Resenha: Showcase Presents: Green Lantern v. 1

por João Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
15/12/2008

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Um dos personagens mais relevantes da DC Comics é o Lanterna Verde. Na verdade, esse não é exatamente um nome, mas um cargo ocupado por mais de um personagem. Nas aventuras do Lanterna Verde publicadas de 1959 a 1994 e a partir de 2006, o personagem é Hal Jordan, e dele tratam as histórias que vou comentar aqui.

O cenário é o seguinte: no planeta Oa, existe uma raça de homenzinhos muito velhos, sábios detentores de uma tecnologia tão avançada que, para nós, parece mágica. Esses homenzinhos, os Guardiães do Universo, criaram a Tropa dos Lanternas Verdes, composta de seres recrutados em diversos planetas e encarregados de manter a paz nos respectivos setores do espaço. O personagem que dá título à revista é o Lanterna Verde recrutado na Terra.

À medida em que os anos passam e vou lendo quadrinhos, tenho me interessado cada vez mais pela técnica e pela estrutura narrativa, aprendendo como se desenvolvem roteiros. Então, estou lendo Showcase Presents: Green Lantern v. 1, que traz as primeiras histórias dedicadas somente ao Lanterna, não tanto por diversão quanto para aprender sobre a formulação do conceito e sobre a mentalidade com que ele surgiu. A coletânea foi publicada pela DC Comics em 2005 e abrange Showcase #22-24 e Green Lantern #1-17, todas do período 1959-1962, escritas por John Broome e desenhadas por Gil Kane. Ficam de fora The Brave and the Bold #28-30, as primeiras edições de Justice League of America e algumas participações do herói em revistas de outros personagens. Todas essas são edições típicas da Era de Prata dos quadrinhos (1956-1970). Qualquer fonte da Internet vai lhe dizer que esse período se caracterizou pela ingenuidade e pela introdução de elementos de ficção científica.

A ingenuidade é flagrante. Regra geral, são roteiros bem simplórios e totalmente maniqueístas. Se você ler a produção de épocas posteriores, qual é o tratamento dado aos vilões ocasionais, aos monstros da semana? Quase sempre, são vítimas de algum mal-entendido, e seus atos de destruição costumam ser tentativas de contato. Cabe ao herói promover o diálogo, e todos (inclusive o monstro) terminam felizes. É o mesmo que se vê muito em Jornada nas Estrelas. Mas, na Era de Prata, em regra, o monstro da semana (neste caso, do mês) é simplesmente uma ameaça que se deve eliminar. É assim com os pterodáctilos venusianos (eu disse que as histórias eram fracas), com os zegors do ano 5700, com o dryg do planeta Calor, com os invasores de Xudar... etc. Constatada a existência do monstro, luta-se contra ele até a vitória, mas em nenhum momento se questionam suas motivações ou necessidades, nem se pergunta o que a vítima estava fazendo ali, no covil da fera, sem ter sido chamada. O monstro é mau, quem está sendo atacado nunca está errado, e ponto final.

Um exemplo disso está em Green Lantern #8 (outubro de 1961), onde os monstros-de-gila evoluíram em uma civilização secreta e revidam quando os arqueólogos vão invadir sua cidade subterrânea. Eu pensava que, em algum momento, o Lanterna Verde fosse descobrir que os lagartos estivessem apenas se defendendo e até resolver o problema que os estivesse afligindo. Nada disso: derrotados, foram confinados para sempre sob o solo do deserto.

Existe uma explicação para essa visão de mundo. A Era de Prata é fruto do modelo social com que os Estados Unidos saíram da II Guerra Mundial: vitoriosos, pujantes e otimistas. Era um modelo que conquistava o mundo e que, em um sentido pragmático, impunha-se pelos resultados.

Neste ponto, cabe lembrar que uma das funções dos quadrinhos pode ser, justamente, a de legitimadores de um padrão social. Conforme já escrevi noutro lugar, a Era de Prata foi um tempo em que somente crianças liam quadrinhos, de modo que eles eram um excelente veículo de enquadramento ideológico, adequados a mentes que aceitassem doutrinamentos sem questioná-los. Não é de espantar que, nos quadrinhos, as mulheres só mostrassem ousadia em matérias sem fundo sexual nem relação com o modelo familiar. Em assuntos de namoro, apareciam comportadinhas, sempre permitindo que o macho alfa tomasse a frente. No máximo, faziam-se de difíceis, volúveis como nas canções italianas, irracionais e crédulas, facilmente se deixando convencer por qualquer teatralidade de quem as quisesse conquistar. Pode-se ver um exemplo disso na abertura de Green Lantern #15 (setembro de 1962), onde, em mais uma tentativa de conquistar sua chefe Carol, Hal está levando-a para jantar fora. Veja os pensamentos de Carol:

"Esta estrada é tão tortuosa e estreita que poderia me deixar nervosa -- exceto que eu sei que posso ter total confiança nos reflexos de relâmpago de Hal! Não é à toa que ele é um grande piloto de testes! Não vou lhe pedir que diminua! Desafiar o perigo está nos ossos de Hal -- e ele não consegue deixar de correr! E não quero restringir seu estilo reclamando --"

Inacreditável, não é? Ela tem tanta auto-estima que prefere arriscar a própria vida a incomodá-lo. E que grande herói é esse que os Guardiães escolheram? Um sujeito que não está nem aí para a segurança na direção! No quadrinho seguinte, um jornal acaba cobrindo-lhe o rosto, mas ele tem reflexos rápidos e, enquanto gira o volante, tira a folha do rosto sem reduzir a velocidade.

"Ainda bem que dei uma boa olhada na curva logo antes de o jornal me acertar -- ou teria tido que usar meu anel energético bem na frente de Carol para nos salvar!"

Quer dizer: parar o veículo estava fora de cogitação!

Se isso acontecia às mulheres solteiras, as casadas, então, eram retratadas como meras figuras decorativas. Em tudo acompanhavam os maridos, tendo perdido a personalidade ao se casarem.

Da mesma forma, veja o tratamento dado ao mecânico de Hal Jordan, o esquimó Thomas Kalmaku ("esquimó" não: inuíte). Ele tem um nome, mas é mais chamado pelo apelido Pieface (Cara-de-Torta) ou, pior, apenas Pie. A título de qualificação, ele é freqüentemente mencionado como um greasemonkey, ou seja, macaco da graxa. Um leitor moderno pode se chocar com a naturalidade com que o certinho super-herói chama o mecânico pelo apelido e, mais ainda, com que o nativo o aceita. Mas os tempos eram outros, e temos que nos lembrar da mentalidade e do contexto em que as histórias foram escritas para entendermos o espírito com que se esperava que fossem lidas.

Minha descoberta agradável em Showcase Presents (não exatamente uma surpresa) foi a outra característica da Era de Prata: a introdução dos elementos de ficção científica. Veja bem, a revista não é uma aula de ciências, nem as histórias são scifi na melhor acepção do termo. Há apenas *elementos*. Além do mais, em alguma medida os quadrinhos de super-heróis já tinham alguma coisa de ficção científica desde 1938: veja que o Super-homem é um alienígena. Mas, com as aceleradas conquistas da técnica no pós-guerra, alguns conceitos vieram para o imaginário popular, entre eles a energia atômica e as viagens espaciais. Nos anos 50, abundaram os filmes de ficção científica barata onde estranhas radiações agigantavam animais ou davam bizarros poderes a astronautas acidentados. Assim também foi na revista do Lanterna Verde, onde emissores de mésons miniaturizam seus inventores; cápsulas espaciais desaparecidas geram monstros marinhos que emitem radiação infra-amarela; e meteoros radioativos aceleram a evolução da raça humana em 100.000 anos. Neste último caso, aliás, Showcase cometia o erro primário, mas muito comum, de extrapolar tendências evolutivas como inevitabilidades futuras.

Na Era de Ouro dos quadrinhos (1938-1955), os inimigos eram assaltantes de bancos ou espiões inimigos. Na Era de Prata, são invasores alienígenas ou cientistas renegados, e a ameaça está sempre ligada a conceitos tecnológicos da moda. Quando aparece alguma civilização avançada de outro planeta, o adjetivo que se usa é "supercientífica".

Nessas histórias, é primitiva a conexão à ficção científica. A imaginação dos Autores corre solta para criar poderes incríveis no monstro da semana, como os raios encolhedores que saltam dos olhos dos monstros-de-gila ou o tamanho colossal da criatura de ouro que surgiu da cápsula espacial submersa. Mas não se investiga a origem dos raios, não se encontra a cápsula desaparecida, nem se explica por que o monstro era tão grande e feito de ouro. Deve-se aceitar a ameaça pelo valor de face, como uma deslumbrante e inesperada conseqüência de a raça humana começar a flexionar seus músculos em novos e misteriosos domínios.

Há um terceiro aspecto da Era de Prata, e este me incomoda: a repetição de roteiros. Em Showcase #23 (dezembro de 1959), Hal é convocado pela bateria energética para salvar os homens primitivos de outro planeta contra os ataques de criaturas que ameaçam extingui-los. Resolvido o problema, eles agradecem e ele volta à Terra. Duas edições depois, em Green Lantern #1 (agosto de 1960), desenvolve-se a mesma situação, mudando apenas o nome do planeta e a criatura. Em outro exemplo de GL #1, os Guardiães do Universo convocam Hal a uma audiência em Oa, mas depois sua memória é apagada. Mais adiante, em GL #8, os líderes do futuro apelam para Hal resolver seu problema e, ao devolvê-lo ao presente, apagam sua memória.

Para finalizar a apreciação geral deste volume, chamo sua atenção para uma inconsistência. Até GL #1, os Guardiães do Universo não haviam aparecido, nem Hal sabia de sua existência. Após a audiência e seu apagamento, ele continua "nunca tendo ouvido falar" dos Guardiães. Mesmo assim, em GL #3, ele usa a interjeição "Great Guardians!" e "graças aos Guardiães!".



Green Lantern #6 (junho de 1961)

Aqui se apresenta Tomar-Re, o Lanterna Verde de Xudar, primeiro LV alienígena a aparecer após a origem do Lanterna da Terra. Tomar traz a seu colega um pouco de conhecimento sobre os enigmáticos Guardiães:

"Os Guardiães do Universo habitam um mundo em algum lugar do Cosmo -- ninguém sabe onde! E eles nos contatam apenas indiretamente -- através da bateria energética!"

"Sim, isso já aconteceu comigo! Uma ou duas vezes, recebi instruções através de minha bateria energética para socorrer algum planeta em perigo! Mas eu nunca soube de onde vinham as mensagens -- até agora!"

"Vinham dos Guardiães! Os Guardiães têm meios misteriosos de obter informação -- de qualquer lugar no espaço! Eles devem possuir conhecimento que faz nossa Ciência -- a sua e a minha -- parecer brincadeira de criança por comparação!"

"Há mais alguma coisa que você possa me contar sobre eles?"

"Somente isto... Eles me permitiram saber a localização de vários outros Lanternas Verdes -- sem dúvida porque meu setor do espaço é tão grande que eu poderia, algum dia, precisar de ajuda para controlá-lo -- tal como precisei de você desta vez!"

É interessante notar que, através das décadas, os Guardiães mantiveram sua aura de poder distante e sua preferência pela privacidade, conforme o conceito original. Entretanto, a DC logo abandonou a noção de ninguém saber onde ficava seu planeta. De fato, na edição 9, o Lanterna Verde chega a Oa sem nenhuma explicação de como aprendeu o caminho, e ele e seus companheiros carregam seus anéis na Bateria Central pela primeira vez. Dali por diante, esse conhecimento passa a ser um dado no universo DC, e o contato entre Lanternas e Guardiães acontece diretamente.

O outro atrativo de GL #6 é o núcleo de ficção científica da história, cujo conteúdo supera o que se vê nas demais. No planeta Aku, os habitantes descobriram como atingir a imortalidade: foram dormir eternamente nos subterrâneos, enquanto máquinas geram suas projeções mentais, que conduzem suas vidas como se fossem as próprias pessoas. Um dia, as imagens se rebelam e tentam matar as pessoas para poderem fazer o que quiserem -- e não as vontades dos dorminhocos.

Isso não parece Jornada nas Estrelas? Olha só: a Enterprise chega para explorar o planeta e o grupo de descida é atacado. Após a morte de um ou dois redshirts, o Capitão Kirk luta contra as imagens rebeldes e, no duelo final dentro da câmara-mestra, dialoga com seu líder. Fica demonstrado o direito das imagens a uma vida própria, justificando a rebelião. Então, os habitantes são acordados, forçados a viver sem intermediação, e o Capitão mostra-lhes o valor de saborear sensações diretamente. De um lado, a história argumentaria pelo direito à liberdade, imanente a todas as formas de vida conscientes. De outro, viria com a moral de que não devemos fugir da realidade. Também nos quadrinhos, hoje a história certamente seria assim.

Infelizmente, o Lanterna Verde não cuidou de nada disso. Foi lá, derrotou as imagens, elas se renderam, e os habitantes continuaram dormindo. É frustrante. Mas talvez algo ainda salve a história. No final, o Lanterna descobre que o curto-circuito na máquina havia sido causado por um casal de amantes, cujos padrões de pensamento se entrelaçaram. Eles decidem viver fisicamente, no meio das imagens, ficando a sugestão de que, no futuro, uma nova raça de pessoas reais será gerada na superfície do planeta.



Green Lantern #7 (agosto de 1961)

Como de hábito nas primeiras edições de Green Lantern, esta traz duas histórias. A primeira introduz Sinestro e é a segunda história com os Guardiães do Universo, marcando uma nova complexidade no título. Quando um Guardião conta a origem de Sinestro, o Lanterna Verde renegado, ele explica a motivação vingativa desse personagem. Após a Crise nas Infinitas Terras (1985), essa origem foi adaptada para uma versão mais politicamente correta, mas, em ambas, Sinestro é cegado pelo poder e se transforma em ditador de seu planeta, Korugar. Em 1961, o motivo era apenas egoísmo; em 1990, uma sua obsessão por ordem se distorce em ditadura.

Sinestro é o mais importante antagonista de longo prazo na mitologia do Lanterna Verde. Os primeiros inimigos recorrentes que haviam aparecido (os belicistas de Qward) eram apenas carinhas insossos que estavam sempre armando para pegar o Lanterna, como nos planos infalíveis do Cebolinha. Já Sinestro tem um rosto e uma agenda, é mais substancial, mais inteligente e conhecedor das leis e fraquezas dos portadores de anéis energéticos. Aliás, as edições 7, 9 e 11 mostram Lanternas de vários planetas, mas ainda não se fala em uma Tropa. Em princípio, cada um atua isoladamente.

A segunda história de GL #7 pode ser considerada ridícula ao ponto de farsesca. Mas creio (ou espero) que a intenção tenha sido mesmo de experimentar com a comédia. Começa com Hal sonhando que, com o poder do anel, transforma seu mecânico em pássaro. Acontece que, ainda que Hal esteja dormindo, o anel obedece e realmente transforma o pobre Tom Kalmaku em uma gaivota, que desperta perguntando, "o que acontece? O que acontece?" De manhã, Tom sente coceira como se tivesse penas e, ao ver-se no espelho, leva um susto. Òbviamente, a conversão é desfeita ao fim da história, mas Tom fica sem saber sua causa.




Nos quadrinhos dos anos 50 e 60, Ordem e Justiça eram conceitos que se confundiam. Era um tempo em que a simplicidade unilateral das histórias alimentava a supremacia dos homens adultos brancos. Nos anos 70 e 80, passados os conflitos raciais, o feminismo, Woodstock e o Vietnã, o meio cultural passou a questionar seus modelos, o que é marcado justamente pelas histórias do Lanterna escritas por Dennis O'Neil e publicadas a partir de 1970. Foi aí que teve início a Era de Bronze dos Quadrinhos, quando Hal Jordan se insurgiu contra os Guardiães porque, privilegiando a Ordem, prejudicavam a Justiça. Chamaram a atenção dos leitores as sugestões de que o ponto de vista dominante nem sempre mostrasse a verdade e de que os fatos pudessem ter mais de uma versão. Mas isso é matéria para outra resenha.


Este artigo está protegido pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente em http://www.geocities.com/jpcursino/ScPGLv1.htm em 15 de dezembro de 2008. A reprodução só é franqueada a quem obtiver minha permissão expressa, específica e nas condições ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodução, até que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na página de uma organização com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omissão da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insistência, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu não podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo é registrado.

As capas acima são copyright DC Comics e estão reproduzidas apenas para fins de resenha e referência do Leitor, conforme autorizado pela lei no 9.610, art 46, III e VIII.

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