Versão brasileira: manobradores

por João Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
29 de maio de 2004

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          A Enterprise foi capturada. Seus propulsores estão inertes no interior de um cerrado campo de asteróides. Todas as tentativas de acioná-los só fortalecem o campo de energia que, circundando a nave, consome seus reatores.

          Mas o Capitão Picard não se entrega. Com um pequeno disparo dos manobradores, ele põe a grande nave em movimento. Outros disparos corrigem o curso, gradualmente afastando a nave do centro da armadilha. Durante um breve vôo por inércia, o Capitão evita colisões com o auxílio dos manobradores, logo deixando o nefasto campo neutralizador para trás.

          Essa curta descrição do episódio "Booby Trap" retrata um dos usos que Jornada nas Estrelas faz dos manobradores de que são dotadas suas naves estelares. Neste ponto, pode-se perguntar: o que são manobradores?

          Em Jornada, as naves estelares costumam empregar dois tipos de propulsão. Para superarem a velocidade da luz, recorrem ao warp drive (propulsão de dobra) por meio de seus warp engines (motores de dobra, propulsores de dobra). Abaixo daquele limite, utilizam o impulse drive (propulsão de impulso) acionando seus impulse engines (motores de impulso, propulsores de impulso).

          O propulsor de impulso é um reator de fusão nuclear que, alimentando-se de hidrogênio, gera plasma (uma variedade de gás a alta temperatura). Esse plasma sai por um bocal, gerando a força de reação que propele a nave conforme a Física newtoniana dos foguetes criados até hoje. Embora a tecnologia para um tal reator ainda não esteja disponível, ela é uma extensão natural da tecnologia de fusão atual.

          Ocorre que mesmo a propulsão de impulso funciona a velocidades altas demais para algumas necessidades das naves estelares. A bibliografia trekker não é explícita quanto à máxima velocidade a que habitualmente se trafega com ela, mas dá razões para se estimar um quarto da velocidade da luz. A esse valor, vai-se à Lua e volta-se em dez segundos. Ora, esse regime não é razoável quando o que se deseja é apenas estacionar na doca, atracar a seção disco à seção de engenharia ou atravessar um campo coalhado de asteróides. Nessas condições, o movimento deve ser cuidadoso, delicado.

          Para isso, as naves da Frota contam com pequenos motores distribuídos pelo casco, chamados, em inglês, de thrusters. Cada thruster funciona sob o mesmo princípio de um motor de impulso, mas em uma escala muito menor. Em conseqüência, gera forças minúsculas que permitem partidas e paradas suaves. Além disso, os thrusters podem direcionar a saída de plasma (e, com ela, a força de reação) em uma variedade de ângulos, não necessariamente se alinhando com o centro de massa da nave, o que permite que essa gire, mudando sua atitude. A atitude é a orientação de um veículo no espaço; é a direção para onde está apontado. Quando a Alferes Ro, pilotando a Enterprise em "Cause and Effect", diz que "perderam o controle de altitude", na verdade isso se deve a um lapso da dubladora: a nave, descontrolada, havia perdido o controle de atitude.

          Assim, quando vemos a Defiant girando no espaço durante um combate, isso se deve à agilidade no acionamento dos thrusters, cujo conjunto é denominado Sistema de Controle a Reação (Reaction Control System, RCS). Em uma nota comparativa, é interessante observar que as cápsulas Apollo e o ônibus espacial se valem de sistemas semelhantes para manobrarem no espaço: na ausência de forças aerodinâmicas, pequenos foguetes direcionam disparos que provocam os giros desejados. Também o Harrier, célebre jato de combate britânico, utiliza um tal sistema para mudar sua atitude quando está parado no ar — exceto que, no seu caso, os disparos são de ar comprimido canalizado para o nariz, a cauda e as pontas das asas.

          Diante desses princípios, vejamos como traduzir thruster para o português. A palavra thrust costuma ser traduzida pelas publicações sobre aviação — embora de forma imprópria — como empuxo, designando a força de propulsão gerada pelos motores a reação (jatos e foguetes). Assim, por longo tempo, as traduções de Jornada para a televisão brasileira usaram a palavra propulsor para thruster.

          Essa escolha revela uma compreensão limitada do papel dos thrusters. Na verdade, a força que eles geram é diminuta, jamais suficiente perante as necessidades de propulsão de qualquer nave estelar. Ademais, o RCS é um sistema separado em relação à propulsão, como bem mostram os episódios "Playing God" e "The Cloud". No primeiro, Dax e Arjin devem pilotar um Explorador com extrema precisão no interior da fenda espacial. Com esse fim, desligam os propulsores de impulso e acionam os thrusters, tanto para manobrar como para gerar pequenos solavancos que não lhes dêem muita velocidade. Em "The Cloud", a Voyager é impedida de usar seus propulsores de dobra e de impulso, e a única forma de avançar é acionando os thrusters, que, mais suaves, permitem aproximações lentas e acuradas.

          Em ambos os casos, traduziu-se thrusters por propulsores por falta de uma palavra mais adequada e porque o contexto permitia. Contudo, também em ambos os casos, essa impropriedade causou uma contradição na versão brasileira: se não podiam usar os "propulsores", como alternaram para "propulsores"? Em "The Cloud", Janeway chega a dar ordens seguidas: desligar impulse engines ("propulsores de impulso") e acionar thrusters ("propulsores"). Em inglês, faz todo o sentido, mas a tradução ficou prejudicada. Era preciso encontrar um termo melhor para que isso não se repetisse.

          A alternativa encontrada decorreu da função a que se prestam os thrusters. Sua ação é fazer com que a nave manobre, donde manobradores. Essa é a tradução atualmente em vigor, que se pode observar em episódios a partir das terceiras temporadas de Deep Space Nine e Voyager. De certo modo, é um retorno a uma tradução que já havia sido usada, porém esquecida: em "Encounter at Farpoint", pode-se ouvir "jatos de manobra" na dublagem brasileira.

          Em paralelo a isso, deve-se lembrar que a tradução é um processo dinâmico. Quando feita para a televisão, exige síntese, coerência e sincronia labial com os atores. Em "Relics", a Enterprise evita a colisão com uma estrela, acionando os maneuvering thrusters (tal expressão foi uma redundância, já que os thrusters se destinam a manobras). Diante da extensão de maneuvering thrusters, a tradutora tinha que usar uma locução igualmente longa que se encaixasse na bocada do ator. Naturalmente, manobradores de manobra é um pleonasmo inaceitável. Portanto, recorreu-se um pouco ao passado e a solução foram os propulsores de manobra. O resultado ficou um pouco impreciso por não serem realmente propulsores, mas o "de manobra" mostra sua aplicação restrita.

          Dessa evolução um tanto tortuosa, depreende-se que o processo de tradução não possa jamais se limitar à literalidade das palavras. Contexto é fundamental, assim como a própria sonoridade. Também, o tradutor não pode prender-se a uma escolha única, ainda quando tenha sido adotada como regra. Porque regras admitem exceções.

          Fico me lembrando de uma ex-colega que, quando soube que a equipe de tradução utilizava transcrições dos episódios, sem precisar "tirá-los de ouvido", declarou que "assim é fácil, é só ter um dicionário do lado"...


João Paulo Cursino é engenheiro mecânico e o consultor para termos militares e técnicos nas traduções das séries Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager para a televisão brasileira.

Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente em http://www.geocities.com/jpcursino/manob.htm em 19 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omissão da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é registrado.

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