Versão brasileira: Capitão Janeway

por João Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
29 de maio de 2004

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          Certamente o Leitor já assistiu à versão de Jornada nas Estrelas: Voyager dublada no Brasil e reparou que a personagem no comando da nave é chamada de "Capitão Janeway". Sendo a personagem uma mulher, é possível que o Leitor tenha estranhado o uso de "Capitão" em lugar de "Capitã". O propósito deste artigo é lançar uma luz sobre as entranhas do processo de tradução, percorrendo os caminhos que levam a decisões como essa.

          Em primeiro lugar, permita o Leitor uma digressão: é preciso entender o conceito de separação entre posto e pessoa. Na hierarquia militar, as pessoas ocupam postos (os oficiais) ou graduações (as praças). Tenente, Major, Coronel são postos, enquanto Soldado, Cabo, Sargento são graduações. Nas Forças Armadas brasileiras, um militar não "é" seu posto ou graduação; ele apenas o "ocupa".

          Tomemos, por exemplo, um Primeiro-Tenente. Aquela pessoa não "é" Primeiro-Tenente; o posto de Primeiro-Tenente existe independentemente daquela pessoa, que o "preenche". É como se o posto fosse um "manto vazio onde a pessoa entra" e ele passasse a revesti-la. Quando a pessoa que chamamos de Tenente é promovida a Capitão, ela, na verdade, "sai do manto de Primeiro-Tenente" e "entra no manto de Capitão". O que se procura mostrar aqui é a distinção entre o posto e a pessoa que o ocupa; são duas entidades separadas.

          Isso é evidenciado pelo Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, que, em sua segunda edição, define o seguinte:

Capitão. (...) S.m. 1. V. hierarquia militar. 2. Militar que detém o posto de capitão.

          Observe o Leitor: o militar "detém" o posto, que, embora o acompanhe, é um ente à parte. Mais que isso, vejamos como o Estatuto dos Militares (Lei no 6.880, de 9 de dezembro de 1980) define hierarquia:

Art 14 (...) § 1o - A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes (...).

          Finalmente, o Regulamento de Continências, Honras, Sinais de Respeito e Cerimonial Militar das Forças Armadas (Decreto no 88.513, de 13 de julho de 1983) acrescenta:

Art 14 (...) § 1o - A continência é impessoal; visa a autoridade e não a pessoa.

          Ou seja: quando um Soldado presta continência a um superior, ele faz isso para a autoridade que tem diante de si; não para a pessoa que a conduz.

          Muito bem. Conforme visto no Aurélio, o posto de Capitão tem gênero masculino. Note-se que o posto é masculino, sem que seu ocupante necessariamente deva ser também; pois restou demonstrado que são duas entidades distintas. Já a palavra militar, vista no mesmo dicionário, é comum de dois gêneros. Portanto, é possível que "militar que detém o posto de capitão" seja uma mulher militar.

          Em 1981, a Marinha do Brasil passou a rotineiramente incorporar mulheres a suas fileiras, sendo seguida pela Força Aérea e pelo Exército na mesma década. Subitamente, era preciso definir: deveriam os postos e graduações ser levados ao feminino? Caberia dizermos "a Sargenta", "a Capitã"?

          Nunca a teoria exposta acima fora relevante, pois, até então, somente homens haviam sido militares no Brasil (exceção feita à célebre Major Elza Cansanção e a suas colegas enfermeiras na II Guerra Mundial). Inicialmente, houve dúvidas, naturais diante de uma novidade. Entretanto, a percepção daqueles conceitos básicos logo estabeleceu o costume hoje praticado nas Forças Armadas: mantém-se o posto ou graduação no masculino, independentemente do sexo da pessoa referida. Para se indicar uma mulher, recorre-se à concordância ideológica. Ou seja: as demais palavras na frase seguirão a idéia do feminino, fazendo uma silepse de gênero. Portanto, a prática corrente é "a Cabo", "a Primeiro-Sargento", "a Segundo-Tenente", "a Capitão". Hoje em dia, ao menos para o Exército, essa forma é mesmo obrigatória, e a silepse já está consagrada.

          Isto é a língua portuguesa sendo construída. De forma espontânea e gradual, o jargão está sendo adotado dentro das instituições mais legítimas para sua criação. Quando se descobre uma doença, ninguém melhor do que os médicos para definir seu nome em português; quando se descobre um fenômeno espacial, ninguém melhor do que os astrônomos. Da mesma forma, é entre os militares que surge o vernáculo que lhes é próprio; são eles que o vivem, praticam. A questão torna-se pragmática: pela freqüência no uso e conseqüente disseminação para toda a sociedade, os postos no masculino acabam por se tornar a forma correta em português.

          Chamo a atenção para um pormenor: o fato de os postos estarem sempre no masculino não impede que os cargos (atribuições desempenhadas pelas pessoas) sejam flexionados ao feminino. Posto não se exerce; não há funções a desempenhar associadas a ele. A fim de se fazer útil, o militar precisa ocupar um cargo que o legitimará ao desempenho de certas atividades, e tais cargos não seguem os princípios expostos acima. Assim, a Tenente poderá ser Médica-de-Dia; a Capitão poderá ser Tesoureira; a General poderá ser Diretora. Médico e diretor, entre outros exemplos, sempre admitiram flexão, e o meio militar reconhece isso.

          Então, vejamos a questão proposta por Voyager. É preciso lembrar que, em inglês, a expressão Captain Janeway não é precedida do artigo the. Ainda que o fosse, os artigos do inglês não têm gênero; nem o têm os postos. Na língua original, simplesmente não é preciso pensar em nada disto, enquanto nós adotamos "o Capitão" ou "a Capitão", sempre com artigo. Como traduzir para a forma do português?

          Quando a série estreou, em 1995, não havia definições convictas sobre este assunto. Nas edições 20 e 21 do fanzine JETCOM, optei pelo radicalismo, mantendo "o Capitão Janeway". Posteriormente, percebi que tal grafia prendia a pessoa ao posto, fugindo à idéia da separação; indevidamente, Janeway tornava-se mero complemento para Capitão. Ademais, é preciso encontrar um modo de indicar que se trata de uma mulher, e o artigo feminino é o instrumento perfeito para isso.

          Diante do exposto anteriormente, a tradução correta é evidente. Assim, quando surgiu a oportunidade de se traduzir Voyager para a televisão brasileira, o ponto de vista atual já estava bem assentado, com o posto de Janeway permanecendo no masculino mas precedido de "a". Trazidos os argumentos à equipe de tradução, todos concordaram em prosseguir na ficção com aquilo que nossos militares vêm fazendo há mais de vinte anos na vida real. Dessa forma, a equipe de tradução não está inovando, mas acompanhando o precedente mais seguro na evolução de nossa língua.

          Aquele radicalismo tornou a manifestar-se na tradução do episódio da NG "The Best of Both Worlds" feita em 1997, quando o Almirante Hanson diz que a Tenente-Comandante Shelby será uma excelente Primeiro Oficial (que é um cargo e, como tal, admite flexão). Isso foi corrigido no episódio de DS9 "The Jem'Hadar", traduzido em 2000, onde a Major Kira se apresenta como Primeira Oficial da estação.

          Senhor(a) Leitor(a), eu lhe entrego a Capitão Janeway.


João Paulo Cursino foi oficial do Exército até 2003 e é o consultor para termos militares e técnicos nas traduções das séries Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager para a televisão brasileira.

Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente no Portal Jornada nas Estrelas Brasil (http://www.jornadanasestrelas.net) em 6 de agosto de 2002 sob específica permissão do autor e republicado em http://www.geocities.com/jpcursino/janeway.htm em 12 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omissão da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é registrado.

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