São Paulo, segunda-feira, 1º de junho de 2009
Diálogo Econômico
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Era uma vez no Oeste
Na assim chamada Era Dourada – entre o fim
da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 70 do século passado – conviveram
em harmonia o crescimento rápido, a baixa inflação, reduzidas taxas de
desemprego, aumento dos salários reais e integração das massas aos padrões
modernos de consumo e convivência.
Na década dos 70, o jogo virou. Entrou em campo a funesta combinação entre
inflação e baixo crescimento. O bloco ideológico que se opunha às políticas
“intervencionistas” e ao Estado do Bem-Estar tratou de atribuir o desarranjo à
decrepitude das políticas e das práticas que buscavam controlar a instabilidade
do capitalismo e impedir que o destino dos cidadãos ficasse à mercê das
incertezas do mercado. Depois de 30 anos de desempenho brilhante – as economias
capitalistas emitiam sinais de fadiga estrutural. A Golden Age agonizava.
No limiar dos anos 80, a eleição de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald
Reagan nos Estados Unidos refletiu o desconforto das classes abastadas e médias
com a estagflação. As cargas tributárias elevadas, o excesso de regulamentação e
o poder dos sindicatos eram, sem dúvida, os responsáveis pelo mau desempenho das
economias.
A famosa Curva de Laffer garantia que a sobrecarga de impostos sufocava os mais
ricos e desestimulava a poupança, o que comprometia o investimento e, portanto,
reduzia a oferta de empregos e a renda dos mais pobres. As práticas
neocorporativistas, diziam os ideólogos do neoliberalismo, criavam sérias
deformações “microeconômicas”, ao promover, deliberadamente, intervenções no
sistema de preços – nas taxas de câmbio, nos juros e nas tarifas.
Com o objetivo de induzir a expansão de setores escolhidos ou de proteger
segmentos empresariais ameaçados pela concorrência, os governos distorciam o
sistema de preços e, assim, bloqueavam os mercados em sua nobre e insubstituível
função de produzir informações para os agentes econômicos. Tal violação das
regras de ouro dos mercados competitivos culminava na disseminação da
ineficiência e na multiplicação dos grupos “predadores de renda”, que se
encastelavam nos espaços criados pela prodigalidade financeira do Estado.
Ainda nos anos 50, tempo de esplendor e glória das políticas keynesianas e do
Estado de Bem-Estar, o libertarianismo de Friedrich Hayek e o monetarismo de
Milton Friedman formaram a comissão de frente da ofensiva contra “os inimigos da
liberdade econômica”. Para Hayek, o mercado é um processo de troca e de
acumulação de informações e não um ambiente estático dotado de forças que o
reconduzem ao equilíbrio. As intervenções do Estado são nefastas, pois só o
processo de mercado torna possível a inovação nos métodos de produção e de
organização, a partir do continuado fluxo de informações que surge da interação
entre os indivíduos livres.
O importante nessa concepção é a ênfase na capacidade do mercado livre de
empecilhos de mobilizar e fluidificar os recursos individuais. O corpo de
propostas “reformistas” rotuladas de neoliberais está, portanto, comprometido
com a ideia de que é preciso liberar as forças criativas do mercado. A renovação
do capitalismo, em gestação desde o crepúsculo da era keynesiana, tinha o
propósito de abrir caminho para a preeminência das relações entre indivíduos
livres, dispostos aos objetivos do ganho monetário. Esta é a sociedade dos
neoliberais.
Mas, na verdade, as reformas liberalizantes, empreendidas desde o crepúsculo dos
anos 70 do século passado, trataram de mobilizar os recursos políticos e
financeiros dos Estados nacionais para fortalecer os respectivos sistemas
empresariais envolvidos na concorrência global. O Estado não saiu da cena,
apenas mudou de agenda. Em sua obra maior, Civilização Material e Capitalismo, o
historiador Fernand Braudel escreveu: “O erro mais grave (dos economistas) é
sustentar que o capitalismo é um sistema econômico... Não devemos nos enganar, o
Estado e o Capital são companheiros inseparáveis, ontem como hoje”.
Na esteira do apoio decisivo do Estado, as corporações globais passaram a adotar
padrões de governança agressivamente competitivos. Entre outros procedimentos,
as empresas subordinaram seu desempenho econômico à “criação de valor” na esfera
financeira, repercutindo a ampliação dos poderes dos acionistas. Aliados aos
administradores, agora remunerados com bônus generosos e comprometidos com o
exercício de opções de compra das ações da empresa, os acionistas exercitaram um
individualismo agressivo e exigiram surtos intensos e recorrentes de
reengenharia administrativa, de flexibilização das relações de trabalho e de
redução de custos.
As estratégias de localização da corporação globalizada introduziram importantes
mutações nos padrões organizacionais: constituição de empresas-rede, com
centralização das funções de decisão e de inovação e terceirização das operações
comerciais, industriais e de serviços em geral. A cartilha neoliberal pretendia
nos ensinar que a globalização nasceu de uma espantosa revolução tecnológica
capaz de aproximar o homem do momento em que vai se livrar da maldição do
trabalho e gozar dos encantos da vida cosmopolita. A microeletrônica, a
informática, a automação dos processos industriais, etc. prometem nos libertar
das limitações impostas pelo espaço e pelo tempo. O indivíduo livre pode
trabalhar em casa e se tornar, além de patrão de si mesmo, um partícipe da
prosperidade universal. A globalização, associando tecnologia e transformação
das formas de trabalho, estaria realizando essa maravilhosa promessa da
modernidade.
Mas a realidade da globalização neoliberal foi outra. A individualização das
relações trabalhistas promoveu a intensificação do ritmo de trabalho, conforme
estudo recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e de outras
instituições que lidam com o assunto. O trabalho intensificou-se, sobretudo,
entre os que se tornaram independentes das relações formais, os que negociam
diariamente a venda de sua capacidade de trabalho nos mercados livres.
Isso aconteceu no mesmo período em que as novas formas financeiras contribuíram
para aumentar o poder das grandes corporações em suas relações com os empregados
e terceirizados. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos
mercados e promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos,
considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos
mercados e o acirramento da concorrência coexistiram com a tendência ao
monopólio e, assim, impediram que os cidadãos, no exercício da política
democrática, exercitassem o direito de decidir sobre a própria vida.
Os neorreformistas, na realidade, cuidaram de transferir os riscos para os
indivíduos dispersos, ao mesmo tempo que buscaram o Estado e sua força coletiva
para limitar as perdas provocadas pelos episódios de desvalorização da riqueza.
A intensificação da concorrência entre as empresas no espaço global não só
acelerou o processo de financeirização e concentração da riqueza e da renda como
submeteu os cidadãos às angústias da insegurança.
Os efeitos do acirramento da concorrência entre empresas e trabalhadores são
inequívocos: foram revertidas as tendências à maior igualdade observadas no
período que vai do final da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 70 –
tanto no interior das classes sociais quanto entre elas. Na era do capitalismo
“turbinado” e financeirizado, os frutos do crescimento concentraram-se nas mãos
dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da
renda e da riqueza. Para os demais, perduravam a ameaça do desemprego, a
crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.
O projeto da autonomia do indivíduo está inscrito no pórtico da modernidade.
Significa a sua autorrealização dentro das regras das liberdades republicanas e
do respeito ao outro. Opõe-se à submissão aos poderes – públicos e privados –
que o cidadão não controla. A disseminação das formas mais agressivas de
concorrência encontrou, até agora, pouca resistência em seu incessante trabalho
de reduzir os “conteúdos” da vida humana às relações dominadas pela expansão do
valor de troca. Mas pode se tornar intolerável para os indivíduos – ou para a
maioria deles – a sensação de que o seu cotidiano e seu destino são governados
pelas tropas de uma “racionalização” sufocante, destruidora do projeto de uma
vida boa e decente.
http://www.cartacapital.com.br/app/index.jsp
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Luiz Gonzaga Belluzzo
é professor titular de Economia da Unicamp. Foi
chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda
(governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo
(governo Quércia).A coluna Diálogo
Econômico é publicada, originalmente, na
revista Carta Capital, pelo Diretor de Redação, Mino Carta.
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