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Cozinha do Arco-da-Velha


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Tem Cada Comida nesse Brasil


O Décimo Arroz-de-cuxá

Pois é como lhes digo: o verdadeiro arroz-de-cuxá não se faz, acontece. Essa é a única regra que me parece mais ou menos certa; e quando a proclamo é porque tenho a esperança de que o leitor apareça um dia lá pelas minhas bandas, na minha cidade natal de São Luís do Maranhão, e é meu dever ao mesmo tempo espicaçá-lo para a aventura e preveni-lo contra seus riscos.

Em bem o vejo daqui, desconfiado, a me perguntar há quanto tempo se pratica, no Maranhão, o arroz-de-cuxá: e não serei inexato se lhe disser que o costume se perde na noite dos tempos.

O primeiro Conselheiro Paulino, o grande visconde de Uruguai, foi menino no Maranhão e ali há de ter provado o arroz-de-cuxá, embora sua mãe, francesa, não o enumere entre as delícias gustativas da terra nas suas cartas do tempo em que ele estudava em Coimbra e o Brasil se fazia independente.

Quando, na segunda metade do século XIX, Gonçalves Dias apareceu por lá, na festa de Nossa Senhora dos Remédios (estava namorando Ana Amélia, cuja mão não teve por ser mulato e filho natural), não se vendia na praça em frente da igreja arroz-de-cuxá. Pelo menos João Francisco Lisboa não o diz. Mas abro um poeta popular daquelas eras, muito celebrado pela tendência para o bestialógico, Fábio Joaquim Ewerton, e ele canta a sua terra:

Tem quiabos vinagreira

que aqui se faz cuxá!

Peixinhos de água salgada...

Os versos são de 3 de agosto de 1868. Em 1883, Ferreira de Araújo, nas suas Balas de Estalo, na Gazeta de Notícias (aqui no Rio), escreve que cada terra brasileira, além do seu uso, tem a sua comezaina característica; e dá ao Maranhão o arroz-de-cuxá.

Vinte anos depois, os Srs. Vítor Godinho e Adolfo Lindemberg andaram por São Luís e provaram o célebre cuxá maranhense, o prato essencialmente indígena, que apenas lhes mereceu, por sinal, uma aprovação cortês.

E em 1912 o mesmo fez o Sr. Paul Wale, que se calou sobre o gosto daquele sauce verdâtre, embora sugerisse a possibilidade de sua origem portuguesa.

Vai daí, perguntareis: Pois se há tanto tempo se faz esse arroz, como dizeis que ele não se faz, acontece?

E eu me explico, mas primeiro busco no Dicionário de Vocábulos Brasileiros que em 1889 o visconde de Beaurepaire Rohan publicou a definição que ele dá de cuxá, abonado em informação de D. Brás Baltasar da Silveira, e que é perfeita:

Cuxá, s.m. (Maranhão) espécie de comida feita com folhas de vinagreira (Hibiscus Sabdariffa) e quiabo (Hibiscus Esculentus) a que se junta gergelim (Sesamum Orientale) torrado e reduzido a pó, de mistura com farinha de mandioca. Depois de bem cozido deita-se sobre o arroz, e a isso chamam arroz-de-cuxá.

É isso, e nada mais, nada menos. Vede como é simples e não há nada mais difícil.

Porque de dez, uma. Porque em cem vezes que a mistura se processa, o mais perito, o mais delicado, o mais minucioso dos cozinheiros acerta em dez, e dá-se por feliz, muito feliz.

Ora, no geral, ou o cuxá sai muito azedo, ou muito amargo, ou muito doce, ou muito insosso, ou muito com-gosto-de-queimado, ou muito ao mar, ou muito à terra. E eis que ele é justamente o prato em que devem ficar juntas e separadas todas as coisas, formando um sabor novo mas bem perceptível cada uma delas, como numa sinfonia se identificam os violinos, o piano e as flautas

No verdadeiro cuxá a vinagreira lembra que a vida é às vezes ácida, mas sem esse tempero de azedume não pode ser vivida; traz, por aí, o choque da realidade (e isso é salutar). A farinha é doce, embora um pouco monótona (un peu fade, queixava-se Montaigne, quando há quatro séculos quis prová-la na França), e assim também não é, por vezes, o ser? Com o quiabo vem o gosto das aglutinações físicas e morais, das afinidades eletivas. Gergelim liga a gente ao nascimento da civilização, que da Babilônia foi ao Egito e do Egito a Israel, e através dessa evocação leva ao Oriente e às suas oleosas volúpias, pois ao Maranhão chegou das Índias (quando as naus portuguesas entravam pela sala de jantar). Camarão tem de haver, fresco e seco; o primeiro trará pedras do oceano, tocas de bichos do mar, e será bastante presente para dar a sensação de vísceras tenras; e o segundo há de incorporar ao verde humilde do prato o sol do Equador e o sal das costas oceânicas, obtido pela fricção larga e poderosa dos ventos sobre as águas. Peixe? Não no cuxá, mas fora dele. Peixe bom é um complemento talvez indispensável, e deve ser feito, de preferência, em azeite de coco babaçu, extraído, se possível, pelo processo que os índios usavam imemorialmente e que consiste não em torrar as amêndoas ao fogo, mas em deixá-las secar ao ar livre e depois socá-las em pilão de bacuri, pequi, gameleira ou pau-darco. Acrescente-se (mas isso é um caso pessoal) que há de ser sem falta peixe-pedra, pescado em São José de Ribamar; mas disso não saberei falar a quem por lá não tenha nascido (ou pelo casamento não se haja feito maranhense); e aos estrangeiros, que direi que lhes desvende o mistério? Pois se o peixe-pedra nem dicionarizado está !

Dou um conselho a quem queira: Procure fazer-se amigo do escritor (e deputado) José Sarney Costa. É na casa dele que se come o melhor cuxá do Maranhão, embora sujeito aos percalços da espécie.

Ou então faça o seguinte: vá a São Luís, anuncie pelo rádio que anda atrás de cuxá. Maranhense é hospitaleiro por demais, compreenderá, convidará. Aí o visitante correrá a escala, dois péssimos, dois maus, dois sofríveis, dois bons, um melhor. Mas insista e elogie sempre, porque pode lhe acontecer o décimo, e então céus, mares e terra se abrirão na sua boca, e, se morrer em conseqüência, morrerá decentemente.

Odylo Costa, filho

Receita do Arroz-de-cuxá

Ingredientes: camarão fresco e seco; vinagreira (também chamada azedinha ou caruru azedo, caruru-da-guiné, quiabo-azedo, quiabo-de-angola, quiabo-róseo, quiabo-roxo, rosela); quiabo propriamente dito; gergelim, farinha de mandioca, gordura e tempero.

Soca-se o camarão seco com farinha. Torra-se e pila-se o gergelim, para misturar ao camarão. Aferventa-se e bate-se a vinagreira. Refoga-se camarão fresco e miúdo, temperado com coentro, cebolinha, cebola, tomate, alho e salsa, misturando com o quiabo cortado bem miúdo. Juntar o camarão seco pisado com a farinha, o gergelim já em pó e a vinagreira, tudo na água em que foi cozida a vinagreira. Fogo brando até dar consistência de mingau ralo. (Cuidado para não pôr toda a água, o que fará ficar azedo, e para não por pouca, o que fará ficar sem gosto.)

Pode-se juntar leite de coco (babaçu ou da Bahia), que enriquece sem deturpar.

Come-se na Ilha de S. Luís, em casa de varanda que dê para um quintal com coqueiros e marrecas, ou para as bandas do mar. As tábuas do soalho devem ser de bacuri. Antes, toma-se um gole reforçado de tiquira. Durante, vinho português, branco, gelado. Ou, se houver juçara, juçara.


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