Bens tombados destruídos no Brasil
    C. Bens tombados descaracterizados





    C.1. Descaracterização da antiga Fábrica de Tecidos Elásticos Godoy Valbert – Campinas SP
    ©


    Palavras-chave
      Campinas. Patrimônio histórico. História da técnica. Tombamento. Reforma. Descaracterização. Revitalização. Fachadismo. Autenticidade. Fábrica de Tecidos Elásticos Godoy Valbert. Silvino de Godoy. Guilherme Roberto Valbert. ICOMOS. Carta de Brasília.



    O patrimônio
    histórico de Campinas foi em grande parte recentemente arrasado através de inúmeras demolições e reformas de edificações antigas, como a destruição dos solares do Visconde de Indaiatuba e dos Alves e da demolição quase total e descaracterização da fachada do “casarão do café”.

      Os tombamentos levados a efeito pelo IPHAN (conselho nacional de defesa do patrimônio histórico), pelo CONDEPHAAT (conselho estadual) e pelo CONDEPACC (conselho municipal) representam pequena parte das edificações antigas até há poucos anos encontradas na importante região histórica de produção açucareira e cafeeira do antigo município de Campinas (atuais municípios de Americana, Campinas, Cosmópolis, Hortolândia, Nova Odessa, Paulínia, Sumaré e Valinhos). Quase todo o patrimônio cultural ligado a essa produção, de importância nacional, foi perdido.

      Recentemente (novembro de 1998 a junho de 1999) consumou-se mais um atentado ao patrimônio histórico edificado de Campinas [Estado de São Paulo, Brasil]: a descaracterização da velha Fábrica de Tecidos Elásticos Godoy Valbert [Foto 5], situada à rua José Paulino 1829, importante conjunto de edificações industriais [tombado a nível municipal pelo CONDEPACC em 1994 (Nota 5)], que já havia passado por diversas alterações em suas características originais.

      Foto 1


      Por envolver questões doutrinárias e teóricas pertinentes ao patrimônio histórico, merece o caso divulgação e discussão.

      Esse prédio foi erguido provavelmente em 1921 pelos sócios Silvino de Godoy e Guilherme Roberto Valbert e se constitui em marco importante da industrialização de Campinas.

      O conjunto construtivo é atualmente ocupado por uma entidade religiosa (Igreja do Nazareno), que empreendeu as obras, autorizada pelo mesmo CONDEPACC.

      Foto 2


      Essas últimas alterações de grande monta acabaram por descaracterizar completamente o conjunto, restando quase intactos apenas as fachadas fronteira e direita do edifício principal (com seus vitrais) e o prédio menor à esquerda, ainda com seu telhado original [Nota 1].


      O telhado original de telhas francesas foi substituído (com toda sua estrutura de madeira) por outro muito alto, isolante e de cor azul, em conflito com a fachada, com estrutura metálica. O edifício central [Foto 5] foi demolido, restando o frontão, adulterado [Foto 4].

      O arco metálico com o nome da Fábrica e o corredor aberto com telhado que unia os edifícios [Foto 5] foram eliminados, substituídos por cobertura que destoa do conjunto [Foto 4]. Todo o interior do edifício principal e sua fachada posterior foram destruídos.

      O instrumento legal de tombamento não especificava tombamento parcial, pelo que presumia tombamento integral das edificações no estado em que se encontravam na data da publicação; a autorização da reforma dada pelo Conselho foi, portanto, irregular.

      Foto 3


      As normas e recomendações internacionais de restauro, conservação e adaptação de edificações antigas (Declarações – charters – do ICOMOS e da UNESCO) condenam veementemente intervenções descaracterizadoras. Como exemplo cita-se o texto da “Carta de Brasília” (Documento Regional do Cone Sul sobre Autenticidade, ICOMOS, 1997):

        A intervenção contemporânea deve resgatar o caráter do edifício ou do conjunto – destarte rubricando sua autenticidade – sem transformar sua essência e equilíbrio, sem se deixar envolver em arbitrariedades, mas sim enaltecendo seus valores.

      A fachada de uma edificação histórica representa uma fração bastante pequena dos elementos técnicos, históricos e construtivos que a recomendam para conservação como documento para as gerações futuras e para a pesquisa.

      O fachadismo (valorização e conservação exclusiva de uma ou mais fachadas, descartando-se ou alterando-se o restante de cada construção) é hoje repudiado por técnicos e pesquisadores do patrimônio histórico em todo o mundo [Nota 2].

      A convivência do novo com o antigo deve ser estratégia de valorização dos bens históricos, mas nunca pode motivar a descaracterização destes. No caso em questão o contraste entre os antigos e novos materiais foi alegado pelo empreiteiro da reforma como justificativa para que parte das estruturas originais fosse eliminada, com o beneplácito de uma das entidades locais de proteção do patrimônio histórico (CONDEPACC) [Nota 3].

      Creio que soluções menos drásticas, respeitando as características originais da Fábrica, poderiam ter sido adotadas, sem perda da funcionalidade do espaço para fins modernos. Toda intervenção em bens culturais deve ter limites delineados por critérios técnicos.

      O patrimônio edificado vai sendo destruído através de manobras fachadistas por todo o Brasil, para atender aos interesses imobiliários, comerciais, políticos, pessoais e de grupos isolados, sem que sejam mobilizados para discussão e decisão os técnicos especializados na conservação e revitalização desse patrimônio.

      Com a mutilação da Fábrica de Tecidos Elásticos, Campinas e seu povo perderam parte da memória industrial, técnica e histórica.


      Celso Lago Paiva, Eng.o

      Pesquisador de História da Técnica Construtiva

      Coordenador do Grupo de Estudos de
      História da Técnica
      GEHT/CMU/UNICAMP

      Membro do Conselho Científico do
      Centro de Memória UNICAMPCMU

      Moderador da Lista de Informação do ICOMOS/ BrasilLIIB.

      [email protected]


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      Documentos

      1. Resolução de tombamento da Fábrica de Tecidos Elásticos pelo CONDEPACC

      2. Aprovação pelo CONDEPACC do pedido de reforma da Fábrica




      Documento 1.
      Resolução
      de tombamento da Fábrica de Tecidos Elásticos pelo CONDEPACC

      Publicada no Diário Oficial do Município de Campinas, a 10 fev. 1994, p. 3-4.

      “Secretaria de Cultura
      Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas
      CONDEPACC

      Resolução n.o 14 [15] de 03 de fevereiro de 1994

      Luiz Roberto Liza Curi, Secretário Municipal de Cultura, Esporte[s] e Turismo, no uso de suas atribuições legais e nos termos do artigo 10 da Lei Municipal n.o 5885, de 17 de dezembro de 1987 e do Decreto n.o 9585, de 11 de agosto de 1988,
      Resolve:

      Artigo 1.o. – Fica tombado o imóvel, sito à Rua José Paulino, n.o 1829, antiga Fábrica de Tecidos Elásticos Godoy e Valbert S/A, bem de interesse arquitetônico e histórico no município de Campinas.

      Parágrafo único – os [sic] bem tombado pela presente resolução passa a ser objetos [sic] das sanções e benefícios previstos pela Lei Municipal n.o 5885, de 17 de dezembro de 1987.

      Artigo 2.o. A área envoltória do bem constante do artigo 1.o desta resolução, conforme prevêem os artigo [sic] 21, 22 e 23 da Lei Municipal n.o 5885, fica regulamentada como segue:

      I – Os bens imóveis listados a seguir não poderão ser demolidos ou modificados sem autorização prévia do CONDEPACC:

      N.O DO QT ENDEREÇO N.O IMÓVEL N.O DO LOTE
      289 Rua Barão Geraldo de Resende
      75
      01
      253 Rua José Paulino c. Av. Orozimbo Maia
      75
      41
      253 Rua José Paulino
      1906
      17
      290 Rua José Paulino
      1970
      07
      280 Rua Luís Rosa
      278
      04
      280 Rua Luís Rosa
      354
      02

      II – O arruamento de paralelepípedos no local situado a seguir, não poderão [sic] ser retirados sem autorização prévia do CONDEPACC:

      1 – Rua José Paulino entre a Av. Orozimbo Maia e Av. Barão de Itapura.

      2 – Rua Barão Geraldo de Resende, entre a Rua José Paulino e Av. Barão de Itapura.

      Artigo 3.o. – Toda [a] área definida no artigo 2.o desta resolução deverá passar por um processo de revitalização e planejamento visual, para que se permita o seu reconhecimento e ambientação quanto ao imóvel da antiga Fábrica de Tecidos Elásticos Godoy e Valbert S/A.

      Artigo 4.o. – Resoluções posteriores regulamentarão o disposto no artigo 3.o desta resolução.

      Artigo 5.o – Fica a Coordenadoria do Patrimônio Cultural autorizada a inscrever no livro tombo competente o imóvel tombado por esta resolução e providenciar junto à Secretaria dos Negócios Jurídicos da Prefeitura Municipal de Campinas, o encaminhamento da averbação desta medida no Cartório da Circunscrição do registro imobiliário a que pertencem estes bens.

      Artigo 6.o Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições de administrativas em contrário.

      Luiz Roberto Liza Curi
      Secretário de Cultura, Esporte e Turismo
      Presidente do CONDEPACC”

      [A respeito desta Resolução ver a
      Nota 4]

      [Volta]



      Documento 2.
      Aprovação
      pelo CONDEPACC do pedido de reforma da Fábrica

      “Prefeitura Municipal de Campinas
      Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo
      CONDEPACC

      Protocolo N.o 37931/96
      Interessado: Igreja do Nazareno Central de Campinas
      Assunto: Solicita aprovação de projeto de reforma do imóvel sito à rua José Paulino, 1829

      Síntese de decisão do egrégio colegiado, Sessão Ordinária do dia 19/09/96

      “O egrégio colegiado aprovou o parecer da C.P.C. e do Conselheiro Joaquim Caetano de Lima Filho favorável ao último projeto apresentado para remodelação do imóvel sito à rua José Paulino, 1829.”

      1 – À SMO/DU.
      Campinas, 19 de setembro de 1996

      [assinatura]
      Sérgio Luís Coutinho Nogueira
      Secretário de Cultura, Esportes e Turismo
      Presidente do CONDEPACC”
      [Volta]



      Notas


      Nota 1

          Após a publicação virtual deste libelo, a 3 jan. 1999, a Igreja do Nazareno concluiu em junho de 1999 a descaracterização do conjunto histórico, substituindo o telhado original do prédio da esquerda, com tesouras de madeira e telhas francesas (possivelmente originais), pelas mesmas telhas metálicas azuis (com estrutura metálica proeminente) com que havia provido o edifício principal.

          A reforma do conjunto foi concluída em agosto e inaugurada em outubro de 1999.
          [
      Volta]


      Nota 2

          Consigna o texto da
      “Declaração em defesa das construções e instalações utilitárias” (GEHT/ CMU/ UNICAMP, jan. 1998) a preocupação de seus signatários com a descaracterização das edificações industriais através de manobras fachadistas:
            “10. Igualmente preocupante é o fato de que na maioria das poucas edificações utilitárias tombadas ocorreu a descaracterização do seu interior e do entorno, condenados por um “fachadismo” que contamina fortemente certos meios ligados à conservação de bens culturais edificados.”
          [Volta]


      Nota 3

          A esse respeito deve-se lembrar a “Carta de Veneza” (Carta Internacional sobre Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios, ICOMOS, 1964):
            “Art. 13.o. Os acréscimos só poderão ser tolerados na medida em que respeitarem todas as partes interessantes do edifício, seu esquema tradicional, o equilíbrio de sua composição e suas relações com o meio ambiente.
          [
      Volta]


      Nota 4

          Das edificações referidas no Artigo 2.o, alínea I (que caracteriza a área envoltória da Fábrica de Tecidos), duas delas já foram demolidas sem que as autorizações competentes tenham sido discutidas e aprovadas pelo CONDEPACC (não constam do
      prontuário da Fábrica de Tecidos): as localizadas na Rua Prof. Luiz Rosa n.os 278 e 354, vizinhas da Fábrica.

          Ambas as edificações industriais no entorno, protegidas legalmente, foram destruídas durante a reforma da Fábrica, dando uma delas lugar à quadra de esportes e estacionamento da igreja e outras duas ao Instituto de Educação Jaime Kratz, ligado a essa igreja.

          Dessa forma parece ilegal a demolição dessas edificações; nem por isso os responsáveis foram notificados ou processados.

          Ambas as edificações históricas desapareceram sem deixar documentos, demolidas pela mesma Igreja do Nazareno, fazendo mais uma vez da legislação mera letra morta.

          Diz o Decreto Municipal 9585, de 11 ago. 1988:
          “CAPITULO III – DOS PROJETOS EM ÁREAS ENVOLTÓRIAS
          Artigo 24 – Os pedidos de aprovação de projetos de obras, de demolição e outras formas de intervenção em áreas envoltórias, encaminhados pela Secretaria de Obras e Serviços Públicos à Secretaria Municipal de Cultura, serão analisados num prazo de 15 (quinze) dias pela Coordenadoria do Patrimônio Cultural e submetidos ao Colegiado na primeira oportunidade.”

          Esses pedidos aparentemente nunca foram apresentados ao CONDEPACC, o que não impediu a demolição dos bens.

          Nenhum levantamento fotográfico, Memorial Descritivo, planta ou alçado dessas edificações foi incorporado ao processo de tombamento da Fábrica de Tecidos antes de terem sido demolidas.
          [Volta]


      Nota 5

          Logo após o tombamento da Fábrica de Tecidos o CONDEPACC publicou folheto em que a edificação foi ilustrada com foto [
      Foto 5], acompanhada do seguinte texto:
          “FÁBRICA DE TECIDOS ELÁSTICOS GODOY E VALBERT S/A
          Tombada pelo CONDEPACC, a fábrica, fundada em 1921, destinava-se a fabricar artigos de tecidos elásticos, mais especialmente elásticos para botinas e sapatos, que até então eram importados da Inglaterra a peso de ouro. O papel histórico dessa empresa à nível de desenvolvimento sócio-econômico da região na qual estava inserida é incontestável. O edifício é considerado um marco na história da industrialização e do progresso de Campinas, do Brasil e da América Latina”.

          Fonte: “PREFEITURA de Campinas, 1995. CONDEPACC: Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas. Campinas, folheto desdobrável, [12p.], il.”.
          [Volta]


      Nota 6

          Os documentos constantes do processo de tombamento da Fábrica de Tecidos Elásticos Godoy Valbert não são numerados, como deveriam ser.
          [
      Volta]



      Compare foto de c. 1995 da Fábrica com
      outra mais recente (1998) tomada do mesmo
      ângulo, ampliadas na mesma escala.



      © Todos os direitos autorais reservados pelo autor deste artigo, segundo a legislação em vigor.


      Referência bibliográfica desta página:

      PAIVA, Celso Lago, 1999. Descaracterização da antiga Fábrica de Tecidos Elásticos Godoy Valbert – Campinas SP – Brasil. Disponível na internet: http://www.geocities.com/RainForest/9468/fabrica.htm. 3 jan. 1999. Atualizada a 3 ago. 1999.


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        Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – ICOMOS/Brasil

        Lista de Informação do ICOMOS/ Brasil – LIIB

        Grupo de Estudos de História da Técnica – GEHT/UNICAMP

        Declaração do GEHT em defesa das construções e instalações utilitárias”

        Celso Lago Paiva: páginas sobre História da Técnica

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