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LUIZ AUGUSTO GOLLO
Filme antigo
A herança cartorial portuguesa guiará
os passos da sociedade brasileira pelos séculos dos séculos amém, a julgar pela
mais recente bobagem do Ministério da Justiça: o pai que quiser levar o filho
menor ao cinema para assistir a um filme com classificação para 18 anos deverá,
antes, emancipar o pimpolho em cartório. Para filmes classificados até 16 anos,
basta assinar um termo de responsabilidade à entrada do cinema (vai ter gerente
exigindo firma reconhecida, quer apostar?). É o Estado mais uma vez se metendo
na vida da gente em coisas sem a menor importância. E o governo gastou dois anos
e meio(!) discutindo se adolescente pode ou não ver cenas fictícias de estupro e
tiroteio no cinema da esquina, mesmo na companhia do pai ou da mãe. Já
“mensalões”, dólares na cueca, surubas da Geane Mary Corner e outras sacanagens
da vida real continuam liberadas.
Anos atrás, o jurista baiano Josaphat Marinho, senador já falecido, comandou a
alteração do Código Civil no Congresso Nacional. Códigos existem para dar alguma
ordem à vida em sociedade. Temos um monte deles, o de Aeronáutica, o de
Telecomunicações, o de Futebol, o de Trânsito, o de Defesa do Consumidor, o
Penal e outros, estabelecendo onde o Estado pode se meter na nossa vidinha.
No Código Civil, por exemplo, até 2002 havia um tal “rapto consensual”, que
vinha a ser a fuga da adolescente com o namorado que o pai não queria. Havia
também o adultério, cujo flagrante envolvia a polícia, testemunhas, uma vergonha
federal, e que vinha junto de conceitos como “mulher honesta”, “moça virgem” e
“cabeça do casal”, tudo definido pelo Estado machista que zelava pelo que
acontecia entre quatro paredes em volta da cama. Josaphat deu uma atualizada,
mas usos e costumes não se mudam com facilidade, o uso do cachimbo entorta mais
a mente do que a boca da gente.
Agora mesmo, aqui em Brasília, rola o julgamento de um ex-marido ciumento que
matou, no estacionamento da faculdade, o professor que ia pegar carona com a
ex-mulher. E ainda acertou cinco tiros nela, que sobrevive sabe-se lá com quais
seqüelas. Pois o advogado dessa besta humana alega “legítima defesa da honra”,
figura jurídica de duvidosa legitimidade, mas facilmente entendida e acatada
pelo tribunal do júri. Em nome do chifre pode matar? Se não é mais o marido,
pode exigir fidelidade conjugal? Não vou nem entrar no terreno da infidelidade
conjugal masculina, tolerada até pelas esposas virtuosas.
Nossa sociedade ainda imagina que a mulher é propriedade masculina mesmo depois
de separada, desquitada (ainda existe isso?), divorciada e viúva (os direitos do
macho não morrem jamais!). Sei de ex-marido que já casou outra vez, mas continua
mandando na ex, assim como tem muito filho (e filha) adulto que não deixa a mãe
viúva namorar, em respeito à memória do finado e extinto pau...perdão, leia-se
pai.
No meio dessa maluquice sociológica, parecem naturais as proibições do Estado:
não pode falar no telefone nem fumar dirigindo, porque o Código Nacional de
Trânsito diz que o motorista deve manter as duas mãos no volante (o ideal seria
algemar). Cinto de segurança é acessório – “peça que, embora desnecessária ao
funcionamento do veículo, contribui para a segurança e proteção dele, e para o
conforto e segurança dos passageiros, podendo, também, servir apenas de adorno”
(Aurélio) – mas cá entre nós é obrigatório, e por aí vão as interferências do
“papai” nos nossos usos e costumes. Como o Brasil não tem cidadania, a cada
quatro anos vamos às urnas eleger nosso tutor, que vai dizer o que é bom para
nós, distribuir cesta básica, vale-transporte, tíquete-refeição, vale-gás,
cheque-cidadão, bolsa-família, vai beijar nossas crianças, ralhar e botar a
gente de castigo até a próxima eleição. Aí nós vamos às urnas novamente e
escolhemos outro para repetir o filme. Pelo menos agora vou poder levar meu
filho para assistir e mostrar pra ele a impostura dessa trama.
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Luiz Augusto Gollo.
Jornalista e escritor, vive
em Brasília
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SEGUNDA
10/07/2006
Luiz Augusto
Gollo é escritor,
jornalista,
no Distrito
Federal
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