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Cozinha do Arco-da-Velha


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Tem Cada Comida nesse Brasil


Tem Cada Comida nesse Brasil

Sim, tem cada comida por esse Brasil afora que a gente se espanta. Mas a verdade � que as determina��es de ordem regional explicam que o peixe-boi e os ovos de tartaruga sejam habituais nas mesas da Amaz�nia, no Maranh�o o casquinho de jurar� constitua del�cias, em Alagoas unha-de-velha e sururu desafiem as receitas modernas na prefer�ncia universal ou no Rio Grande do Sul o assado de couro se prepara como h� cem anos.

N�o � a isso, a essa cozinha ecol�gica, que me refiro. Falo � nos pratos que outrora n�o eram s� privil�gio dos que entravam sert�o adentro e se alimentavam, como consta de um documento de 1700 e poucos, de antas, cobras e macacos. O que digo � que lagarto, macaco, cobra, tanajura, ainda eram comidas normais no s�culo passado. Querem uma prova? O Cozinheiro Nacional, com receitas de i�� torrado, cobra frita, lagarto no espeto, gamb� com brotos de samambaia, foi escrito no Rio, no fim de novecentos. A edi��o que tenho em m�os � a quinta, de 1895. Pois no card�pio de banquete brasileiro, que o autor sugere, figuram macacos assados.

Evidentemente, essa aus�ncia de tabus alimentares vem do �ndio. N�o que ele n�o os tivesse e variando de na��o para na��o. Por exemplo, Canelas e Guajajaras s�o vizinhos, mas Canela, que vive no campo, onde ca�a � dif�cil, n�o tem exig�ncias: come on�a, mucura, mambira, sucuri. Guajajara, n�o. S�lvio Fr�is de Abreu esteve entre eles, viu: Guajajara prefere peixe pescado a flecha no Rio Mearim e faz escolha de ca�a, tem suas delicadezas

De maneira geral, por�m, o ponto de vista do �ndio era aquele a que se refere Peregrino J�nior em seu excelente estudo sobre a alimenta��o ind�gena: comiam tudo que encontravam, mesmo as coisas mais repugnantes, com del�cia e tranq�ilidade. E Peregrino cita um manuscrito, em letra do s�culo XVIII, existente entre pap�is de Jos� Bonif�cio, na Biblioteca Nacional: Comem piolhos e pulgas etc. n�o por sustento mas por ser costume entre eles comerem toda a cousa viva, que seja sua inimiga, donde diziam que n�o �ramos amigos de Deus pois o com�amos quando comung�vamos

O portugu�s foi atr�s das experi�ncias do �ndio, aprovou algumas, incorporou-as a seu jeito de viver. S� no s�culo XIX � que a tanajura desaparece da alimenta��o normal de S�o Paulo, onde se vendia em tabuleiros.

Ainda no come�o desse s�culo em Paranagu� pobre comia cupim. Lagarto, ainda hoje se come na Bahia. E eu n�o incluo o jacar� entre as comidas de causar espanto, pois ainda hoje, na minha cidade natal de S�o Lu�s, n�o � raro aparecer no mercado; em Teresina, faz uns anos, ouvi a um de meus irm�os, m�dico ilustre, que rabo de jacar� n�o h� nada melhor. Fui ao Pantanal, provei, tem gosto de peixe. Peixe grande, gosto duro.

Evidentemente, no testemunho dos viajantes estrangeiros, sobretudo dos que entraram por esse mundo adentro, h� que fazer o desconto da fome. O pr�ncipe de Neuwied, entre os Puris, achou repugnante macaco mal assado, uma cabe�a, um peito ac�falo com os bra�os: era de fato repugnante, sobretudo porque assavam a ca�a com pele, que ficava, assim, esturricada e preta. Mas quando, tempos depois, nas matas de Ilh�us, encontra ca�adores que assam na brasa um porco-do-mato, tr�s grandes macacos e uma jacutinga, acrescenta com s�bito entusiasmo: espet�culo grandemente satisfat�rio para viajantes esfomeados. J� n�o lhe repugnava tanto um macaquinho assado

A fome, �s vezes, levava o estrangeiro a exageros que nem �ndio praticava. Companheiros de Castelnau comeram urubu. Pois urubu �ndio n�o come. Acha que, se come, morre. Foi o que aconteceu a uma �ndia que o fez por engano, pensando que fosse mutum, numa lenda dos Caxinau�s, recolhida por Capistrano de Abreu.

A �ltima descoberta em mat�ria de culin�ria brasileira � a do naturalista Jos� C�ndido de Melo Carvalho, que, de volta de excurs�es do Javari-Itacoa�-Juar� (1950) e ao Rio Paru de Leste (1952), trouxe dois estupendos di�rios de viagem, compostos numa l�ngua natural, s�bia e enxuta, e impregnados da natureza brasileira no que ela tem mais de secreto e da vida do nosso povo �ndios e caboclos da Amaz�nia em toda a sua pobreza e simplicidade. Com a parte relativa �s jornadas no Rio Branco, no Oiapoque e nas ilhas da foz do Amazonas, que o autor revela possuir in�dita, esse grande document�rio honraria qualquer das nossas cole��es de estudos nacionais.

O Dr. Melo Carvalho registra v�rias observa��es sobre comida. Seu companheiro de viagem come macaco pela primeira vez: e prometeu procurar com mais aten��o esses animais, na beira do rio. Sua carne � realmente muito saborosa. Sobre guariba seu depoimento � pessoal: d� muita carne, por�m magra e dura de cozinhar. Quanto ao paladar, � excelente, sendo as costelas e a cauda as partes mais saborosas. Revela que, subindo o Itacoa�, depois de deixar para tr�s Remate de Males, abateu um grande jacaretinga, mas a tripula��o n�o comia jacar�, ele n�o insistiu, comeu sozinho. Comeu ara�ari (bom), uirapuru, arara, xex�u.

Mas a grande descoberta do Dr. Melo Carvalho � o gavi�o. Temos comido e apreciado muito a carne dessas aves. Para cozinh�-las, basta que seja removido o couro, como se f�ssemos prepar�-lo para taxidermia. Depois de bem cozidas, basta guis�-las em gordura at� a carne ficar bem corada. Muitas pessoas, que nunca haviam comido dessa carne, disseram-nos que iriam, de agora em diante, colocar esse animal na lista daqueles que lhes suprem habitualmente a alimenta��o.

A dificuldade ser� encontrar os gavi�es.

Macaco � muito Bom

Parece que � esta a conclus�o a que se deve chegar. O leitor, se j� n�o provou da ca�a, ou�a o que lhe dizem alguns viajantes ilustres.

Vamos come�ar pelos estrangeiros. Aqui est� Charles Frederick Hartt, o grande ge�logo, que lan�ou os fundamentos da corografia f�sica de nossa terra. Gostou muito. Diz que os botocudos preferem, na ca�a, o macaco, cuja carne, como eu pr�prio posso testemunhar, � extremamente saborosa.

Saint Hilaire, antes dele, tinha gostado. Mas o franc�s era novidadeiro, gostava de formiga e bicho-de-taquara, dir�o. Em todo o caso, era antes de tudo honesto. Em Goi�s, perto da antiga Vila-Boa, seus camaradas mataram um macaco, do qual comemos a carne, que achei �tima.

Quando Bates andou pelo Amazonas, tinha por for�a de comer macaco: n�o se dava bem com dieta de peixe, em tr�s dias ficava reduzido a extrema fraqueza. Vai da�, dois coat�s que defumou, comeu-os devagarinho, durante quinze dias. O �ltimo peda�o, um bra�o com a m�o fechada, usava com toda a economia, pendurava num prego do camarote entre as refei��es. Parecia gente. Bates reconhece que s� a dura necessidade poderia lev�-lo assim t�o perto do canibalismo, por�m que gostou do macaco, gostou. Como gostou! Sua carne � a mais saborosa que j� comi. Parecia carne verde, mas era de gosto mais agrad�vel e mais suave.

Muitos n�o conseguiram vencer a repugn�ncia. Oscar Kanstatt nunca participou do macaco assado no espeto que os brasileiros lhe diziam ser muito saboroso: Eu n�o podia superar o preconceito contra a carne do macaco, tanto mais por ter o animal esfolado e enfiado no espeto uma grande semelhan�a com o corpo humano.

Era apenas um preconceito, embora poderoso. Neville Craig, quando andou por aqui na constru��o da Madeira-Mamor�, j� estava cansado do regime de mingau e melado, melado e mingau. Houve um dia de ca�ada. Mist�rio quanto � ca�a. Foram � mesa, o cheiro era uma del�cia, o segredo persistia quanto � natureza do petisco: A carne era tenra, talvez um pouco forte, mas, preparada como veado ou filhote de anta, deliciava os nossos paladares j� fartos de mingaus. N�o houve amea�a que fizesse o cozinheiro contar o que era. Comeram, repetiram, e quando foram para a rede da sesta ainda chupavam pedacinhos de ossos. Depois, um companheiro descobriu as peles dos macacos, a revolta foi geral nos est�magos surpreendidos. De futuro, coma macaco quem quiser, menos eu, escreve Neville Craig, que pensa em Darwin e na antropofagia: A refei��o n�o fez mal damos gra�as por n�o termos sabido que est�vamos praticando antropofagia.

A quest�o � vencer o preconceito. � o que o s�bio Alexandre Rodrigues Ferreira j� observava quando estudou os mam�feros do Amazonas, na long�nqua era de 1790: Vencida uma vez a repugn�ncia de a comer, � certo que desde logo se perde o mau conceito, que se antecipa, de seu sabor. Ela (a carne) � branca e, ainda que ordinariamente pouco gorda, n�o deixa de ser tenra, delicada e de bom gosto. De suas cabe�as fazem-se boas sopas. Alexandre Rodrigues Ferreira cita o viajante que achava a gordura de guariba tanto ou mais amarela que a do cap�o, e muito saborosa. E sua experi�ncia fala: Eu n�o a tenho comido sen�o assada (falo de sua carne) e o que posso afirmar � que outras muito piores comem os preocupados.

Na verdade, os preocupados s�o os brasileiros das classes cultas. O Dr. Virg�lio Martins de Mello Franco, em sua viagem de magistrado do Imp�rio a Goi�s, matou conta ele uma guariba. E embora se diga que a carne � t�o boa quanto a de lebre, por�m mais adocicada, todavia a desprezamos morta na estrada, pois � repugnante a carne dos animais da ordem dos quadr�manos. E o mesmo fazia o neto, o saudoso Virg�lio Alvim de Mello Franco, nas suas excurs�es de ca�ador pelas matas do Esp�rito Santo: macacos que matava, ca�a que distribu�a.

Mestre Roquete Pinto, na Rond�nia, com aquela originalidade de observa��o que era uma das constantes do seu esp�rito, coloca a quest�o do �ngulo oposto. Os �ndios da Serra do Norte gostam especialmente de macaco, mas porque parece gente: resqu�cio, qui��, do antigo paladar antropof�gico.

Mas mo�o doutor n�o � �ndio. Na Amaz�nia que eu vi, Gast�o Cruls, confrangido pelo espet�culo da ca�ada uma das macacas apanhadas trazia o filho pequeno, ferido, que gritava lancinantemente , acha a carne de coat� seca e fibrosa. Mas o mesmo n�o dir� do macaco-prego da v�spera, tido por pit�u no almo�o Da� � antropofagia Com essas retic�ncias talvez seja melhor encerrar este cap�tulo dos macacos, n�o sem observar que era ca�a t�o normal nas expedi��es de outrora, sustentadas com o que a terra oferecia, que no dia de Natal de 1788 Lacerda e Almeida, subindo o Tiet�, na altura dos montes de Araraquara, meia l�gua depois da foz do rio Piracicaba, festejou o nascimento de Cristo com um modesto banquete: feij�o com toucinho e macaco preparado de quatro modos diferentes.

Paulista Comedor de I��

Quando eu era rapaz narra Couto de Magalh�es na Viagem ao Araguaia se comia aqui (em S�o Paulo) tanajura, ou i��, nas melhores fam�lias, vendida em tabuleiros pelas ruas. Mais tarde, s� a comiam, em boas fam�lias, �s escondidas, e isso depois que o poeta estudante J�lio Amando de Castro, em pleno teatro de gala, pois era um 7 de setembro, bateu palmas e, no meio de pasmo geral, seguido de gargalhadas dos estudantes, da� resultando formid�vel rolo, come�ou a recitar um soneto, que principiava assim:

Comendo i��, comendo cambuquira,

vive a afamada gente paulistana,

E aqueles a que chamam caipira,

Que parecem n�o ser de ra�a humana

N�o p�de concluir continua o escritor que lho n�o consentiu o berreiro de indigna��o que se levantou do cora��o � guelra dos patriotas

J�lio Amando de Castro fugiu (seus colegas tinham preparado tudo), mas n�o s� do teatro, tamb�m de S�o Paulo. Foi concluir o curso no Recife.

E o soneto ali�s n�o era dele (turma de 1850-1854), mas de Francisco Jos� Pinheiro Guimar�es (turma de 1828-1832). Durante pelo menos vinte anos, o paulista comeu i�� sem se importar com os c�lebres versos, de que, ali�s, a tradi��o s� guardou a primeira quadra.

O h�bito vinha da col�nia, mas parece que n�o se extinguiu de todo. � certo que quando o Sr. Everardo Vallin Pereira de Sousa descreveu, em 1946, no ensaio A Paulic�ia h� 60 anos, a fila de tabuleiros, mezinhas, ba�s de folha, panelas, caldeir�es, grelhas e frigideiras, que ficavam em frente ao Teatro S�o Jos�, n�o mencionou i�� de jeito nenhum.

Mas o naturalista Von Ihering, ao mesmo tempo que recorda a venda de abdomes de tanajura no mercado, acrescenta que a pa�oca ainda hoje � apreciada

Paulista n�o tinha raz�o de se zangar.

Ainda no tempo da independ�ncia, Saint Hilaire provou um prato de tanajuras, preparado por uma paulista, e n�o lhes achou mau gosto. E j� neste nosso s�culo Gentil Camargo incluiu i�� torrado entre os alimentos usuais no Vale da Para�ba. Alimentos do caipira paulista.

A iguaria era, por�m, universal no pa�s.

O pr�ncipe de Neuwied testemunhou que se comia por toda a parte, se assava e se comia, m�xime em Minas Gerais.

E na Bahia do primeiro s�culo, Gabriel Soares de Sousa as comparava a passas de Alicante, embora ressalvasse que era a opini�o de homens brancos que andavam entre os �ndios e mesti�os: T�m por bom jantar, e o gabam de saboroso, dizendo que sabem a passas de Alicante

No Pernambuco de Nassau Marcgrave dizia que as formigas eram chamadas pelos portugueses de Rei do Brasil; mas a esses reis os negros consumiam. S� os negros? Pois sim.

E no Maranh�o os �ndios gostavam tanto de tanajura que na hora em que formiga cria asa o padre Yves dEvreux viu assustado uma aldeia inteira correr atr�s de i��s, agarr�-las, botar numa caba�a para depois fritar e comer.

Tinham mesmo inventado uma cantiga para seduzi-las a sair do formigueiro. Sentam-se, conta o padre na tradu��o nem sempre fiel de C�sar Marques, mulheres e raparigas na boca da caverna e cantam:

Vinde, minha amiga,

vinde ver a mulher formosa,

ela vos dar� avel�s

No Amazonas (1922) o conde Ermano Stradelli dep�e n�o s� sobre a atualidade da ca�a �s formigas ovadas, quando � tempo e saem � tardinha lhes � dada ativa ca�a, mas tamb�m sobre a experi�ncia pessoal do velho s�bio italiano, perdido na promotoria p�blica de Tef�: O abdome moqueado, com molho de tucupi e uma pontinha de fome, preciso convir que n�o � de todo mau: h� coisas piores.

Aceita��o, embora n�o entusiasmo

H� um caso, todavia, de predile��o: � o dos habitantes do Esp�rito Santo, cem anos antes da experi�ncia alimentar de Stradelli. Os campistas segundo conta Saint Hilaire n�o davam aos seus vizinhos do Esp�rito Santo o apelido de capixabas, mas de tata-tanajuras

Coletivamente, esse ser� o grande epis�dio, mas individualmente h� de ser aquele caboclinho, ajudante de cozinha de Spix e Martius, que os s�bios alem�es freq�entemente surpreendiam perto de um formigueiro, mastigando: por meio de um pau, deixava tanajura vir-lhe correndo para a boca. Fartava-se sem esfor�o...

No Paran� se Comia Cupim

O Dr. Jos� Carlos Pereira de Almeida Torres, o futuro visconde de Maca�, abriu o Conselho Geral da Prov�ncia de S�o Paulo, de que era presidente, no dia 19 de dezembro de 1829. E l� pelas tantas considerou que agora, afinal, ia ser poss�vel cuidar da agricultura. Para isso, era preciso um bom regulamento que obrigasse os vadios a empregar-se em trabalhos �teis, porque da� viria o combate a dois males: a mis�ria e o celibato. A lei era tanto mais necess�ria quanto se sabia da facilidade com que gente desta natureza obtinha os meios de subsist�ncia. De maneira argumentava o presidente de S�o Paulo de maneira que ainda no ano de 1821, sendo eu ouvidor da comarca de Curitiba, observei, com pesar e horror, que os habitantes de um bairro da vila de Paranagu�, denominado a ilha do Mel, para n�o se dar ao trabalho nem sequer de uma ativa pescaria, sustentavam muitas vezes seus filhos com o cupim misturado com a mesma terra das casas formadas por tal inseto

No Paran�, era naqueles tempos; mas entre os Mau�s � ainda hoje. O etn�grafo Nunes Pereira, em seu livro sobre eles, conta que entre os morceaux du roi distinguem da guariba o gog�, o f�gado, as m�os, geralmente gordas; do veado, os quartos e o f�gado. Das tripas de veado e demais quadr�pedes fazem imoenpemon, mujica de bucho.

E acrescenta que a sa�va � torrada, pilada e transformada em pa�oca.

Mas o grande prato � o cupim. Nunes Pereira comeu, gostou: Torrado, seco ao moqu�m, onde o p�em embrulhado em folhas de bananeira, � comido saboreadamente. Achamos o prato excelente, com gosto de terra.

Antes Crer do que Provar

Eu antes quero crer do que provar, foi assim que o capuchinho Yves dEvreux, no Maranh�o do s�culo XVII, comentou a prefer�ncia de seus patr�cios pela carne de lagarto.

O padre especifica, chega quase ao prazer das receitas:

Fervem-nos para fazer mingau, ou assam-nos ao fumeiro (os �ndios).

Os franceses assam-nos no espeto, bem untado de gordura de peixe-boi, e � primeira vista pensareis que s�o coelhos ou lebres espetadas.

O guisado, que deles se faz, � muito parecido com o das lebres e coelhos, e muitos franceses gostam mais deles que dos nossos coelhos.

E desabafa: Eu antes quero crer do que provar.

Era preconceito do padre, diz Dr. C�sar Marques, que o traduziu em 1874: A carne do Ti�, pela sua cor e macieza, muito assemelha-se � da galinha mais preciosa, e por isso aparece nas melhores mesas do Brasil.

Do marqu�s de Barbacena sabe-se que era seu prato predileto.

E da normalidade do lagarto em mesa rica os depoimentos se sucedem. Tollenare, em 1817, registra que o lagarto, alimento dos botocudos, tamb�m figura nas mesas baianas. Por essa mesma �poca, Pohl conta que o lagarto � um prato estimado pelos negros e pelos habitantes do Rio, e � levado vivo ao mercado pelo pesco�o com um cord�o. Cinq�enta anos mais tarde, o lagarto n�o desaparecera das mesas cariocas: Vi muitas vezes fala o Rev. J. G. Fletcher no Rio lagartos espetados e ca�ados perto da cidade: pois a carne � estimada como de muito sabor, assemelhando-se a esse bom bocado para os epicuristas que � uma perna traseira de r�.

Mas n�o fica por a�, n�o. O Sr. Gilberto Freyre lembra que o naturalista Hasting Charles Dent achou carne de lagarto �tima: alva, tenra, com um gostinho bom de carne de porco.

A �ltima experi�ncia quem narra � o Sr. Odorico Tavares, no seu livro sobre a Bahia. Foi num jantar que a Sra. Godofredo Filho ofereceu, em sua casa na cidade de Salvador, ao poeta Murilo Mendes, acompanhado de Maria da Saudade Cortes�o Mendes, ao escritor Lu�s Martins, ao desenhista Caryb�. Foi servido tei�. � chegada do prato houve um certo mal-estar. O poeta Murilo Mendes provou um pedacinho, desconfiado. Proclamou: uma del�cia. Todos ca�ram no lagarto, quiseram saber onde se comprava, como se fazia.

Compra-se habitualmente em Feira de Santana, pertinho (hoje, que existe autom�vel) da capital baiana. Geralmente vem assado ou moqueado.

E se o leitor quiser saber como se faz encontrar� mais adiante a receita.

Camale�o, Melhor do que Galinha

A opini�o, evidentemente, n�o � nossa, leitor; mas foi a de um grande brasileiro, Couto de Magalh�es, na sua viagem ao Araguaia. Ele pr�prio, entretanto, ele que se dizia livre de preconceitos, e contava com certo prazer que no tempo em que foi presidente do Par�, vendia-se no mercado jacar� e cobra surucucu moqueada, e se gabava de que muitas coisas selvagens eram excelentes para seu paladar, e entre elas distinguia mexira de peixe-boi, marrecas, patos salgados e filhotes de jaburu ele pr�prio n�o assume a responsabilidade, n�o diz direto: Gostei mais de camale�o do que de galinha. Escreve assim, sutil: Para dar ao leitor uma id�ia de quanto a gente do povo aprecia a carne do camale�o, direi unicamente que, tendo eu trazido uma boa provis�o de galinhas de Salinas, s� comemos uma; as outras chegaram s�s e salvas a Leopoldina, por ser desprezada sua carne, como a da vaca, em favor daquela e de outras ca�as. Outras ca�as, a�, � exagero Foram dez dias puxados a camale�o

Capivara Pode Ser Gostoso

Jorge Marcgrave, quando escrevia, no tempo de Maur�cio de Nassau, a primeira Hist�ria Natural do Brasil, j� sabia que capivara n�o era muito bom, n�o: Sua carne serve para se comer, mas n�o � saborosa.

H�, todavia, um testemunho em favor da capivara (cujo pior defeito parece ser, ao que se l� no Dicion�rio dos Animais de Rodolfo von Ihering, possuir a carne gordurosa demais). � o testemunho de um s�bio que n�o gostava de capivara como bicho, achava-a bronca de intelig�ncia, est�pida e pesada de corpo Herbert Smith, por experi�ncia pr�pria, reconheceu que carne de capivara � muito boa quando lhe extraem as v�sceras logo depois de morta. H� alguns anos (ele escrevia em 1886) estava jantando em certa fazenda do Par�; os convivas, entre os quais se contavam um vice-presidente da Prov�ncia e um deputado geral, eram s� louvores de um prato, de que n�o ficou tico: acabado tudo, disse-nos o dono da casa que o que t�nhamos comido era capivara.

Urubu, Voc� Comia?

N�s tamb�m n�o, Deus nos livre. Mas os companheiros de expedi��o de Castelnau �s regi�es centrais do Brasil comeram urubu, sob o horror dos brasileiros. Vamos deixar o pr�prio Castelnau contar:

Alguns companheiros decidiram comer a carne de um urubu morto durante o caminho. Nada � capaz de exprimir o horror que semelhante repasto inspirava aos brasileiros. O mau cheiro da ave justificava, a meu ver, a repulsa dos naturais. Tamb�m, embora aqueles senhores afirmassem ter feito uma �tima refei��o, sempre tive as minhas d�vidas a respeito, d�vidas tanto mais fundadas quanto nunca mais os vimos repetir as fa�anhas, ainda nas ocasi�es em que est�vamos mais esfomeados.

Estavam perto de Salinas, nas margens do Orix�s Mirim.

N�o Leia, Leitor

Sim, leitor, se voc� n�o for �ndio, n�o leia. Como voc� sabe, �ndio come tudo ou quase tudo. Mas h� uma coisa que a gente n�o gosta de saber que se come.

Macaco, larvas, jib�ia, que jeito, Hartt viu, n�o achou ruim; Roquete Pinto vai anotando: calango, mosquito, terra de formigueiro, rato do chapad�o, tatu moqueado com beiju. Piolho � o diabo que �ndio coma.

Mas piolho ainda n�o � tudo. Karl von den Steinen estava entre os bororos. Eles tinham repugn�ncia pela carne do porco dom�stico, porque era criado pelo dono. Quando era servido aos oficiais um leit�o, bororo sa�a do refeit�rio. Id�ntica avers�o, entretanto, n�o tinham eles para com os bichos que tiravam dos p�s (Observamos uma �ndia que praticava essa pequena opera��o com um garfo tirado da mesa posta). Diziam que os comiam, porque eles tamb�m comiam o seu sangue.

Cobra no Hotel Terminus

Se o leitor, vai para uns anos atr�s, se hospedou no Hotel Terminus, receba parab�ns, sobretudo se lhe aconteceu estar l� no dia em que foi servida enguia. Lembra-se, uma enguia saboros�ssima, prato de sensa��o que o Sr. Germain Aurou, gastr�nomo, cozinheiro e franc�s, ofereceu aos presentes como especialidade fabulosa? Deve lembrar-se, pois se at� fez uma discreta visita � cozinha para ver se conseguia repetir!

Comeu, gostou, n�o se arrependa! Era cobra, uma m�dia jib�ia, fresquinha, ca�ada numa ch�cara dos arredores de S�o Paulo. Paulo Duarte inspirou naquelas aventuras o franc�s, que contribuiu com o estilo fidalgo da velha culin�ria p�tria, ambos escondidos prudentemente dos h�spedes. E o escritor brasileiro n�o se arrependeu, antes se gaba em livro: Tudo digno da mesa do mais exigente gastr�nomo.

A Orgia Gastron�mica de Claude Levi-Strauss

A mais recente experi�ncia gastron�mica de s�bio estrangeiro nos cafund�s do Brasil foi a do professor Claude Levi-Strauss que, em 1938, parou em Bar�o de Melga�o, entre duas etapas de sua expedi��o etnogr�fica, de que Tristes Tropiques representa hoje uma esp�cie de viagem sentimental sem todavia perder o car�ter cient�fico e, dentro da ci�ncia, o prazer da imagina��o e uma certa melancolia da condi��o humana

Em Bar�o de Melga�o bastava passar duas horas nos campos verdes cercados de florestas �midas onde cantavam jacus para voltar carregado de ca�a. E ent�o narra Levi-Strauss fomos atacados por um frenesi alimentar. Durante tr�s dias n�o houve sen�o cozinhar e comer, comer e cozinhar Dissiparam-se as reservas de �lcool e de a��car. E a expedi��o tateava nas comidas amaz�nicas, sobretudo a noz do tocari, cuja polpa engrossava os molhos com um creme branco e untuoso.

Eis o detalhe desses exerc�cios gastron�micos:

colibris assados no espeto e flambados no u�sque;

rabo de jacar� grelhado;

papagaio assado e flambado no u�sque;

salmis de jacu numa compota de a�a�;

guisado de mutum e de brotos de palmeira (palmitos?), com molho de tocari e pimenta-do-reino;

jacu assado com caramelo.

Receitas e Opini�es do Cozinheiro Nacional

Algumas receitas

I�� ou Tanajura Frita

Toma-se uma por��o de tanajuras (ou i��s) e escalda-se com �gua quente; tiram-se depois os abdomens que se fregem em gordura, apolvilhando-os com sal e pimenta, e estando bem torrados, servem-se como prato de surpresa.

Cobra Refogada

Corta-se uma cobra em peda�os, refogam-se com duas colheres de gordura e uma cebola picada, apolvilham-se com uma colher da farinha de trigo, e uma x�cara d�gua, sal, salsa, pimentas, e um pouco de noz moscada raspada; deixa-se ferver perto do fogo, at� cozer, tendo incorporado o molho, com duas gemas de ovos desfeitas em um c�lice de vinho, e serve-se.

Cobra Assada

Toma-se uma cobra, esfrega-se com sal, sumo de pimenta, alho, laranja azeda; passa-se em gemas de ovos, coloca-se em uma ca�arola, sobre lascas de toucinho, cobrindo-a com outras; p�e-se por cima cebola, salsa bem picada e noz moscada raspada; assa-se sobre brasas, cobrindo, e pondo tamb�m fogo sobre a tampa. Numa hora estar� assada e serve-se com alguma compota.

Cobra Frita

P�e-se a cobra, cortada em peda�os, de molho em sumo de laranja azeda, sal, salsa, cebola, cravo-da-�ndia, gengibre; passadas 6 horas, frege-se em bastante gordura com uma cebola picada e uma por��o de p�o ralado; deita-se tudo sobre talos ou raiz de inhame fervido em �gua e sal.

Cobra Guisada

Ferve-se uma cobra em �gua, sal, pimenta, salsa, cebola, mangerona, cravo-da-�ndia, noz moscada e gengibre; estando cozida, tira-se e separa-se a carne dos ossos; refoga-se depois com uma colher de farinha de trigo, duas colheres de gordura, n�o deixando frigir muito; acrescenta-se uma garrafa de leite fervido, com duas gemas de ovos e uma colher de a��car; deixa-se ferver durante um quarto de hora e serve-se.

Lagarto Ensopado com Ervilhas

Corta-se o lagarto em peda�os, refogam-se em duas colheres de gordura, uma cebola cortada, apolvilha-se com farinha de trigo, ajuntam-se um c�lice de vinho branco, uma garrafa d�gua, sal, salsa, mangerona e uma por��o de ervilhas verdes; deixa-se ferver tudo sobre fogo moderado durante uma hora e serve-se.

Lagarto Assado

P�e-se um lagarto de molho em vinagre, com um pouco de gordura derretida, sal, salsa, cravo-da-�ndia e pimentas; passadas doze horas, envolve-se em papel untado de manteiga e enfia-se-o no espeto; assa-se-o sobre fogo moderado; tira-se o papel e apolvilha-se com farinha de trigo, pingando-se gordura em cima: deixa-se tomar cor e serve-se com salada ou compota.

Macaco Assado no Espeto

Pela-se o macaco, limpa-se-o bem, esfrega-se-o com sal, pimentas comaris, sumo de lim�o, deixando-o neste tempero durante duas a tr�s horas; lardeia-se depois com tiras finas de toucinho e assa-se-o no espeto, tendo-o envolvido em papel untado com manteiga ou gordura; estando cozido, tira-se o papel, e envolve-se em p�o ralado, e continua-se a assar, umedecendo com manteiga, at� tomar boa cor, e serve-se.

Macaco Assado no Forno

P�e-se o macaco de molho em sumo de laranja-da-terra azeda, com sal, pimenta, alho, mangerona e salsa; deixa-se-o ficar durante vinte quatro horas, e virando-o duas ou tr�s vezes; lardeia-se-o com tiras finas de toucinho, p�e-se numa panela, tendo-o molhado com um c�lice de vinho; deixa-se-o assar no forno ou sobre brasas; estando assado, serve-se.

Macaco Cozido com Bananas

Toma-se um macaco, tira-se a cabe�a e p�e-se-o a ferver em �gua e sal, com uma d�zia de bananas-da-terra com casca; estando a carne cozida, refogam-se duas colheres de farinha de trigo em outro tanto de manteiga de vaca e antes de corar junta-se uma x�cara de vinho branco com duas colheres de a��car e uma de sumo de lim�o; tendo fervido um pouco, deita-se-lhe a carne sem ossos e cortada em peda�os; deixa-se dar mais uma fervura e despeja-se tudo sobre as bananas descascadas e postas inteiras sobre um prato, e serve-se.

Macaco Refogado com Pepinos

Refoga-se o macaco depois de limpo, e sem a cabe�a, em tr�s colheres de gordura, tira-se-o em seguida, e p�e-se na mesma gordura meia d�zia de pepinos e outras tantas cebolas cortadas; acrescenta-se depois uma x�cara d�gua, um c�lice de sumo de laranja-da-terra, sal, pimenta, cravos-da-�ndia, salsa picada e os peda�os do macaco refogados: deixa-se ferver durante uma hora, incorpora-se o molho com duas gemas de ovos batidas e desfeitas num c�lice de vinho, e serve-se.

Gamb� Refogado com Renovos de Samambaia

Toma-se um gamb�, tira-se o cheiro, limpa-se-o e lava-se-o com �gua quente, corta-se a cabe�a e refoga-se em gordura; vira-se-o para frigir igualmente de todos os lados e apolvilha-se-o com p�o ralado, juntando salsa, cebola picada, sal e pimenta; acrescentam-se uma x�cara de �gua e uma colher de vinagre; deixa-se ferver durante meia hora, e deita-se sobre renovos de samambaia cozidos em �gua e sal, deitados e arranjados num prato, e serve-se com seu molho.

E as Opini�es

Na Livraria Briquiet, a Garnier de hoje, ningu�m sabe quem foi Paulo Valle. Descobrimos que foi ele o autor do Cozinheiro Nacional, publicado anonimamente, porque � dele o Jardineiro Brasileiro, da mesma �poca, do mesmo editor. Fomos a Sacramento Blake, era exato. Mas sobre o autor o pr�prio Blake nada sabia, apenas que vivia retirado, escrevendo livros para o Garnier. Seria pseud�nimo?

De qualquer forma, a verdade � que Paulo Valle n�o dava somente receitas de bichos brasileiros. Tamb�m tinha opini�es sobre eles:

Tanajura: No gosto, assemelha-se ao camar�o.

Cobra: Carne muito deliciosa, e que n�o � somenos � do melhor peixe, com a qual se assemelha; as pessoas que comeram a carne de cobra a preferem a qualquer outra; a da cascavel � a mais delicada e eficaz. Eficaz em qu�, perguntar� o leitor? Na cura das mol�stias do cora��o, de s�filis inveterada e sobretudo da morf�ia, responde o Cozinheiro Nacional. Cobra guisada, � excelente: todos dir�o que comeram galinha.

Gamb�: Sua carne � excelente. Para tirar a catinga, cortam-se as gl�ndulas e se esfola depressa.

Lagarto: Fornece uma carne branca como a de frango; e, preparado em fricass�, certamente ningu�m dir� que n�o comeu um delicado guisado de frango.

Macaco: Muitos repugnam comer a sua carne, por causa da semelhan�a com o homem, mas � excelente, e conv�m mais aos convalescentes.

Odylo Costa, filho


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