A regulamentação jurídica tem por objecto material a
vida social. Esta é multiforme, complexa; para
compreender aquela regulamentação, importa distinguir
em sectores a matéria a tratar.
O critério superior da regulamentação jurídica
encontra-se na justiça; todos e cada um deverão
proceder e agir de modo que respeitem mutuamente o que
a cada um e o que a todos respeita.
Em sentido moral a justiça costuma dividir-se em
justiça comutativa, distributiva e legal, ou seja,
existem deveres de justiça de cada um para com outrém,
de todos para cada qual e de cada qual para com todos.
Isto na medida em que o homem, vivendo em sociedade,
não pode por natureza viver dobrado sobre si mesmo,
apresentar-se exclusivamente sob a figuração do "eu" e
antes se integra no "nós" colectivo.
As relações jurídicas que se estabelecem entre
particulares, entre indivíduos, como que dominadas
pela forma da justiça comutativa, constituem o sector
do direito privado. Sujeitos das relações jurídicas
são as pessoas singulares e colectivas; o objecto ou
fim específico dessas relações são os interesses
privados.
O sector de direito privado é fundamentalmente
constituído pelo direito civil.
A matéria do direito civil é, porém, muito vasta; no
século passado a doutrina alemã dividira-a em ramos
diferenciados, divisão que foi adoptada por numerosas
legislações, e em geral pela doutrina europeia.
Os ramos do direito civil seriam: Direito das
Obrigações, Direito das Coisas, Direito de Família e
Direito das Sucessões.
O Livro I do Código Civil, contém uma parte geral que
contém noções e princípios gerais de Direito Civil a
que se segue um Livro II sobre Direito das Obrigações
(arts. 397º a 1250º), um Livro III sobre Direito das
Coisas (arts. 1251º a 1575º), um Livro IV sobre
Direito da Família (arts. 1576º a 2023º) e um Livro V
sobre Direito das Sucessões (arts. 2024º a 2334º).
No direito privado têm valor predominante os
princípios da liberdade e iniciativa individuais. Os
exageros, porém, do individualismo determinaram as
necessárias correcções, para que também no sector das
instituições privadas se revele ou exprima uma função
social.
Do direito civil comum se destacaram alguns novos
ramos de direito, referentes a sectores da vida social
cuja evolução exigia um desvio ou remodelação de
princípios para dar razão das novas necessidades
sociais.
Assim aconteceu com o Direito Comercial no séc. XIX (o
direito comercial está em Portugal codificado no
Código Comercial de 1888), e com o Direito do Trabalho.
A organização dos sujeitos das relações de produção e
circulação de bens, da indústria e do comércio, a
facilitação da circulação não só de bens, como de
créditos, viria a ser potente motor do desenvolvimento
da vida económica.
O conjunto de medidas legislativas, que constituíram
relativo desvio às regras aplicáveis à generalidade
das relações privadas, para assegurar a boa fé de
terceiros na cessão de créditos, ou estruturar os
sujeitos e meios de actuação na indústria e no
comércio, constituem razão determinante da
autonomização do novo ramo de direito; o direito
comercial, o qual forma um ramo especial do Direito
Privado, separado, portanto, do Direito Civil comum.
Mais modernamente destacou-se do Direito Civil, onde
eram sob a forma exclusiva do contrato de trabalho
reguladas as relações de trabalho, o ramo especial da
ordem jurídica do Direito do Trabalho.
A boa ordenação social impunha que se limitasse
fortemente o princípio da liberdade e autonomia
individuais na regulamentação da prestação do trabalho
e se talhasse imperativamente a posição jurídica do
trabalho na estrutura das empresas.
A concepção individualista mostrava-se inadequada para
garantir a justiça nas relações de trabalho. O Direito
do Trabalho pode, assim, considerar-se um direito em
formação, que deve estar atento às conveniências do
desenvolvimento económico e social.
Como o Direito Comercial e do Trabalho constituem
disciplinas do programa de estudos do Curso de
Ciências Empresariais, dado o seu grande interesse no
domínio da empresa, não nos ocuparemos especialmente
deles.
Na divisão aceita do direito civil, quase não carece
de definição a matéria que respeita ao Direito da
Família e ao Direito das Sucessões.
Com carácter mais geral e por isso também mais
indefinido, nos surgem os ramos de direito civil das
obrigações e dos direitos reais ou das coisas.
Convém, por isso e logo de entrada, mostrar em que se
distinguem para compreender em que consistem.
Para tanto tentemos buscar na matéria sobre que versa
a regulamentação jurídica um modo conveniente de
aproximação do tema. Todo o direito se reporta a
problemas de coexistência, de convívio social; nem
todo o direito das obrigações se refere somente a
relações económicas, mas grande parte das obrigações
traduzem ou regulam, como os direitos reais, a
estrutura económica da vida social.
a) No que respeita aos direitos reais encontramo-nos
perante problemas de atribuição de bens para
satisfação de necessidades económicas; constituem como
que a estrutura jurídica da repartição de bens.
b) No que respeita ao direito das obrigações
encontramo-nos perante problemas de cooperação livre
na vida económica de sujeitos autónomos e
independentes.
As coisas têm valor para os homens, enquanto
satisfazem as suas necessidades. Daí o interesse na
sua posse, e na sua fruição.
a) Por dois modos as coisas se ligam ao interesse de
cada um: primeiramente, enquanto sobre elas recai um
domínio directo do homem, que fica sendo assim o
titular de um direito imediato sobre as coisas; na
repartição dos bens económicos, as coisas, que sirvam
para o consumo ou que sirvam para produção de novos
bens, podem ser atribuídas a um ou vários, com
exclusão dos demais. Ficam sendo sua propriedade;
pertencem-lhe.
Deste modo sobre as coisas, para satisfação das
próprias necessidades, recairá um direito absoluto e
directo, enquanto todos os demais são excluídos da
possibilidade de acederem às coisas assim ligadas ao
titular de um direito sobre elas.
As coisas ficam directamente sobre o domínio daquele a
que pertencem.
As relações de direitos reais são, dada esta sua
natureza, relações duradoiras. Trata-se da fruição e
disponibilidade de bens, atribuídos directamente a
cada qual. A posição do titular de direitos reais é
uma posição estática na vida económica.
Diferentemente se nos apresenta o panorama no sector
das relações sociais a que se reporta o direito das
obrigações.
Dissemos já que este revela o fenómeno de cooperação
na vida social. Não se figura uma relação directa do
homem com as coisas que lhe são necessárias; mas
quando se trata de obrigações com carácter económico
duma relação indirecta do homem com as coisas.
A forma de cooperação a que diz respeito o direito das
obrigações pressupõe uma relação entre sujeitos
autónomos, independentes; e tem por objecto já não
directamente uma coisa, mas uma "prestação", isto é,
um comportamento de um dos sujeitos - o devedor - no
interesse ou para satisfação de um interesse do outro
sujeito - o credor.
Quando se trata de satisfação de necessidades
económicas, as coisas que devem satisfazê-las não são
o objecto imediato da relação jurídica mas tão somente
o objecto mediato, enquanto objecto da prestação do
devedor.
É esta segunda modalidade pela qual as coisas podem
ser postas à disposição do sujeito que tem interesse
delas fruir. Como dissemos (nos direitos reais) as
coisas podem ser atribuídas directamente a pessoas que
sobre elas têm um direito absoluto e exclusivo; ou (em
direito das obrigações) outras pessoas podem ter a
obrigação de as "prestar", de as pôr à disposição de
outrém.
O objecto directo da relação jurídica, será nos
direitos reais, uma coisa; no direito das obrigações a
prestação, um certo comportamento, quer consista em
dar, quer consista em fazer, do devedor.
Esta contraposição esclarece a estrutura jurídica
diferenciada destas espécies de relações jurídicas;
mas também revela o fenómeno social de cooperação
entre os homens, a que aludimos.
As funções que a cooperação realiza na vida social são
da mais diversa espécie.
Algumas e das principais respeitam à circulação de
bens. Na verdade, enquanto através da prestação de
outrém, é posta à disposição do credor uma utilidade
ou bem, este transmite-se, passa de um para o outro;
circula.
A circulação de bens tanto pode ter lugar enquanto o
proprietário dos bens os cede ou transmite a outrém e
trata-se de um fenómeno de troca ou enquanto o
proprietário dos bens associa outro ou outros à
fruição desses bens, e trata-se do fenómeno de
associação.
a) A troca, como cooperação na vida económica, pode
revestir várias modalidades: troca em sentido estrito,
enquanto um dos sujeitos na relação jurídica
obrigacional cede ao outro uma coisa, recebendo uma
outra e diversa, àquela equivalente; ou compra e
venda, na qual a transmissão da coisa se opera
mediante o pagamento dum preço em dinheiro. Ainda a
troca pode ser ou onerosa, ou gratuita. Ao lado da
compra e venda (contrato oneroso) há lugar à doação em
que a circulação de bens se faz sem contraprestação
pelo donatário.
A troca, em sentido amplo, e como fenómeno económico,
pode ser definitiva ou temporária. A compra e venda e
a troca em sentido estrito são trocas a título
definitivo. Os bens que forem transmitidos não
regressam à fruição daquele que os transmitiu.
Mas a circulação pode ter por objecto a mera fruição
da coisa; tratar-se-á então duma troca temporária.
Esta implica uma obrigação de restituição, findo certo
tempo. Os bens circulados, transmitem-se a outro para
sua fruição por certo tempo, e aquele que os
transmitiu, "crê" (é credor) na sua devolução. Os bens
cedidos em fruição podem sê-lo para efeitos de uso ou
de consumo. São desta modalidade exemplos, o
arrendamento, o aluguer, comodato, etc..
b) As obrigações realizam também uma função da
associação.
A associação é também um modo de cooperação social;
todas as tarefas que excedem as possibilidades
individuais, exigem a cooperação de vários, a
associação de esforços, de capitais, de actividades.
Assim nas sociedades e associações.
c) Função de crédito tem a cooperação que consiste em
fornecer a outrém dinheiro ou coisas fungíveis, como
no empréstimo, devendo aquele que recebe o objecto
restituí-lo passado certo prazo; a transferência,
o "crédito" e a confiança na ulterior restituição tem
o mesmo objecto.
Estas funções das obrigações constituem formas por que
se procede à circulação de bens. Quando se trata de
obrigações com natureza económica, esta cobertura
jurídica de fenómenos económicos é bem patente.
O direito não se limita a dar forma jurídica a este
aspecto da vida económica; de algum modo pode criar,
pela sua regulamentação, novas fórmulas de circulação.
Assim acontece com a cessão de créditos.
Na cessão de créditos a regulamentação jurídica é que
constitui o pressuposto do fenómeno económico. Na
cessão de créditos não se observa apenas uma relação
entre aquele que concede, onerosa ou gratuitamente a
outro, um bem, que estoutro se compromete e restituir
mais tarde. A relação jurídica complica-se, e nela
intervêm três sujeitos, em posição diversa quanto ao
interesse ou bem que é objecto de circulação: aquele
que tem o bem e deve transferi-lo para outro; estoutro
que tem o direito a obtê-lo, e um terceiro a quem o
último cede o direito a obter o bem que o primeiro
deve prestar.
Trata-se de uma sucessão na relação obrigacional, que
só se compreende precisamente em razão da natureza do
próprio direito das obrigações.
Como dissemos, numa obrigação, o credor não tem uma
faculdade de uso, fruição e disposição directamente
sobre uma coisa, mas a faculdade de exigir do devedor
uma prestação, que pode ser a prestação duma coisa com
valor económico.
Na medida em que o credor cede a sua posição, a sua
faculdade de obter pela prestação do devedor um bem
económico, realiza-se uma circulação de bens, facilita-
se, em nova modalidade, a circulação económica. Algo
de similar se verifica com a circulação de acções e de
quotas em sociedades. As diferenças de ordem jurídica
não importam agora, quando pretendemos pôr em relevo
processos jurídicos de circulação de bens, isto é,
atentar menos nas características formais dos
fenómenos jurídicos do que reconduzi-los a aspectos
substanciais da vida social e económica.
De notar, no entanto, para não diluir totalmente as
noções de direito nos fenómenos que lhe formam o
substrato, que na cessão de créditos o seu objecto é
mais um direito subjectivo do que uma coisa; esta é o
objecto do direito que, por si mesmo, foi objecto da
cessão.
Mais limitada, por motivos que ainda diremos, a cessão
nas dívidas constitui também um fenómeno de
circulação; é uma transmissão, transferência da
obrigação de prestar, do primitivo devedor para outro
que a ele se substitui.
A intervenção da regulamentação jurídica na vida
económica, no aspecto da circulação de bens, ainda se
torna mais subtil com a encorporação dos créditos em
documentos, títulos, de modo que o direito à prestação
se transmite pela transmissão do próprio título que
encorpora o crédito; a transmissão de tais títulos, e
com eles o direito de crédito, e através deste da
coisa que é seu objecto, pode tomar várias formas -
pela simples entrega dos títulos, nos títulos ao
portador; por endosso, subscrevendo no próprio título
a sua transmissão para terceiro, nos títulos
endossáveis, e ainda com registo da transmissão, nos
títulos nominativos.
Não se queda por aqui a função económica do direito
das obrigações. Acrescentemos que as obrigações são
afinal a noção jurídica que revestem fenómenos de
cooperação da circulação de bens, na realização de
obras, no empreendimento de tarefas de produção, na
gestão de negócios e administração, na colaboração em
trabalhos ou serviços, na colaboração para garantir a
segurança na vida económica e social.
O direito das obrigações constitui uma parte
fundamental da disciplina da vida social; e é
sobretudo importante o sentido da regulamentação das
obrigações, como expoente da estrutura do sistema
económico.
Convém, por isso e desde já, acentuar que o direito
das obrigações é dominado pelo princípio da autonomia
da vontade.
A liberdade e a iniciativa individuais têm particular
importância no sistema económico e social, consoante o
define o direito positivo português, e por isso a
autonomia individual, a liberdade e a iniciativa
individuais estão na base da disciplina jurídica das
obrigações.
A afirmação deste princípio basilar do direito das
obrigações carece de ser coordenada com o princípio da
boa fé.
A autonomia individual dentro da cooperação social, só
pode ser conveniente se respeitar integralmente a boa
fé da outra parte e a boa fé de terceiros.
Só nessa medida pode ter um valor social.
De toda a regulamentação jurídica das obrigações se
infere que a autonomia e a boa fé constituem
ingredientes indispensáveis na organização duma
cooperação lícita dos sujeitos de direito.
A análise técnico-jurídica das relações jurídicas das
obrigações, forçar-nos-á a remeter para o quadro de
noções gerais que indicámos quando analisámos o
conceito genérico da relação jurídica.
O estudo do direito das obrigações deste ponto de
vista estritamente jurídico não deve fazer-nos olvidar
a sua função económica e social.
Quer isto dizer que os conceitos jurídicos, que numa
análise jurídica se expõem, recobrem e servem
instrumentalmente para mais facilmente compreender e
explicar as normas jurídicas, às relações da vida
social, que se englobam no campo das obrigações, e
cuja função social, mormente económica quisemos
referir.
E assim as relações de obrigações podem ser analisadas
através dos "sujeitos" entre os quais se constituem e
através do objecto.
Os elementos das relações de obrigações são, em
abstracto, os elementos indicados como elementos da
relação jurídica em geral.
A relação de obrigação é, na sua essência, o vínculo
que liga o sujeito passivo ao sujeito activo, e que
tem por objecto a prestação, que consistirá em dever
fazer alguma coisa, numa prestação de facto, ou na
prestação de uma coisa, prestação que o credor tem o
direito de exigir. Num aspecto menos jurídico, poderá
dizer-se que o sujeito passivo é obrigado a fornecer
um resultado, ou a prestar uma actividade, um serviço,
um esforço para obter um resultado.
Se a pretensão legítima do credor e a obrigação do
devedor estão no resultado final, a obrigação diz-se
obrigação de resultado; se estão no comportamento
destinado a obtê-lo, diz-se obrigação de meios.
Exemplificando, um empreiteiro pode obrigar-se a
entregar construída uma obra, com a natureza e
caracteres que tenham sido convencionados; ou pode
obrigar-se a construir com perícia e diligência
determinada obra, ou um médico a tratar um doente para
que recupere a saúde, sem tomar a obrigação de curar
efectivamente o doente. No primeiro caso, o sujeito
passivo da obrigação obriga-se a entregar uma obra, um
resultado, com que o sujeito activo conta e a que tem
direito. No segundo, o sujeito passivo obriga-se a um
comportamento diligente e adequado, independentemente
da obtenção do resultado para que tal esforço se deve
dirigir.
Não é, porém, de admitir que nas obrigações, o vínculo
jurídico consista tão somente na obrigação de
restituir ou indemnizar que nos surge como garantia da
relação de obrigação. A execução forçada do património
do devedor remisso não é o vínculo jurídico essencial
das obrigações, mas a consequência da falta de
cumprimento do dever de prestar.
As obrigações podem ter por fonte tanto a lei, em
razão da verificação de certas situações ou factos,
como especialmente a vontade individual ou das partes
contratantes. É isso corolário lógico do
reconhecimento da liberdade individual na formação da
cooperação social.