Noções Gerais de Direito (Cap.II - fim)

 

IV - Interpretação e integração da lei

15 - A interpretação das leis

Interpretar as leis é determinar o seu sentido e alcance, definindo a matéria a que elas são aplicáveis, e o critério de regulamentação que delas consta.
Duas orientações fundamentais se podem defender quanto ao modo de interpretar as leis: uma orientação subjectiva e uma orientação objectiva.
Numa orientação subjectiva, interpretar a lei consistirá em procurar a vontade do legislador; numa orientação objectiva, a lei, embora formulada pelo legislador, dele se separa, alcançando firme significado próprios, de modo que a interpretação procurará descobrir o pensamento legislativo, a razão ou fim da própria lei.
O Código Civil (art. 9º), definindo o modo de interpretação das leis, aceitou uma orientação objectiva. O citado art. 9º do Código Civil reza assim: "1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir de textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

16 - Formas de interpretação

Para esclarecer o modo de interpretação das leis, costuma considerar-se a interpretação:
a) quanto à qualidade do intérprete, isto é, quanto ao sujeito da interpretação;
b) quanto aos meios utilizáveis para proceder à interpretação;
c) quanto aos resultados obtidos pela interpretação d) quanto ao sujeito;
Pode interpretar a lei qualquer pessoa. Mas importa naturalmente que saiba interpretar leis, que tenha um mínimo de conhecimentos jurídicos.
Importa distinguir: a interpretação a que pode proceder o próprio órgão legislativo de que emanou a lei (interpretação autêntica).
A interpretação das leis que é feita pelos tribunais, quando aplicam as leis aos casos concretos (interpretação jurisprudencial).
A interpretação elaborada pelos juristas, quando estudam as leis no seu conjunto (interpretação doutrinária).
A interpretação duma lei, feita em outra lei, denomina- se interpretação legislativa. E a lei que interpreta outra lei denomina-se lei interpretativa.
As leis interpretativas integram-se na lei interpretada (Cód. Civil, art. 13º); quer dizer, a interpretação que provém do órgão legislativo é também lei, e por isso a determinação do sentido e alcance duma lei por outra lei tem carácter obrigatório como todas as leis.
A interpretação a que procedem, nas decisões judiciais, os tribunais designa-se por interpretação jurisprudencial.
A opinião de um tribunal, mesmo hierarquicamente superior, não se impõe aos outros tribunais ou aos cidadãos em geral, fora do caso concreto que foi objecto da decisão.
Fazem excepção os assentos, que têm o valor de leis interpretativas, nos termos que já foram referidos. A interpretação doutrinária, tem valor adjuvante na compreensão das leis, em virtude da argumentação em que se baseia, como fica explicado a propósito da importância da doutrina como fonte mediata do direito; mas não vincula nunca (ao contrário do que já sucedeu limitadamente em épocas históricas anteriores) quer os cidadãos, quer os tribunais.
a) Quanto aos meios, a interpretação pode ser literal ou gramatical e lógica ou, melhor, teleológica. Partindo da presunção de que a letra da lei corresponde àquilo que ela pretende, toda a interpretação parte duma análise gramatical da letra e da lei.
A interpretação literal é o ponto de partida da interpretação.
O ponto de chegada é-nos, porém, dado pela utilização da interpretação teleológica, quando se procura desvendar o fim que a lei propõe.
E definir através da lei o seu alcance é o objectivo verdadeiro e último de toda a interpretação.
Para este objectivo importa servirmo-nos dos elementos que podem agrupar-se assim: elemento racional, elemento sistemático e elemento histórico.
Elemento racional é a razão de ser da lei, do fim que se propõe, no qual avulta o interesse que o preceito legislativo pretende tutelar, ou melhor o valor que atribui a esse interesse.
O fim objectivo da lei não pode considerar-se isoladamente, mas na sua ordenação em relação aos que constituem objectivo dos outros preceitos legais, dentro da unidade da ordem jurídica. Por isso, há que utilizar o elemento sistemático, isto é, desvendar o alcance de um preceito legislativo no seu enquadramento no sistema jurídico.
Como o fim da lei se não confunde com a intenção subjectiva do legislador, importa ainda ter em atenção, muitas vezes, os trabalhos preparatórios da lei para conhecer as circunstâncias que explicaram o aparecimento do preceito, assim como a modificação do objecto material da lei por novo condicionalismo para verificar em que medida o fim da lei determina um novo alcance desta em razão de tais modificações.
b) Quanto aos resultados, a interpretação diz-se declarativa, restritiva ou extensiva.
Porque a interpretação se não atém à letra da lei, pode resultar uma interpretação quando se atenda à letra da lei.
A verdadeira interpretação, como se disse, é a que toma em consideração os fins objectivos da lei. Em consequência, se do texto da lei resulta que gramaticalmente este exprimiu devidamente que efectivamente corresponde aos fins da lei, e há por isso coincidência entre o alcance da lei, interpretada em razão dos seus fins, a interpretação diz-se declarativa. A lei diz então o que pretendia dizer.
Se, por deficiência de expressão, os termos utilizados pela lei vão além daquilo que a lei pretendia ordenar, a interpretação diz-se restritiva porque o alcance da lei é mais restrito do que parece inferir-se da sua letra.
Se, continuando a não haver coincidência entre o resultado duma interpretação gramatical duma interpretação teleológica, a letra da lei não diz tudo aquilo que, em função do fim que se propunha, queria dizer, é este significado mais amplo que deve aceitar- se e a interpretação diz-se extensiva.
Em geral, todas as normas jurídicas são assim interpretadas.
Fazem excepção, porém, as normas incriminadoras, que definem os crimes.
Quanto a estas, se a letra expressa da lei não comportar o alargamento que só se justificaria em razão do fim da lei, não é lícito interpretá-la de modo a que se obtenha uma extensão do seu conteúdo, para além do teor literal da lei.
Quer dizer: quanto aos preceitos incriminadores, é vedada a interpretação extensiva (Cód. Penal, art. 18º)

17 - Integração das lacunas da lei

A vida social é extremamente rica, não pode presumir- se que a lei preveja todos os casos que devem ser regulados juridicamente. Quando, depois de fixado o alcance das leis pela interpretação, se verifica que um caso concreto não cabe no campo de aplicação de qualquer regra jurídica, diz-se que estamos perante um caso omisso, um caso da vida real não previsto e não regulado pela lei.
Sucede, porém, que, como determina o art. 8º do Código Civil, os tribunais não podem abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei. O conjunto de leis nunca é completo, de modo a abarcar todas as hipóteses possíveis.
E estas exigem uma solução jurídica.
Então não pode aplicar-se directamente uma lei, precisamente porque falta uma lei aplicável ao caso omisso; importa buscar a regulamentação do caso omisso para além da lei.
O problema, que assim fica definido, respeita à integração das lacunas na lei.
O critério para encontrar a regulamentação que a lei não previu é-nos indicado pelo art. 10º do Código Civil.
Primeiramente: os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos. Quer isto dizer que, interpretada a lei e verificado que o caso omisso não cabe na sua esfera de aplicação, há que buscar um preceito legal que regule situações semelhantes (casos análogos), e quando as razões que levaram à regulamentação dos casos análogos justificassem também a regulamentação do caso omisso, aplicar-se-á a este, por analogia, o preceito regulamentador daqueles casos análogos.
Este caminho pode revelar-se, porém, inviável, por não haver regulamentação pela lei de casos análogos. E então o juiz ou o intérprete terá de resolver juridicamente a situação, formulando por si mesmo a norma que o legislador criaria em conformidade com o sistema geral da ordem jurídica vigente.
Já não se aplicará, por analogia, um determinado preceito da lei, que preveja casos análogos, por não existir tal preceito, mas buscar-se-á a solução directa do caso omisso, apelando para os princípios gerais do sistema, para os fins que devem tutelar-se no caso concreto, coordenando-os e deduzindo-os do espírito do sistema jurídico.

18 - Inexistência de lacunas nas normas penais e de direito excepcional

Não se admitem lacunas da lei na incriminação de factos criminosos. Só há os crimes que a lei expressamente define.
Não é, por isso, possível nessa matéria integrar lacunas.
Do mesmo modo, não contêm lacunas todas as normas que fazem excepção, a normas de aplicação comum ou geral (Cód. Civil, art. 11º).
Normas excepcionais são aquelas que regulamentam de maneira contrária um sector especificamente diferenciado da mesma matéria que é objecto de regulamentação geralmente aplicável, contida em normas de direito comum.
Todos os casos omissos na lei excepcional estarão assim necessariamente abrangidos pela norma de direito comum, e consequentemente não podem verificar-se lacunas nas normas excepcionais.

V - Validade da lei no tempo e no espaço

19 - A aplicabilidade das leis no tempo; o princípio da não retroactividade

A positivização do direito, quer se faça através da formação de costumes obrigatórios, quer pela promulgação de direito escrito ou leis, não lhe dá a característica de imutabilidade. O direito dirige e ordena a actividade social dos homens, susceptível de mudança em razão das circunstâncias e condicionalismos históricos. Os costumes poderiam ser modificados por outros costumes; as leis podem ser substituídas por outras leis.
Também, e por natureza, o costume só se formava em sociedades relativamente restritas no espaço, como as leis, enquanto provenientes de autoridade social, não são necessariamente iguais em todos os Estados. Embora, em povos da mesma civilização, se aproximem os sistemas jurídicos nos princípios que os dominam, divergem na sua estrutura e na sua formulação, reflectindo as condições diversas do país em que devem aplicar-se.
Deste modo, como as leis não são imutáveis no tempo, e antes a umas leis podem suceder outras leis, importa determinar qual a esfera de aplicação das leis no tempo.
E como coexistem ordenamentos jurídicos nacionais, correspondentes a cada Estado, importa determinar qual a esfera de aplicação no espaço, isto é, a que situações jurídicas verificadas no país ou fora dele podem aplicar-se as leis de cada Estado.
Quanto à aplicabilidade da lei no tempo, é um problema originado pela sucessão de leis. E as leis, como dissemos, têm um período de validade demarcado pelo seu início e pelo seu termo.
Daqui resulta que, em princípio, a lei não terá eficácia retroactiva, isto é, não será aplicável no passado, a factos cometidos antes do início da vigência da lei.
O problema não mereceria, porém, que se lhe fizesse referência se se mostrasse resolvido com esta singela formulação. Mas não é assim.
É que os factos praticados durante o tempo de vigência da lei, enquanto regulados pela lei, se destinavam necessariamente a produzir efeitos, consequências, com relevância jurídica.
O contrato outorgado no domínio de uma lei antiga pode ter de cumprir-se no domínio da nova lei; o casamento celebrado no domínio de uma lei perdura no período de vigência da nova lei; e importa saber se os efeitos que perduram para além do termo de uma lei, deverão ser regulados por esta ou pela nova lei.
E é precisamente a questão dos efeitos dos factos passados que se produzam ou perdurem no domínio da lei nova que constituem o fulcro da regulamentação da validade da lei no tempo.
A solução da questão consta em geral do Código Civil, art. 12º: "A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
O princípio geral é, assim, o da não retroactividade da lei. Esta não se aplica aos factos ou seus efeitos já produzidos.

20 - O valor do princípio da não retroactividade das leis; as leis penais; as leis interpretativas

O citado art. 12º do Código Civil permite que as leis tenham excepcionalmente eficácia retroactiva. Por isso diz mesmo quando " lhe seja atribuída eficácia retroactiva" se presume não ser aplicável aos efeitos já produzidos.
Pode, portanto, por via do encontro de circunstâncias extraordinárias, a própria lei nova determinar a sua aplicabilidade quanto à regulamentação de factos passados ou seus efeitos.
Para tanto é preciso que a própria lei o declare expressamente.
Nesse caso a lei será, por estatuição que dela própria conste, retroactiva.
Não é nunca retroactiva a lei penal enquanto defina quaisquer factos como crimes ou comine as correspondentes sanções penais, porque a não retroactividade das leis penais está assegurada com a garantia constitucional pelo n.º 9 do art. 8º da Constituição Política.
Temos assim que o princípio geral quanto à aplicabilidade das leis no tempo é o princípio da sua não retroactividade; que este princípio pode ser postergado pela própria lei, porque é um princípio proclamado pela lei ordinária (Código Civil) que constitui uma presunção, que cede perante a vontade contrária inequivocamente expressa da nova lei.
E que a não retroactividade é um princípio irrevogável por qualquer lei, porque formulado pela Constituição, quando se trate de leis penais.
Em sentido inverso, e quanto às leis interpretativas, estas aplicam-se imediatamente aos factos regulados pelas leis interpretadas. É que as leis interpretativas se integram nas leis interpretadas, como se constituíssem uma só lei (Cód. Civil, art. 13º), embora com os esclarecimentos que o teor deste artigo indica.

21 - Delimitação do princípio da não retroactividade

Uma lei não pode naturalmente regular factos passados; mas somente factos futuros.
Mas os factos passados podem ter consequências que se solucionam ou produzem no futuro.
É sobretudo quanto a esses efeitos que a delimitação do princípio da não retroactividade pode oferecer dificuldades.
O Código Civil fornece o critério da delimitação que era necessário encontrar.
E distingue:
1º - as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou seus efeitos, relativamente aos quais se aplica a lei do tempo em que se praticaram os factos;
2º - os efeitos de quaisquer factos, que são tomados em si mesmos, independentemente da fonte que lhes deu origem, porque considerados como contendo relações jurídicas que perduram, e podem ser objecto de modificação legislativa, relativamente aos quais se aplicará a lei nova, pois que esta se referirá às relações já constituídas, quer em razão de factos anteriores, quer posteriores à nova lei.
Assim as obrigações emergentes de um contrato de empréstimo, reger-se-ão pela lei em vigor quando foi celebrado o empréstimo; mas as alterações ao regime de propriedade, embora esta tenha sido constituída por um contrato de compra e venda, serão de regular pela lei nova que tiver alterado o regime jurídico da propriedade.

22 - A aplicabilidade das leis no espaço

A ordem jurídica nacional vigora, em princípio, no território submetido à soberania do Estado e ao poder da sua legislação.
Dir-se-á, assim, que as leis terão aplicação no território do Estado de que provém a legislação. Este princípio da territorialidade é rigorosamente aplicável quanto às disposições de direito penal (Cód. Penal, art. 53º, n.ºs 1) e 2).
Nas relações jurídicas de direito privado há que atender a que tais relações jurídicas podem estar conexas com mais de uma ordem jurídica nacional (por exemplo, contrato de compra e venda outorgado na Itália, entre um português e um francês, tendo por objecto bens situados em Espanha).
Há como que uma concorrência de disposições legais de vários países em razão de um aspecto de relação jurídica, especialmente relevante para cada país, de sorte que surge um conflito de leis.
Para o resolver há normas denominadas normas de conflitos de leis, que indicam qual das diferentes leis nacionais em conflito será a aplicável.
Todas as questões - e são vastas e complexas - desta decisão de competência entre legislações nacionais diferentes é objecto do direito internacional privado. Opor-se-iam dois princípios - o da territorialidade e o da coordenação das diferentes ordens jurídicas. É este que está na base do sistema de regras de conflitos.
Em todo o caso, a legislação aplicável, em razão da determinação duma norma de conflitos é afastada em favor da legislação nacional, se os respectivos preceitos da lei estrangeira envolverem ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do estado português (Cód. Civil, art. 22º).
Damos apenas alguns exemplos de normas de conflitos, constantes do Código Civil (arts. 35º e segs.). É aplicável a lei pessoal (lei da nacionalidade) nos problemas relativos ao estado, a capacidade das pessoas, relações de família e sucessões.
Nas relações jurídicas dominadas pela autonomia da vontade dos sujeitos - como são as relações das obrigações - é aplicável a lei nacional que as partes escolherem; supletivamente, será aplicável a lei vigente no lugar da residência comum de ambos os contraentes, ou no lugar da celebração do contrato, na falta de residência comum dos contraentes (Cód. Civil, art. 42º).
Nos casos de responsabilidade civil extracontratual, será aplicável a legislação vigente no lugar onde se cometeu o facto constitutivo da responsabilidade (art. 45º).
O regime jurídico dos direitos das coisas será o estabelecido pela legislação do Estado em cujo território as coisas se encontrem situadas (art. 46º), etc..

 


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