Idealmente, esta história deveria ser lida imediatamente após se assistir a "Starship Down", como uma continuação direta à última cena do episódio. Entretanto, qualquer pessoa que tenha visto uma boa porção das primeira a terceira temporadas de Deep Space Nine tem informação suficiente para andar com as próprias pernas. Não há spoilers adiante.

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Até mesmo os Profetas

por João Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
28 de junho de 2004

           O Capitão Benjamin Sisko estava sentado na platéia de uma quadra de baseball holográfica. Usando o boné que Kasidy lhe dera, olhos protegidos do Sol artificial, ele olhava adiante e pensava.

           "Como posso fazê-la entender?"

           Naturalmente, esta não era a primeira vez em que ele se apanhava flutuando para este território não mapeado — como expressar o que sentia sobre ser o Emissário. Se fosse para o ser, de qualquer maneira. Afinal, a questão permanecia sem resposta: ele tinha permissão para desmontar as crenças dessa gente? E se Kira estivesse certa de algum modo? E se ele fosse algum tipo de Emissário?

           Não. De nenhum modo ele entraria nessa discussão novamente. Não havia conflito quanto a isso; ele era somente o bom e velho Benjamin L. Sisko, Capitão da Frota Estelar. Pai e viúvo. Líder de uma comunidade, talvez, e um cozinheiro razoável, isso com certeza. Mas certamente não o Emissário.

           No entanto, quem era ele para dizer que não? Essa opção não era sua. O povo de Bajor poderia escolher acreditar naquilo em que quisesse; e, se eles diziam que ele era o Emissário, nas suas próprias visões ele era, não importando o quanto declinasse disso.

           Isso deveria eliminar a culpa, não? quando, um dia, ele fosse revelado por tudo que era. Afinal, ele nunca enganara ninguém. Ele fora enviado aqui para realizar um trabalho, e isso era o que estava fazendo no melhor de sua capacidade. Isso é exatamente o que ele dissera ao Capitão Picard no primeiro dia de sua chegada à estação. Isso é o que dissera, ainda quando ele mesmo não acreditava na missão.

           Muitas coisas haviam mudado desde então. Após três anos, ele se sentia como se houvesse encontrado um novo significado para sua vida; isso ele admitia aos bajorianos. Ele se sentia em casa. A quadra à sua frente era prova disso. Era seu próprio ambiente tal como havia sido antes; tudo se encaixava. Não mais se agarrando ao passado, ele se havia tornado até mesmo capaz de amar novamente, e acordou para descobrir que se importava com essas pessoas, e que se importaria mesmo que não fosse bem-vindo entre elas.

           Obviamente, ele era mais do que bem-vindo; elas o tomaram quase como um deus. Quanto a isso, a vida na estação fornecia um certo escudo: se ele fosse viver na superfície, as pessoas poderiam vir pedindo todo tipo de pequenos favores, deixando de perseguir seus objetivos por seus próprios esforços. Qual seria a parte dele nisso? Ele não podia negar sua responsabilidade; estaria indo contra o próprio motivo que o trouxera a essa parte pouco conhecida da Galáxia: ajudar os bajorianos a se tornarem um povo orgulhoso novamente, capaz e disposto e vigoroso em sua cultura. O que, a propósito, era exatamente o conflito que acontecia aqui.

           Além disso, a moeda do isolamento não vinha sem seu outro lado, muito claro e perturbador: a estação havia-se transformado no monte Olimpo deles. Lá estava ele, recluso, ignorando suas disputas mesquinhas, pronto para ouvir e, às vezes, para ditar a justiça. Um estereótipo irônico.

           Mas Kira? Ela devia saber. Eles eram colegas. Eram mesmo (até onde ela lhe permitia) amigos. Decerto ela não marcharia atrás desse dogma de Emissário?

           Parecia que ele estivesse atado. Podia argumentar com alguns bajorianos, e podia fazê-los perceber seu ponto de vista. Mesmo assim, eles não se arredavam, apenas simpatizavam, quase com pena dele e amando-o ainda mais. Sentimentos gentis eram sempre apreciados, inclusive por serem tão raros em tempos ásperos, mas esse não é exatamente o tipo de amor em que ele mergulharia como uma escolha na vida. Ele sempre vira as pessoas como bastante iguais nesse sentido. Uma relação com um ser superior não existiria sem alguma medida de temor, e isso afasta o amor verdadeiro, independentemente de sua forma.

           Aliás, isso trazia uma nova e curiosa tintura ao assunto. Kira o temia? A guerrilheira, a guerreira, abrigaria ela alguma noção profunda, escondida, desse tipo distorcido?

           À medida em que o Sol sintético subia em um céu gerado por computador, a quadra de baseball esverdecia. Em desacordo com um cenário tão acolhedor, o cenho do Capitão Sisko tinha toda a razão para formar algumas rugas. Ora, ora, isso era ridículo. Ou era? Essas eram águas escuras e profundas de um conflito em que ele não se deleitaria. E, depois, ela nunca contaria. Todos têm seus limites. Ela se abriria somente até certo ponto, se bem que ninguém jamais soubera de alguma mentira sua, especialmente para ele. Especialmente para seu Emissário. Kira era sincera em todos os assuntos, e nunca fora de esconder suas crenças, suas verdadeiras emoções, ou de mostrar qualquer hesitação.

           Bem... não de mostrá-las. Talvez ela pudesse esconder alguma?

           Seguramente que não. Antes, a mulher explodiria. Rindo, dardejando, apontando. E, sem dúvida, ela sabia como não esconder o que quer que sentisse.

           Na verdade, considerada a força da crença dos bajorianos, ele podia muito bem desistir. Se Sisko simplesmente fizesse o que se esperava dele e se rendesse aos louvores, talvez estivesse sendo aguardado por sua porção de diversão nesta vida. Talvez ele realmente começasse a acreditar que fosse o Emissário.

           Ah, mas e aí? Um dia, ele acordaria e perceberia que seria apenas um homem mais velho, e um tolo, mentindo para si mesmo. E isso ele ainda não tinha feito, nem estava disposto a fazer. O que explicava não conseguir aceitar todas as orações em primeiro lugar.

           Pior ainda: um dia, alguém observaria que ele não fosse o verdadeiro Emissário, e ele estaria condenado. Sua farsa seria desmascarada em um piscar de olhos, e ele se desmancharia na brisa, sem mencionar tudo de que teria sido despido pelo caminho. Sua patente da Frota. Seus amigos. A Major Kira. Dax. Até Jake. Por isso é que ele não se podia permitir fazer o papel de Emissário, apesar de todas as opiniões contrárias. Mas ninguém precisava lembrá-lo disso.

           E se ele simplesmente se abrisse? Essa seria uma solução elegante. Cartas na mesa, ele poderia levar o tempo que desejasse nesta holotarde e derramar todas as suas contradições sobre sua querida amiga Major.

           Por outro lado, isso não seria justo com ela, seria? Em vez de uma, duas pessoas ficariam confusas. Mas quem poderia ter tanta certeza? Kira nunca procurara abrigar-se de uma revelação pessoal. De fato, várias vezes, ela fora a primeira a reconhecer e abraçar o que percebia como verdade sem olhar para trás. Depois de tudo dito e feito, era exatamente por isso que ele mais a prezava. Não havia necessidade de ter medo de despedaçar as fundações dela.

           Estava decidido. Ele simplesmente chegaria e a convenceria a sair da casca. Nenhum dilema moral poderia resistir ao diálogo dos dois. Sua compreensão clara, honesta até o âmago, um do outro. Isso é que era mais precioso em sua amizade.

           — Desculpe, Capitão. Estou atrasada?

           — Hmmm?

           Um sorriso radiante de expectativa. A cabeça dela estava bloqueando o Sol. Não, não exatamente. Ela brilhava mais do que ele. Por que ela precisava ser tão dedicadamente cheia de energia?

           Diabos.

           — Oh. Não. Sente-se, Major, você chegou na hora. O jogo já vai começar. Veja, é assim que funciona...

           Sem se desviar de sua resolução, o grande Capitão havia decidido. Ele iria conversar com ela em uma hora mais apropriada.

           Verdade. Iria sim.


No início de 2004, eu havia assistido a tudo das três primeiras temporadas de DS9 e, então, vi "Starship Down". Fiquei muito estimulado a pensar neste assunto de Emissário e em como Sisko se sentiria a respeito. Do modo como Kira põe no episódio, identifiquei-me fortemente com os pensamentos que os roteiristas provavelmente atribuíam a ele.

Daí essa história. A princípio, pensei nela como um diálogo entre Sisko e Kira. Então, dei-me conta de que Kira tinha pouco ou nada a dizer; era realmente um monólogo de Sisko. Uma inspiração adicional veio de um conto bem curto de Voyager que, certa vez, li nos arquivos ASC, onde temos um vislumbre do abandono e desespero de Janeway quando está sozinha à noite. No final do conto, nossa Capitão favorita adentra sua ponte de comando com escudos psicológicos levantados novamente, como em qualquer dia de trabalho. Este é meu cumprimento àquele Autor inspirador, a quem devidamente agradeço.


Essa história foi registrada no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegida pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicada originalmente em http://www.geocities.com/jpcursino/profetas.htm em 28 de junho de 2004. A reprodução só é franqueada a quem obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omissão da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é registrado.

Jornada nas Estrelas e tudo que vai dentro são marcas da Paramount Pictures, não pretendo violar normas nem direitos, esta página é só diversão, não há finalidade comercial, etc. Exculpantes onde exculpantes se aplicam. A Paramount é dona de tudo, os personagens são dela, mas nós, fãs, somos a alma e a vida.

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