por João Paulo Cursino
P. Santos
Ao início da terceira temporada de Deep Space
Nine, o episódio "The Search, Part I" teve de ser traduzido para dublagem,
motivando a equipe de tradutoras a fazer-me uma consulta. Naquele episódio, o
Comandante Sisko declara que a nave estelar Defiant possui características
inovadoras, entre elas ablative armor. O pessoal queria saber como traduzir
essa expressão.
A tradução literal de ablative armor é
blindagem ablativa, mas podia ser que houvesse alguma versão diferente já
consagrada no jargão bélico em português. Fui à Internet, mas só encontrei páginas
sobre a Defiant e Deep Space Nine, todas em inglês. Então, procurei
dois professores meus, engenheiros militares especialistas em blindagens, para ver
se conheciam o material. Não só não conheciam como um deles também decidiu
procurar na Internet, deparando-se com as mesmas páginas que eu encontrara. Só
que ele nunca ouvira falar no seriado... "Ué. O que é isto?", perguntou diante de uma
descrição treknológica da Defiant. "Nada não, professor, é ficção científica. O
senhor acabou de me confirmar que essa tal blindagem não existe. Mas obrigado..."
Resolvi investigar como funcionava a tal blindagem,
procurando pelo termo ablative, e descobri que um material ablativo é
destruído com o uso. A ablação é um fenômeno mediante o qual um objeto recebe
calor de uma fonte e sublima-se, desfazendo-se e levando a energia térmica consigo
à medida em que a fonte continua agindo. Materiais com propriedades ablativas
podem ser gastos no processo de proteger outros materiais, sensíveis e caros,
contra um fluxo de calor indesejado.
Isso explicou-me por que a blindagem ablativa não
existe na vida real e por que meus professores nunca haviam ouvido falar dela: há
praticamente uma contradição com seu propósito. A blindagem faz parte do casco
da nave. Ao receber um tiro, seu material aquece-se, mas dissipa a energia ao levá-
la consigo, gradualmente se dispersando no espaço. A longo prazo, a tendência é
que a blindagem vá ficando mais fina e tenha de ser reposta. Na vida real, nenhum
veículo durável poderia usar uma tal blindagem, pois os custos de reposição seriam
proibitivos.
Casualmente, comentei a descoberta com um
professor de Termociências, que identificou o material que eu descrevia: "esse é o
escudo de ablação das cápsulas Apollo". O mestre lembrou-me que cada cápsula
entrava na atmosfera em altíssimas velocidades. A face exposta à trajetória (sua
base rombuda) sofria a violência de atrito com o ar e ondas de choque, recebendo
calor e sujeitando-se a temperaturas da ordem de milhares de kelvins. A tendência
natural seria que um grande fluxo de calor passasse da base para dentro da
cápsula. Para proteção dos astronautas, essa base era feita de um material que se
consumia, levando a energia térmica consigo de modo a não permitir sua dissipação
para dentro da cápsula. Em decorrência disso, esse revestimento chegava à
superfície da Terra com uma espessura menor do que no início da reentrada e, por
essa razão, é chamado de escudo de ablação. O mesmo processo acontece
com as placas de cerâmica do nariz do ônibus espacial, que devem ser trocadas
após algumas missões.
Pus-me a pensar. Escudos de ablação. Ora, as
naves de Jornada nas Estrelas sempre tiveram escudos; o público está
habituado com isso. Porém, o funcionamento é diferente: neste universo ficcional, os
"escudos" não são um objeto físico, mas uma projeção gravitacional que forma uma
barreira imaginária em torno da nave, impedindo que a energia destrutiva a atinja. Já
os "escudos de ablação" são uma camada de matéria sobre o casco, feita para
receber os tiros de modo mais grosseiro. A rigor, o original armor vem no
singular, pois há uma camada única revestindo toda a nave, e sua tradução literal
teria sido blindagem mesmo. Em contraste, os escudos habituais são ditos
shields, termo que sempre pareceu supor uma pluralidade de projeções.
Portanto, não se trata de mera variação; os "escudos de ablação" realmente são um
conceito novo.
Apesar da diferença, havia vantagem em poder usar
uma palavra conhecida: todo o mundo entenderia os "escudos" como parte do
familiar jargão de Jornada, e a versão dublada fluiria com facilidade. Assim foi
que a audiência ouviu "escudos de ablação" em "The Search, Part I" e "Past Tense,
Part I".
Entretanto, chegou o dia em que se teve de traduzir
a quarta temporada de DS9. A ablative armor seria mencionada em "The Way
of the Warrior, Part II" e em "Paradise Lost". Surgiu um problema quando, no
primeiro, as palavras armor e shields entraram na mesma frase: "even
with the Defiant's new armor, I don't think we can last that long with our
shields down" ("mesmo com a nova armor, não creio que vamos agüentar
tanto tempo com os escudos abaixados"). E agora? Mantendo escudos nos
dois casos ("mesmo com os novos escudos, não creio que vamos agüentar com os
escudos abaixados"), o texto ficaria incoerente.
Na mesma seqüência, o Chefe O'Brien diz: "armor
has failed" ("armor cedeu"), mas, pouco depois, Sisko manda "levantar
escudos". Mais uma vez, com o duplo emprego de escudos, haveria um
contra-senso: como levantar o que já não se tem?
Uma alternativa seria traduzir armor como
blindagem somente nessa passagem. Contudo, isso iria contra a intenção da
equipe de sempre usar a mesma palavra para a mesma coisa. Também percebemos
um risco adiante: a freqüência dos combates em DS9 aumenta a partir do início da
quarta temporada. Se as restantes fossem trazidas ao Brasil um dia, era muito
provável que essa dualidade tivesse de ocorrer novamente, o que agravaria a
contradição.
Caso passássemos a usar blindagem
ablativa a partir de agora, os novos episódios destoariam dos da terceira
temporada, o que tornava esta solução inicialmente desconfortável. Entretanto, era
muito provável que ela voltasse a ser usada, o que faria a preferência pender
definitivamente para a nova tradução. Logo neste episódio, o número de menções à
ablative armor era maior do que em toda a terceira temporada. Além do mais,
já fazia três anos que a primeira tradução havia sido usada; as pessoas aprendem,
seu entendimento evolui, e não se deve evitar aquilo que se considera mais correto.
Deveria encarar-se a chegada de uma nova temporada como uma oportunidade
para aprimoramento.
Assim, optamos pela saída mais incômoda em face
do passado, porém mais promissora para o futuro. O Leitor poderá identificar as
menções à blindagem ablativa na certeza de se referirem aos mesmos antigos
"escudos de ablação". E aproveitar para assistir à quarta temporada de Deep
Space Nine, que tem episódios ótimos...
Este artigo foi registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional sob o número 320.480, livro 586, folha 140, está protegido pela lei
no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente em
http://www.geocities.com/jpcursino/ablat.htm em 26 de maio de 2004. A reprodução só é franqueada a quem
obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a
reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página
de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com
omissão
da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra
do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é
registrado.
Jornada nas Estrelas e tudo que vai dentro são marcas da Paramount
Pictures, não pretendo violar normas nem direitos, esta página é só diversão, não há
finalidade comercial, etc.
jpcursino(arroba)yahoo.com
29 de maio de 2004