Noções Gerais de Direito (Cap. IV)

 

Capítulo IV

Noções gerais de direito privado

1 - Divisão do Direito

A regulamentação jurídica tem por objecto material a vida social. Esta é multiforme, complexa; para compreender aquela regulamentação, importa distinguir em sectores a matéria a tratar.
O critério superior da regulamentação jurídica encontra-se na justiça; todos e cada um deverão proceder e agir de modo que respeitem mutuamente o que a cada um e o que a todos respeita.
Em sentido moral a justiça costuma dividir-se em justiça comutativa, distributiva e legal, ou seja, existem deveres de justiça de cada um para com outrém, de todos para cada qual e de cada qual para com todos. Isto na medida em que o homem, vivendo em sociedade, não pode por natureza viver dobrado sobre si mesmo, apresentar-se exclusivamente sob a figuração do "eu" e antes se integra no "nós" colectivo.
As relações jurídicas que se estabelecem entre particulares, entre indivíduos, como que dominadas pela forma da justiça comutativa, constituem o sector do direito privado. Sujeitos das relações jurídicas são as pessoas singulares e colectivas; o objecto ou fim específico dessas relações são os interesses privados.
O sector de direito privado é fundamentalmente constituído pelo direito civil.
A matéria do direito civil é, porém, muito vasta; no século passado a doutrina alemã dividira-a em ramos diferenciados, divisão que foi adoptada por numerosas legislações, e em geral pela doutrina europeia.
Os ramos do direito civil seriam: Direito das Obrigações, Direito das Coisas, Direito de Família e Direito das Sucessões.
O Livro I do Código Civil, contém uma parte geral que contém noções e princípios gerais de Direito Civil a que se segue um Livro II sobre Direito das Obrigações (arts. 397º a 1250º), um Livro III sobre Direito das Coisas (arts. 1251º a 1575º), um Livro IV sobre Direito da Família (arts. 1576º a 2023º) e um Livro V sobre Direito das Sucessões (arts. 2024º a 2334º). No direito privado têm valor predominante os princípios da liberdade e iniciativa individuais. Os exageros, porém, do individualismo determinaram as necessárias correcções, para que também no sector das instituições privadas se revele ou exprima uma função social.
Do direito civil comum se destacaram alguns novos ramos de direito, referentes a sectores da vida social cuja evolução exigia um desvio ou remodelação de princípios para dar razão das novas necessidades sociais.
Assim aconteceu com o Direito Comercial no séc. XIX (o direito comercial está em Portugal codificado no Código Comercial de 1888), e com o Direito do Trabalho. A organização dos sujeitos das relações de produção e circulação de bens, da indústria e do comércio, a facilitação da circulação não só de bens, como de créditos, viria a ser potente motor do desenvolvimento da vida económica.
O conjunto de medidas legislativas, que constituíram relativo desvio às regras aplicáveis à generalidade das relações privadas, para assegurar a boa fé de terceiros na cessão de créditos, ou estruturar os sujeitos e meios de actuação na indústria e no comércio, constituem razão determinante da autonomização do novo ramo de direito; o direito comercial, o qual forma um ramo especial do Direito Privado, separado, portanto, do Direito Civil comum. Mais modernamente destacou-se do Direito Civil, onde eram sob a forma exclusiva do contrato de trabalho reguladas as relações de trabalho, o ramo especial da ordem jurídica do Direito do Trabalho.
A boa ordenação social impunha que se limitasse fortemente o princípio da liberdade e autonomia individuais na regulamentação da prestação do trabalho e se talhasse imperativamente a posição jurídica do trabalho na estrutura das empresas.
A concepção individualista mostrava-se inadequada para garantir a justiça nas relações de trabalho. O Direito do Trabalho pode, assim, considerar-se um direito em formação, que deve estar atento às conveniências do desenvolvimento económico e social.
Como o Direito Comercial e do Trabalho constituem disciplinas do programa de estudos do Curso de Ciências Empresariais, dado o seu grande interesse no domínio da empresa, não nos ocuparemos especialmente deles.

§ 1º - Direito das Obrigações

2 - Direito das obrigações e o direito das coisas

Na divisão aceita do direito civil, quase não carece de definição a matéria que respeita ao Direito da Família e ao Direito das Sucessões.
Com carácter mais geral e por isso também mais indefinido, nos surgem os ramos de direito civil das obrigações e dos direitos reais ou das coisas.
Convém, por isso e logo de entrada, mostrar em que se distinguem para compreender em que consistem.
Para tanto tentemos buscar na matéria sobre que versa a regulamentação jurídica um modo conveniente de aproximação do tema. Todo o direito se reporta a problemas de coexistência, de convívio social; nem todo o direito das obrigações se refere somente a relações económicas, mas grande parte das obrigações traduzem ou regulam, como os direitos reais, a estrutura económica da vida social.
a) No que respeita aos direitos reais encontramo-nos perante problemas de atribuição de bens para satisfação de necessidades económicas; constituem como que a estrutura jurídica da repartição de bens.
b) No que respeita ao direito das obrigações encontramo-nos perante problemas de cooperação livre na vida económica de sujeitos autónomos e independentes.
As coisas têm valor para os homens, enquanto satisfazem as suas necessidades. Daí o interesse na sua posse, e na sua fruição.
a) Por dois modos as coisas se ligam ao interesse de cada um: primeiramente, enquanto sobre elas recai um domínio directo do homem, que fica sendo assim o titular de um direito imediato sobre as coisas; na repartição dos bens económicos, as coisas, que sirvam para o consumo ou que sirvam para produção de novos bens, podem ser atribuídas a um ou vários, com exclusão dos demais. Ficam sendo sua propriedade; pertencem-lhe.
Deste modo sobre as coisas, para satisfação das próprias necessidades, recairá um direito absoluto e directo, enquanto todos os demais são excluídos da possibilidade de acederem às coisas assim ligadas ao titular de um direito sobre elas.
As coisas ficam directamente sobre o domínio daquele a que pertencem.
As relações de direitos reais são, dada esta sua natureza, relações duradoiras. Trata-se da fruição e disponibilidade de bens, atribuídos directamente a cada qual. A posição do titular de direitos reais é uma posição estática na vida económica.
Diferentemente se nos apresenta o panorama no sector das relações sociais a que se reporta o direito das obrigações.
Dissemos já que este revela o fenómeno de cooperação na vida social. Não se figura uma relação directa do homem com as coisas que lhe são necessárias; mas quando se trata de obrigações com carácter económico duma relação indirecta do homem com as coisas.
A forma de cooperação a que diz respeito o direito das obrigações pressupõe uma relação entre sujeitos autónomos, independentes; e tem por objecto já não directamente uma coisa, mas uma "prestação", isto é, um comportamento de um dos sujeitos - o devedor - no interesse ou para satisfação de um interesse do outro sujeito - o credor.
Quando se trata de satisfação de necessidades económicas, as coisas que devem satisfazê-las não são o objecto imediato da relação jurídica mas tão somente o objecto mediato, enquanto objecto da prestação do devedor.
É esta segunda modalidade pela qual as coisas podem ser postas à disposição do sujeito que tem interesse delas fruir. Como dissemos (nos direitos reais) as coisas podem ser atribuídas directamente a pessoas que sobre elas têm um direito absoluto e exclusivo; ou (em direito das obrigações) outras pessoas podem ter a obrigação de as "prestar", de as pôr à disposição de outrém.
O objecto directo da relação jurídica, será nos direitos reais, uma coisa; no direito das obrigações a prestação, um certo comportamento, quer consista em dar, quer consista em fazer, do devedor.
Esta contraposição esclarece a estrutura jurídica diferenciada destas espécies de relações jurídicas; mas também revela o fenómeno social de cooperação entre os homens, a que aludimos.
As funções que a cooperação realiza na vida social são da mais diversa espécie.
Algumas e das principais respeitam à circulação de bens. Na verdade, enquanto através da prestação de outrém, é posta à disposição do credor uma utilidade ou bem, este transmite-se, passa de um para o outro; circula.
A circulação de bens tanto pode ter lugar enquanto o proprietário dos bens os cede ou transmite a outrém e trata-se de um fenómeno de troca ou enquanto o proprietário dos bens associa outro ou outros à fruição desses bens, e trata-se do fenómeno de associação.
a) A troca, como cooperação na vida económica, pode revestir várias modalidades: troca em sentido estrito, enquanto um dos sujeitos na relação jurídica obrigacional cede ao outro uma coisa, recebendo uma outra e diversa, àquela equivalente; ou compra e venda, na qual a transmissão da coisa se opera mediante o pagamento dum preço em dinheiro. Ainda a troca pode ser ou onerosa, ou gratuita. Ao lado da compra e venda (contrato oneroso) há lugar à doação em que a circulação de bens se faz sem contraprestação pelo donatário.
A troca, em sentido amplo, e como fenómeno económico, pode ser definitiva ou temporária. A compra e venda e a troca em sentido estrito são trocas a título definitivo. Os bens que forem transmitidos não regressam à fruição daquele que os transmitiu. Mas a circulação pode ter por objecto a mera fruição da coisa; tratar-se-á então duma troca temporária. Esta implica uma obrigação de restituição, findo certo tempo. Os bens circulados, transmitem-se a outro para sua fruição por certo tempo, e aquele que os transmitiu, "crê" (é credor) na sua devolução. Os bens cedidos em fruição podem sê-lo para efeitos de uso ou de consumo. São desta modalidade exemplos, o arrendamento, o aluguer, comodato, etc..
b) As obrigações realizam também uma função da associação.
A associação é também um modo de cooperação social; todas as tarefas que excedem as possibilidades individuais, exigem a cooperação de vários, a associação de esforços, de capitais, de actividades. Assim nas sociedades e associações.
c) Função de crédito tem a cooperação que consiste em fornecer a outrém dinheiro ou coisas fungíveis, como no empréstimo, devendo aquele que recebe o objecto restituí-lo passado certo prazo; a transferência, o "crédito" e a confiança na ulterior restituição tem o mesmo objecto.
Estas funções das obrigações constituem formas por que se procede à circulação de bens. Quando se trata de obrigações com natureza económica, esta cobertura jurídica de fenómenos económicos é bem patente.
O direito não se limita a dar forma jurídica a este aspecto da vida económica; de algum modo pode criar, pela sua regulamentação, novas fórmulas de circulação. Assim acontece com a cessão de créditos.
Na cessão de créditos a regulamentação jurídica é que constitui o pressuposto do fenómeno económico. Na cessão de créditos não se observa apenas uma relação entre aquele que concede, onerosa ou gratuitamente a outro, um bem, que estoutro se compromete e restituir mais tarde. A relação jurídica complica-se, e nela intervêm três sujeitos, em posição diversa quanto ao interesse ou bem que é objecto de circulação: aquele que tem o bem e deve transferi-lo para outro; estoutro que tem o direito a obtê-lo, e um terceiro a quem o último cede o direito a obter o bem que o primeiro deve prestar.
Trata-se de uma sucessão na relação obrigacional, que só se compreende precisamente em razão da natureza do próprio direito das obrigações.
Como dissemos, numa obrigação, o credor não tem uma faculdade de uso, fruição e disposição directamente sobre uma coisa, mas a faculdade de exigir do devedor uma prestação, que pode ser a prestação duma coisa com valor económico.
Na medida em que o credor cede a sua posição, a sua faculdade de obter pela prestação do devedor um bem económico, realiza-se uma circulação de bens, facilita- se, em nova modalidade, a circulação económica. Algo de similar se verifica com a circulação de acções e de quotas em sociedades. As diferenças de ordem jurídica não importam agora, quando pretendemos pôr em relevo processos jurídicos de circulação de bens, isto é, atentar menos nas características formais dos fenómenos jurídicos do que reconduzi-los a aspectos substanciais da vida social e económica.
De notar, no entanto, para não diluir totalmente as noções de direito nos fenómenos que lhe formam o substrato, que na cessão de créditos o seu objecto é mais um direito subjectivo do que uma coisa; esta é o objecto do direito que, por si mesmo, foi objecto da cessão.
Mais limitada, por motivos que ainda diremos, a cessão nas dívidas constitui também um fenómeno de circulação; é uma transmissão, transferência da obrigação de prestar, do primitivo devedor para outro que a ele se substitui.
A intervenção da regulamentação jurídica na vida económica, no aspecto da circulação de bens, ainda se torna mais subtil com a encorporação dos créditos em documentos, títulos, de modo que o direito à prestação se transmite pela transmissão do próprio título que encorpora o crédito; a transmissão de tais títulos, e com eles o direito de crédito, e através deste da coisa que é seu objecto, pode tomar várias formas - pela simples entrega dos títulos, nos títulos ao portador; por endosso, subscrevendo no próprio título a sua transmissão para terceiro, nos títulos endossáveis, e ainda com registo da transmissão, nos títulos nominativos.
Não se queda por aqui a função económica do direito das obrigações. Acrescentemos que as obrigações são afinal a noção jurídica que revestem fenómenos de cooperação da circulação de bens, na realização de obras, no empreendimento de tarefas de produção, na gestão de negócios e administração, na colaboração em trabalhos ou serviços, na colaboração para garantir a segurança na vida económica e social.

3 - A autonomia individual e a boa fé

O direito das obrigações constitui uma parte fundamental da disciplina da vida social; e é sobretudo importante o sentido da regulamentação das obrigações, como expoente da estrutura do sistema económico.
Convém, por isso e desde já, acentuar que o direito das obrigações é dominado pelo princípio da autonomia da vontade.
A liberdade e a iniciativa individuais têm particular importância no sistema económico e social, consoante o define o direito positivo português, e por isso a autonomia individual, a liberdade e a iniciativa individuais estão na base da disciplina jurídica das obrigações.
A afirmação deste princípio basilar do direito das obrigações carece de ser coordenada com o princípio da boa fé.
A autonomia individual dentro da cooperação social, só pode ser conveniente se respeitar integralmente a boa fé da outra parte e a boa fé de terceiros.
Só nessa medida pode ter um valor social.
De toda a regulamentação jurídica das obrigações se infere que a autonomia e a boa fé constituem ingredientes indispensáveis na organização duma cooperação lícita dos sujeitos de direito.

4 - Os elementos das relações obrigacionais

A análise técnico-jurídica das relações jurídicas das obrigações, forçar-nos-á a remeter para o quadro de noções gerais que indicámos quando analisámos o conceito genérico da relação jurídica.
O estudo do direito das obrigações deste ponto de vista estritamente jurídico não deve fazer-nos olvidar a sua função económica e social.
Quer isto dizer que os conceitos jurídicos, que numa análise jurídica se expõem, recobrem e servem instrumentalmente para mais facilmente compreender e explicar as normas jurídicas, às relações da vida social, que se englobam no campo das obrigações, e cuja função social, mormente económica quisemos referir.
E assim as relações de obrigações podem ser analisadas através dos "sujeitos" entre os quais se constituem e através do objecto.
Os elementos das relações de obrigações são, em abstracto, os elementos indicados como elementos da relação jurídica em geral.
A relação de obrigação é, na sua essência, o vínculo que liga o sujeito passivo ao sujeito activo, e que tem por objecto a prestação, que consistirá em dever fazer alguma coisa, numa prestação de facto, ou na prestação de uma coisa, prestação que o credor tem o direito de exigir. Num aspecto menos jurídico, poderá dizer-se que o sujeito passivo é obrigado a fornecer um resultado, ou a prestar uma actividade, um serviço, um esforço para obter um resultado.
Se a pretensão legítima do credor e a obrigação do devedor estão no resultado final, a obrigação diz-se obrigação de resultado; se estão no comportamento destinado a obtê-lo, diz-se obrigação de meios. Exemplificando, um empreiteiro pode obrigar-se a entregar construída uma obra, com a natureza e caracteres que tenham sido convencionados; ou pode obrigar-se a construir com perícia e diligência determinada obra, ou um médico a tratar um doente para que recupere a saúde, sem tomar a obrigação de curar efectivamente o doente. No primeiro caso, o sujeito passivo da obrigação obriga-se a entregar uma obra, um resultado, com que o sujeito activo conta e a que tem direito. No segundo, o sujeito passivo obriga-se a um comportamento diligente e adequado, independentemente da obtenção do resultado para que tal esforço se deve dirigir.
Não é, porém, de admitir que nas obrigações, o vínculo jurídico consista tão somente na obrigação de restituir ou indemnizar que nos surge como garantia da relação de obrigação. A execução forçada do património do devedor remisso não é o vínculo jurídico essencial das obrigações, mas a consequência da falta de cumprimento do dever de prestar.
As obrigações podem ter por fonte tanto a lei, em razão da verificação de certas situações ou factos, como especialmente a vontade individual ou das partes contratantes. É isso corolário lógico do reconhecimento da liberdade individual na formação da cooperação social.


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