por João Paulo Cursino P. Santos
A Enterprise foi capturada. Seus propulsores estão inertes no
interior de um cerrado campo de asteróides. Todas as tentativas de acioná-los só
fortalecem o campo de energia que, circundando a nave, consome seus reatores.
Mas o Capitão Picard não se entrega. Com um pequeno disparo dos
manobradores, ele põe a grande nave em movimento. Outros disparos corrigem o
curso, gradualmente afastando a nave do centro da armadilha. Durante um breve
vôo por inércia, o Capitão evita colisões com o auxílio dos manobradores, logo
deixando o nefasto campo neutralizador para trás.
Essa curta descrição do episódio "Booby Trap" retrata um dos usos que
Jornada nas Estrelas faz dos manobradores de que são dotadas
suas naves estelares. Neste ponto, pode-se perguntar: o que são manobradores?
Em Jornada, as naves estelares costumam empregar dois tipos de
propulsão. Para superarem a velocidade da luz, recorrem ao warp drive
(propulsão de dobra) por meio de seus warp engines (motores de dobra,
propulsores de dobra). Abaixo daquele limite, utilizam o impulse drive
(propulsão de impulso) acionando seus impulse engines (motores de
impulso, propulsores de impulso).
O propulsor de impulso é um reator de fusão nuclear que, alimentando-se
de hidrogênio, gera plasma (uma variedade de gás a alta temperatura). Esse plasma
sai por um bocal, gerando a força de reação que propele a nave conforme a Física
newtoniana dos foguetes criados até hoje. Embora a tecnologia para um tal reator
ainda não esteja disponível, ela é uma extensão natural da tecnologia de fusão
atual.
Ocorre que mesmo a propulsão de impulso funciona a velocidades altas
demais para algumas necessidades das naves estelares. A bibliografia trekker não é
explícita quanto à máxima velocidade a que habitualmente se trafega com ela, mas
dá razões para se estimar um quarto da velocidade da luz. A esse valor, vai-se à Lua
e volta-se em dez segundos. Ora, esse regime não é razoável quando o que se
deseja é apenas estacionar na doca, atracar a seção disco à seção de engenharia
ou atravessar um campo coalhado de asteróides. Nessas condições, o movimento
deve ser cuidadoso, delicado.
Para isso, as naves da Frota contam com pequenos motores distribuídos
pelo casco, chamados, em inglês, de thrusters. Cada thruster funciona
sob o mesmo princípio de um motor de impulso, mas em uma escala muito menor.
Em conseqüência, gera forças minúsculas que permitem partidas e paradas suaves.
Além disso, os thrusters podem direcionar a saída de plasma (e, com ela, a
força de reação) em uma variedade de ângulos, não necessariamente se alinhando
com o centro de massa da nave, o que permite que essa gire, mudando sua atitude.
A atitude é a orientação de um veículo no espaço; é a direção para onde está
apontado. Quando a Alferes Ro, pilotando a Enterprise em "Cause and
Effect", diz que "perderam o controle de altitude", na verdade isso se deve a
um lapso da dubladora: a nave, descontrolada, havia perdido o controle de
atitude.
Assim, quando vemos a Defiant girando no espaço durante um
combate, isso se deve à agilidade no acionamento dos thrusters, cujo
conjunto é denominado Sistema de Controle a Reação (Reaction Control
System, RCS). Em uma nota comparativa, é interessante observar que as
cápsulas Apollo e o ônibus espacial se valem de sistemas semelhantes para
manobrarem no espaço: na ausência de forças aerodinâmicas, pequenos foguetes
direcionam disparos que provocam os giros desejados. Também o Harrier, célebre
jato de combate britânico, utiliza um tal sistema para mudar sua atitude quando está
parado no ar — exceto que, no seu caso, os disparos são de ar comprimido
canalizado para o nariz, a cauda e as pontas das asas.
Diante desses princípios, vejamos como traduzir thruster para o
português. A palavra thrust costuma ser traduzida pelas publicações sobre
aviação — embora de forma imprópria — como empuxo, designando a força
de propulsão gerada pelos motores a reação (jatos e foguetes). Assim, por
longo tempo, as traduções de Jornada para a televisão brasileira usaram a
palavra propulsor para thruster.
Essa escolha revela uma compreensão limitada do papel dos
thrusters. Na verdade, a força que eles geram é diminuta, jamais suficiente
perante as necessidades de propulsão de qualquer nave estelar. Ademais, o RCS é
um sistema separado em relação à propulsão, como bem mostram os episódios
"Playing God" e "The Cloud". No primeiro, Dax e Arjin devem pilotar um Explorador
com extrema precisão no interior da fenda espacial. Com esse fim, desligam os
propulsores de impulso e acionam os thrusters, tanto para manobrar como
para gerar pequenos solavancos que não lhes dêem muita velocidade. Em "The
Cloud", a Voyager é impedida de usar seus propulsores de dobra e de
impulso, e a única forma de avançar é acionando os thrusters, que, mais
suaves, permitem aproximações lentas e acuradas.
Em ambos os casos, traduziu-se thrusters por propulsores
por falta de uma palavra mais adequada e porque o contexto permitia. Contudo,
também em ambos os casos, essa impropriedade causou uma contradição na
versão brasileira: se não podiam usar os "propulsores", como alternaram para
"propulsores"? Em "The Cloud", Janeway chega a dar ordens seguidas: desligar
impulse engines ("propulsores de impulso") e acionar thrusters
("propulsores"). Em inglês, faz todo o sentido, mas a tradução ficou prejudicada. Era
preciso encontrar um termo melhor para que isso não se repetisse.
A alternativa encontrada decorreu da função a que se prestam os
thrusters. Sua ação é fazer com que a nave manobre, donde
manobradores. Essa é a tradução atualmente em vigor, que se pode
observar em episódios a partir das terceiras temporadas de Deep Space Nine e Voyager. De certo modo, é um retorno a uma tradução que já havia sido usada, porém esquecida: em "Encounter at Farpoint", pode-se ouvir "jatos de manobra" na dublagem brasileira.
Em paralelo a isso, deve-se lembrar que a tradução é um processo
dinâmico. Quando feita para a televisão, exige síntese, coerência e sincronia labial
com os atores. Em "Relics", a Enterprise evita a colisão com uma estrela,
acionando os maneuvering thrusters (tal expressão foi uma redundância, já
que os thrusters se destinam a manobras). Diante da extensão de
maneuvering thrusters, a tradutora tinha que usar uma locução igualmente
longa que se encaixasse na bocada do ator. Naturalmente, manobradores de
manobra é um pleonasmo inaceitável. Portanto, recorreu-se um pouco ao
passado e a solução foram os propulsores de manobra. O resultado ficou um
pouco impreciso por não serem realmente propulsores, mas o "de manobra" mostra
sua aplicação restrita.
Dessa evolução um tanto tortuosa, depreende-se que o processo de
tradução não possa jamais se limitar à literalidade das palavras. Contexto é
fundamental, assim como a própria sonoridade. Também, o tradutor não pode
prender-se a uma escolha única, ainda quando tenha sido adotada como regra.
Porque regras admitem exceções.
Fico me lembrando de uma ex-colega que, quando soube que a equipe de
tradução utilizava transcrições dos episódios, sem precisar "tirá-los de ouvido",
declarou que "assim é fácil, é só ter um dicionário do lado"...
Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei
no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente em
http://www.geocities.com/jpcursino/manob.htm em 19 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem
obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a
reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página
de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com
omissão
da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra
do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é
registrado.
Jornada nas Estrelas e tudo que vai dentro são marcas da Paramount
Pictures, não pretendo violar normas nem direitos, esta página é só diversão, não há
finalidade comercial, etc.
jpcursino(arroba)yahoo.com
29 de maio de 2004