que a culpa fosse alguma vez plena seria necessário que o homem deixasse de ser homem. À relatividade da culpa não pode corresponder o absoluto aniquilamento. Por outro lado a pena, enquanto expiação da culpa, tem de ser também acto do condenado, em que ele participa como pessoa. A pena de morte não actua sobre o homem; degrada-o a objecto, para o eliminar, negando a potencialidade de redenção da culpa.
Já no século XVI, AFONSO DE CASTRO, professor da Universidade de Salamanca, recusou a legitimidade da pena de morte quando o delinquente pudesse ser corrigido por qualquer modo. Esta observação então formulada como um limite, tem valor essencial porque a pena, para o ser, deve respeitar a dignidade da pessoa humana, isto é, deve dirigir-se ao homem, enquanto pessoa. E é também por esta razão que não obstante a grande incerteza doutrinária sobre a legitimidade, em tese, da pena de morte, me parece dever ela, no condicionalismo actual, ser negada.
Processa-se na ciência jurídica, de há decénios a esta parte, um vigoroso renascimento da doutrina do direito natural. A tendência para transformar o direito positivo em instrumento servil e acomodatício da utilidade pública ou da razão de Estado, definida arbitrariamente, tornou patente a necessidade de referir todo o Direito a critérios de Justiça.
Evidentemente que a história demonstra que a formulação em preceitos positivos da Justiça não é igual em todos os tempos. Mas a historicidade do Direito, dando-lhe embora conteúdo variável, não enferma a continuidade da sua essência. O Direito penal, como acertadamente observou BATTAGLINI, é como que uma janela sobre o Direito Natural. É o homem na sua integralidade, que perpassa nos seus preceitos: como suporte da culpa, que a lei não pode criar arbitrariamente, ainda que a possa definir mais ou menos correctamente consoante o grau de civilização e também como sujeito da pena. E parece-me ser de razão sustentar que, se a pena, enquanto espiação da culpa, se dirige à pessoa humana, não poderia destrui-la sem perder a qualidade de sanção jurídica.
O Estado não pode matar para punir. O homem não se esgota no Estado; os valores pelos quais se define o ser humano, enquanto pessoa, escapam ao seu domínio. Destruindo o delinquente, o Estado exorbita do seu poder legítimo; destrói o que não cria e suprime o sujeito da pena, retirando a esta o seu suporte. A pena de morte não é só irreparável no sentido de que não consente a reparação de erros judiciários, mas porque exclui a própria reparação moral que o delinquente deve, como homem, à sociedade.

 


[ Página principal] [ Índice do discurso] [ Seguinte]

Direitos reservados - Manuel Cavaleiro de Ferreira - 2004 -
Last modified: December 22, 2004

Hosted by www.Geocities.ws

1