A Influência da Abolição da Pena de Morte na Evolução do Sistema Penal Português. O Valor Positivo da Abolição da Pena de Morte no Sistema Jurídico

 

3. Evolução do conceito de pena

I. Explicando "o que" na elaboração do conceito de pena

Há já muitos anos, o jurista subtil que foi GUSTAV RADBRUCH, resumindo a história do sistema penal e em particular a história da pena capital, salientou que a pena de morte constitui um corpo estranho no sistema penal. Enquadrar-se-ia como elo final numa cadeia de penas corporais, como os açoites, as mutilações; mas desaparecidas todas as demais penas corporais, a pena de morte está em oposição com a função e fins das penas privativas de liberdade e pecuniárias. Não seria e não é com elas conciliável.
A observação é correcta. A pena de morte só pode buscar justificação na ideia de retribuição ou na realização do fim de prevenção geral, mediante a intimidação, ou de prevenção especial, mediante a eliminação. É naturalmente incompatível com qualquer fim de emenda ou ressocialização do delinquente. Acresce, porém, que a pena de morte enquanto e onde subsiste, ensombra o conceito e a natureza da pena em geral, deformando-os, para os acomodar a si própria.

a. A ideia de retribuição na pena de morte: O talião; Grócio; vindicta

Toda a pena é por sua natureza repressiva. Mas não deve entender-se a repressão tal como ela se revela na pena de morte. Como retribuição, a pena de morte realiza apenas a ideia arcaica do talião. A pena seria um mal a infingir ao delinquente, equivalente ao mal do crime: «malum passionis ob malum actiones»; é essa a definição de GRÓCIO que sói citar-se ainda como a mais concisa. Mas esta definição e relativamente à pena de morte, o mal determinante da pena é o resultado do crime, a ofensa do bem jurídico da vítima, e o mal equivalente, o mal da pena, um mal de igual natureza, qualitativa e quantitativamente igual ao mal causado: olho por olho, dente por dente, morte por morte.
Nestes termos a retribuição mais não será que vindicta: vindicta pública a substituir a primitiva vindicta privada; mas similar a esta dela se distinguirá em razão de quem a impõe, no primeiro caso o Estado, no segundo o particular. Esta sua característica explica porque os últimos defensores da pena capital justificaram a sua aplicação somente ao homcídio premeditado ou assassínio.

b. Impossibilidade de adoptar penas de conteúdo aflitivo igual ao do mal causado pelo crime

Logicamente e para manter a equivalência indicada, haveria que buscar-se no velho arsenal das penas toda a gama de penas cruéis, e mesmo assim foi e será sempre impossível adoptar penas com conteúdo aflictivo igual ao do mal causado pelo crime, isto é, fazer corresponder a cada espécie de dano idêntica lesão da esfera jurídica do delinquente, como conteúdo da pena.
Mas a verdade é que o mal do crime, que as demais penas devem retribuir, não é o dano da vítima, que o direito penal não repara, mas o dano moral causado à sociedade. E este é maior ou menor não exclusivamente, nem mesmo primacialmente, em função do resultado do crime mas sobretudo em função da culpabilidade do delinquente. E a culpabilidade, longe de ser uma grandeza constante na mesma espécie de crime, como se praticamente se inferisse da gravidade do dano voluntariamente causado, é pelo contrário um conceito extremamente graduável, cujas dimensões se ampliaram de maneira a abranger não apenas a deliberação da vontade, mas todo o processo da sua formação, os seus motivos, a sua adequação à personalidade do delinquente. À culpabilidade, porque graduável, não pode corresponder a pena de morte porque insusceptível de graduação.

c. O carácter aflitivo da pena num sistema encabeçado pela pena de morte

Também a natureza vindicativa da pena de morte se traduz no seu carácter essencialmente aflitivo; todas as demais penas, num sistema encabeçado pla pena de morte, deveriam logicamente implicar um sofrimento, como essencial á sua natureza. Teriam de ser um mal, porque sofrimento, equivalente ao mal causado. Difícil será justificar, desde que assim se considere a essência de todas as penas, instituições como a condenação condicional, o perdão, as penas de espécie não aflitiva. Havia de recusar-se-lhes cabimento no sistema penal. E quanto à emenda ou readaptação social do delinquente só poderia propor-se como fim da pena na medida em que pudesse efectuar-se por meios aflitivos. E contudo, se joeirarmos as excrecências vindicativas a função retributiva da pena, esta não carece de ser em si mesma um mal. O mal não se repara com o mal. A morte não se castiga com a morte; ao homicídio não se contrapõe um homicídio legal.

d. Espiritualização dos termos da retribuição: A retribuição do dano causado à sociedade em função da culpabilidade do delinquente

Algures escrevi já que é porventura conatural da pena um sofrimento enquanto ela consiste na sujeição a restrições da esfera jurídica do delinquente; mas a dor que a reprovação jurídica e a restrição da esfera jurídica causa, não é da própria natureza da pena, sobretudo se se entender por mal intrínseco da pena um sofrimento físico. A dor da pena, se ela a devesse determinar, seria uma dor moral, suscitada pelo remorso e arrependimento que deve seguir-se a toda a culpa e a redime.

e. Novo conceito de pena

Basta à pena para ser retributiva que ela traduza uma reprovação jurídica em razão da culpabilidade do delinquente. Com essa reprovação é inteiramente conciliável a emenda ou readaptação social do condenado porque a reparação do crime, segundo os ditames da justiça distributiva, há-de consistir, não em impor uma lesão igual ao dano, mas em sujeitar o delinquente a uma pena com estrutura e aptidão para o reintegrar na vida social. A pena não é intrinsecamente um mal. O mal com que se reage ao mal só pode duplicar o mal; não o repara nem o suprime.

II. Como foi elaborado um novo conceito de pena (dizendo):

Têm estes princípios frutificado nas instituições penais e penitenciárias; mas são eles inteiramente avessos à natureza da pena de morte, e por isso só puderam verdadeiramente desenvolver-se quando a pena de morte foi abolida. Para elaborar um novo conceito de pena, havia que expurgá-lo das anomalias que ao conceito arcaico impunha a natureza da pena de morte.

a. Inutilidade da pena de morte; Beccaria, séc. XVIII
Esta renovação do conceito processou-se paulatinamente. E por isso, quando no século XVIII BECCARIA submeteu a certeira crítica a pena de morte, não ousou ainda impugnar a sua legitimidade, nem radicalmente recusar justiça à sua cominação. Pretendeu antes demonstrar a sua inutilidade. Porque não necessária, deveria pragmaticamente, em princípio, prescindir-se da sua utilização. Na verdade, defendendo-se contra a crítica que no seu tempo lhe foi movida e que partia da defesa do sistema vigente, e para se ilibar do que considerava uma crítica imerecida, BECCARIA afirmava nada ser mais verdadeiro do que ele ter considerado justa a pena de morte sempre que ela fosse útil ou necessária; e para demonstrar que seria conveniente proibir a sua utilização, tentara fazer reconhecer que ela não era nem necessária nem verdadeiramente útil. A pena de morte estava ainda integrada num sistema penal que a não repelia.

b. Desnecessidade da pena de morte; Barjona de Freitas, Lei de 1 de Julho de 1867

A luta abolicionista desenrolou-se por isso e sobretudo com feição humanitária e pragmática. Não era a legitimidade da pena de morte que estava em causa mas tão só a sua necessidade. Similar raciocínio consta ainda da lei de 1 de Julho de 1867, cujo relatório, da autoria de BARJONA DE FREITAS, depois de proclamar que «a pena de morte paga o sangue com o sangue, mata mas não corrige, vinga mas não melhora, usurpa a Deus as prerrogativas da vida; fechando a porta ao arrependimento, apaga no coração do condenado toda a esperança de redenção, opõe à falibilidade da justiça humana as trevas de uma punição irreparável», como que recua na sua convicção ao asseverar que «onde a estatística criminal acusa a existência de crimes de subida gravidade (aumento progressivo), onde não bastam as diligências de prevenção e a severidade das penas que não atacam a vida, onde a instrução, a moralidade, a brandura dos costumes não alcançam dispensar o rigor da suprema penalidade, a necessidade social basta a legitimar nos poderes públicos o direito de aplicar a pena de morte, quando ela não ofende a justa proporção entre o castigo e o crime. Onde, porém, a sociedade está bem organizada ela poderá bem defender-se sem imolar à sua conservação a vida dos delinquentes».

c. Código de 1852

Essa posição pragmática que, ressalvando a legitimidade da pena de morte, a repelia apenas por desnecessária e enquanto desnecessária, era fundamentalmente a mesma que tomara também o Código de 1852 para a admitir. A diversidade de soluções alicerçava-se naturalmente na estatística que demonstrara em 1867 que a percentagem dos crimes graves não aumentara, embora a pena de morte estivesse abolida de facto desde 1846.

d. O princípio da proporcionalidade, Emmanuel Kant

Fazer depender a justiça da pena de morte da sua necessidade, contudo, não conduz ainda a uma solução decisiva. Não é de admirar por isso que a opinião de BECCARIA, não obstante o clamoroso eco que alcançou, fosse também vigorosamente contestada. E entre os seus mais ilustres opositores entrou na liça da polémica o grande filósofo EMMANUEL KANT. São dele estas palavras: «Quem matou, deve morrer. Não há outro sucedâneo para satisfação da justiça. Não há igualdade entre a vida, embora em condições aflitivas e a morte, e por conseguinte nenhuma igualdade entre o crime e a repressão senão pela condenação à morte do delinquente, desde que despida de qualquer tortura que seria monstruosa para o padecente

e. Evolução da definição de proporcionalidade no relatório da Lei de 1884; espiritualização dos termos da retribuição

É a reivindicação e defesa do talião. Diferentemente, ainda que atendo-se ao carácter retributivo da pena, nota-se já claramente no relatório da lei de 1884, que deu origem ao chamado Código de 1886, hoje (1967) em vigor, uma evolução na definição da proporcionalidade do mal com o mal, enquanto característica da pena.
Os termos da pretendida equação espiritualizam-se. As grandezas a comparar desviam-se do paralelismo aritmético do primitivo talião. «A fórmula da pena de talião, que ao espírito de muitos se afigura o mais solene documento de crueza, dos desvarios e da barbárie dos povos da Antiguidade, não teve grande voga e aceitação nem fez perdurar através dos séculos a memória do sistema», diz o legislador de 1884, «senão porque era a expressão, embora grosseira e inconsciente, mas em todo o caso a expressão da justiça penal». E continua: «A civilização e a sucessiva modificação dos costumes atenuaram-lhe a crueldade, os legisladores mudaram-lhe o nome, os tempos alteraram-lhe as formas, a filosofia fê-la passar por uma transformação científica, mas no fundo, na substância aí está ainda a pena de talião regendo todos os povos cultos, exigindo-se ao criminoso em nome da sociedade ofendida olho por olho e dente por dente; estabelecia-se o dever de reparar pelo cumprimento da pena o dano causado à sociedade, assentando assim o fundamento do direito de punir; consignava-se o preceito de que este dano e aquela reparação devem ser correlativos entre si, afirmando por esta forma o sagrado princípio da proporcionalidade entre a gravidade das penas e dos crimes. No facto de se impor ao criminoso um sofrimento identico ao que ele causara à vítima vêem todos e com razão uma inqualificável barbaridade e, todavia, essa crueldade inaudita não era uma aberração vergonhosa e arbitária do espírito humano; era ainda a forma irregular, inconsciente e materializada de um princípio de justiça. A sucessão dos tempos despiu-a do que ela tem de material e grosseiro, operando não cientemente em nome do aperfeiçoamento da mesma fórmula, mas sim em nome do sentimento de benevolência e de humanidade. Só a filosofia a transformou conscientemente, mantendo-a em toda a sua pureza e elevando-a à altura de um princípio fundamental da ordem social, pois que outra coisa não é o reduzir a um só tipo todos os crimes - o abuso da liberdade alheia - e todas as penas - a restrição de liberdade do que abusou dela».

f. Manutenção do conteúdo aflitivo da pena de prisão na Reforma de 1884

Na sequência destas ideias a pena privativa de liberdade, pelo menos no seu máximo grau, deveria manter um conteúdo aflitivo, para corresponder ao mal do crime. Foi estruturada como um meio drástico de repressão, de expiação e de intimidação. E tal era a prisão maior celular. Lopo Vaz, autor da Reforma de 1884, afirmava ser lícito supor que entre cem criminosos não haveria vinte que a preferissem à pena alternativa de degredo, embora esta fosse de maior duração, tal era o terror que era idónea a suscitar.

g. O desvanecimento da estrutura aflitiva da pena de prisão, o isolamento: possibilidade de influir sobre a vontade do delinquente no sentido da redenção da culpa

O isolamento, a solidão que a acompanhavam, a privação de trabalho, aliás incompatível em geral com o rigor da cela, actuavam sobre o condenado depauperando-o psiquicamente provocando-lhe frequentemente a morte lenta do espírito. Pode discutir-se largamente se a muito longa pena de prisão nestas condições seria mais rigorosa que a própria morte. Salvaguardava-se assim o princípio aflitivo da pena. O mal da pena - a dor e o sofrimento como conteúdo de expiação - havia de dar satisfação a um sentimento de vindicta embora de maneira menos bárbara que na pena de morte. O sistema penal não se destacara ainda suficientemente das suas origens. E só dentro dos limites da expiação se podia admitir que através de castigo severo se obtivesse a emenda do delinquente. O princípio do talião humanizara-se, substituindo a uma equivalência material a equivalência do abuso da liberdade interior à privação da liberdade física. Mas a rigidez do princípio reflete-se no rigor do sistema penitenciário e, eventualmente, na não admissão da condenação condicional e da liberdade condicional ou preparatória, que o projecto de 1861 já propunha, e só vieram a ser decretadas mais tarde. Como também só mais tarde, a partir de 1911, se iniciou a Reforma do sistema penitenciário, desgarrando-o progressivamente do seu carácter aflitivo inicial. Para tanto foi necessário que se desvanecesse no conceito de pena a sua estrutura aflitiva para a moldar como meio adequado a influir sobre a vontade do delinquente no sentido da redenção da culpa.

h. Resgate de culpa: O trabalho sem prisão e novos meios de resgate de culpa

A coordenação eficaz da retribuição e da recuperação social é, de facto, a tarefa mais delicada e premente da nova caminhada na estruturação do sistema penal. A expiação é fundamentalmente redenção da culpa, e exige a comparticipação activa do próprio condenado, a sua reintegração moral; à vingança, que o talião corporiza, sucede uma forma mais elevada e mais nobre de sanção que, consistindo por essência na reprovação pela lei, se desenvolve e realiza com vista à finalidade da redenção da culpa pela readaptação social. E, por isso, as penas privativas da liberdade deixaram de poder ser classificadas como penas corporais, aflitivas na sua essência, e o sistema penitenciário se modificou radicalmente no seu espírito; e por isso se pôde abrir caminho a novas espécies de pena, como o trabalho penal sem prisão, e ainda a novos meios de resgate de culpa.

 


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