1984: uma resenha pessoal

por Jo�o Paulo Cursino P. Santos
jpcursino(arroba)yahoo.com
24/11/2008 -- melhorado em 15/12/2008

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Conforme j� comentei, estou lendo 1984, de George Orwell. Imagino que teria sido prematuro l�-lo antes, porque ele denuncia todo o sistema social opressivo em que vivemos hoje de um modo como s� recentemente venho mesmo observando. 1984, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e Admir�vel mundo novo, de Aldous Huxley, comp�em um cl�ssico trio de distopias que ressaltam o massacre do indiv�duo em estruturas totalitarit�rias, c�nicas e utilitaristas como podiam ser percebidas mesmo antes da II Guerra Mundial.

A partir da Revolu��o Industrial, a ascens�o da m�quina levou a este nosso sistema, onde cada homem se reduz voluntariamente a sua fun��o econ�mica, tornando-se mero insumo � produ��o. Em 1984, a sociedade � dominada pelo Partido, uma organiza��o onipresente que n�o tolera qualquer conduta que se desvie do �bvio praticado por todos. As pessoas s�o conduzidas a comportamentos mec�nicos conformes, e seus menores gestos est�o sendo observados, de modo que s� podem fazer aquilo que delas se espera e nada al�m. O protagonista, Winston Smith, tem um emprego burocr�tico de uma rotina tediosa entre casa e trabalho. Para seu desespero, a maioria das pessoas vive em apatia, aderindo voluntariamente �s convoca��es do Partido e acreditando em toda palavra oficial. A principal motiva��o de Winston � recuperar algum contato com o passado para, por compara��o, conhecer a realidade e finalmente entender algo sobre o mundo. Isso lhe � negado na medida em que o Partido constantemente reescreve todo registro hist�rico, condenando a popula��o a um presente permanente de verdades absolutas. De tudo, a mais massacrante pr�tica do Partido (e todas s�o massacrantes) � o apagamento da Hist�ria.

Um dia, Winston se apaixona pela jovem Julia, que, para seu espanto, odeia e resiste ao Partido, nos seguintes termos.

"A vida, para ela, era bem simples. Voc� queria se divertir; 'eles', significando o Partido, queriam impedi-lo; voc� quebrava as regras da melhor forma poss�vel. Ela parecia pensar que fosse igualmente natural que 'eles' quisessem roub�-lo de seus prazeres e que voc� quisesse evitar ser apanhado. Ela odiava o Partido, (...) mas n�o lhe fazia qualquer cr�tica geral. Exceto onde tocasse sua pr�pria vida, ela n�o se interessava pela doutrina do Partido. (...) Qualquer tipo de revolta organizada contra o Partido, que estava destinada a fracassar, parecia-lhe burra. O inteligente era quebrar as regras e continuar vivo. Ele se perguntava vagamente quantos outros como ela poderia haver na gera��o mais jovem -- pessoas que haviam crescido no mundo da Revolu��o, nada mais conhecendo, aceitando o Partido como algo inalter�vel, como o c�u, n�o se rebelando contra sua autoridade mas simplesmente fugindo dela, como um coelho escapa de um c�o. (...)

"Freq�entemente, ela estava pronta a aceitar a mitologia oficial, simplesmente porque a diferen�a entre verdade e falsidade n�o lhe parecia importante. Por exemplo, ela acreditava, tendo aprendido na escola, que o Partido havia inventado o avi�o. (...) E, quando ele lhe contou que os avi�es j� existiam antes de ele nascer, e muito antes da Revolu��o, o fato pareceu-lhe totalmente desinteressante. Afinal, que importava quem havia inventado o avi�o? Foi um choque maior para ele quando descobriu, de um coment�rio fortuito, que ela n�o se lembrava de que, quatro anos atr�s, a Oceania [pa�s onde se passa o livro] estivera em guerra com a Orient�sia e em paz com a Eur�sia. Era verdade que ela encarava a guerra toda como um eng�do: mas, aparentemente, ela nem sequer havia notado que o nome do inimigo havia mudado. 'Eu pensava que sempre tiv�ssemos estado em guerra com a Eur�sia', disse vagamente. Isso o assustou um pouco. A inven��o do avi�o datava de muito antes do nascimento dela, mas a mudan�a na guerra havia acontecido apenas quatro anos atr�s, bem ap�s ela ser crescida. (...) No fim, ele conseguiu for�ar a mem�ria dela at� que, fracamente, ela lembrou que, em certo momento, o inimigo havia sido a Orient�sia, n�o a Eur�sia. Mas o assunto ainda lhe parecia desimportante. 'Quem se importa?' disse impacientemente. '� sempre uma maldita guerra depois da outra, e a gente sabe que o notici�rio s�o s� mentiras mesmo.'"

Infelizmente, a resist�ncia de Julia n�o vem de uma convic��o pol�tica, mas apenas do ego�smo de se sentir invadida e proibida, e ela n�o tem qualquer particular cren�a ideol�gica em valores como liberdade ou verdade objetiva. Tendo nascido ap�s a revolu��o, Julia n�o tem com que comparar sua vida atual. Sabe que tudo que o Partido diz � mentira, mas n�o se importa com a verdade nem tem conhecimento de Hist�ria. At� onde sabe, poderia ser tudo verdade, mas, se o Partido s� mente, ent�o ela nada escuta, e n�o constr�i nenhuma vis�o de mundo. Est� apenas tentando sobreviver, dia ap�s dia. Para decep��o de Winston, quando Julia opta por se dissociar da realidade, sua mera in�rcia comodista � �til a que o Partido continue dominante, na medida em que obedece a ele ainda que nele n�o acredite �ntimamente.

No trecho em que estou, Winston consegue ler um livro que, bem clara e subversivamente, explica o mundo em todos os seus fundamentos te�ricos praticados pela classe dominante. Primeiro, ele l� o cap�tulo que demonstra por que h� uma guerra sem fim entre as superpot�ncias.

� preciso ter em mente que 1984 foi escrito com a II Guerra Mundial em curso e publicado antes da Guerra da Cor�ia. Diante disso, � impressionante o poder de profecia do Autor. Veja o trecho abaixo (que traduzo de meu original brit�nico).

"O que � mais not�vel � que todas as tr�s pot�ncias j� possuem, na bomba at�mica, uma arma, de longe, mais poderosa do que qualquer uma que suas pesquisas presentes t�m probabilidade de descobrir. Apesar de o Partido, conforme seu h�bito, alegar a inven��o como sua, as bombas at�micas surgiram pela primeira vez nos anos 1940 e foram usadas em grande escala pela primeira vez cerca de dez anos depois. Naquele momento, algumas centenas de bombas foram lan�adas sobre centros industriais, principalmente na R�ssia europ�ia, Europa Ocidental e Am�rica do Norte [N. do T.: os mesmos alvos previstos pela Guerra Fria]. O efeito foi convencer os grupos dominantes de todos os pa�ses de que algumas bombas at�micas a mais significariam o fim da sociedade organizada e, portanto, do pr�prio poder deles. Conseq�entemente, apesar de nenhum acordo formal ter sido jamais feito ou sugerido, nenhuma outra bomba foi lan�ada. Todas as tr�s pot�ncias meramente continuam a produzir bombas at�micas e acumul�-las para a oportunidade decisiva que, todas acreditam, vir� mais cedo ou mais tarde. Nesse meio tempo, a arte da guerra permaneceu quase estacion�ria por trinta ou quarenta anos. Helic�pteros s�o mais usados do que eram de in�cio [N. do T.: o que realmente � verdade hoje], avi�es de bombardeio foram grandemente ultrapassados por proj�teis autopropulsados [N. do T.: o que � verdade em parte -- os proj�teis autopropulsados s�o chamados "m�sseis" e s�o lan�ados por avi�es menores do que os antigos bombardeiros], e o fr�gil e m�vel encoura�ado deu lugar � quase inafund�vel Fortaleza Flutuante [N. do T.: de fato, os encoura�ados foram substitu�dos pelos porta-avi�es, nenhum dos quais afundou ou foi alvejado desde 1945]; mas, de outro modo, houve pouco desenvolvimento. O carro de combate, o submarino, o torpedo, a metralhadora, at� mesmo o fuzil e a granada de m�o ainda est�o em uso [N. do T.: o submarino e o torpedo foram importantes at� o fim da Guerra Fria; os demais ainda s�o]. E, apesar das chacinas sem fim relatadas pela imprensa e pelas teletelas [N. do T.: como temos visto nas guerras do Golfo, dos B�lc�s e do Afeganist�o], nunca se repetiram as batalhas desesperadas das guerras anteriores, nas quais freq�entemente eram mortas centenas de milhares ou mesmo milh�es de homens em algumas semanas."

Al�m disso, desde a vit�ria do Neoliberalismo e o estabelecimento da Nova Ordem Mundial a partir de 1990, temos visto uma queda acentuada no padr�o educacional de v�rios pa�ses e uma acelera��o do emburrecimento alienado das popula��es urbanas. Veja abaixo o cen�rio descrito por Orwell nos anos 40.

"No passado, tamb�m, a guerra era um dos principais instrumentos pelos quais as sociedades humanas se mantinham em contato com a realidade f�sica. Todos os governantes, em todas as �pocas, tentaram impor uma vis�o falsa do mundo a seus seguidores, mas n�o podiam se dar o luxo de encorajar qualquer ilus�o que tendesse a prejudicar a efici�ncia militar. Enquanto a derrota significasse a perda da independ�ncia, ou algum outro resultado geralmente considerado indesej�vel, as precau��es contra a derrota tinham de ser s�rias. Os fatos f�sicos n�o podiam ser ignorados. Em filosofia, ou religi�o, ou �tica, ou pol�tica, dois mais dois podiam ser cinco, mas, quando se estava projetando uma arma de fogo ou um avi�o, tinham que ser quatro. Na��es ineficientes sempre eram conquistadas mais cedo ou mais tarde, e o esfor�o pela efici�ncia era avesso a ilus�es. Al�m disso, para ser eficiente, era necess�rio ser capaz de aprender com o passado, o que significava ter uma id�ia razoavelmente precisa do que havia acontecido no passado. Jornais e livros de Hist�ria sempre foram, � claro, coloridos e tendenciosos, mas a falsifica��o do tipo que se pratica hoje teria sido imposs�vel. A guerra era uma salvaguarda garantida para a sanidade, e, enquanto as classes dominantes estavam preocupadas, provavelmente era a salvaguarda mais importante de todas. Enquanto as guerras podiam ser vencidas ou perdidas, nenhuma classe dominante podia ser completamente irrespons�vel.

"Mas, quando a guerra se torna literalmente cont�nua, ela tamb�m deixa de ser perigosa. Quando a guerra � cont�nua, n�o existe necessidade militar. O progresso t�cnico pode parar e os fatos mais palp�veis podem ser negados ou desconsiderados. (...) A efici�ncia, mesmo a efici�ncia militar, n�o � mais necess�ria. (...) Uma vez que cada um dos tr�s Superestados � inconquist�vel, cada um � efetivamente um universo separado dentro do qual quase qualquer pervers�o de pensamento pode ser praticada em seguran�a. (...) Removido do contato com o mundo exterior, e com o passado, o cidad�o de Oceania � como um homem no espa�o interestelar, que n�o tem como saber qual sentido � para cima e qual � para baixo. Os governantes de tal Estado (...) s�o for�ados a evitar que seus seguidores passem fome at� morrer em quantidades t�o grandes que sejam inconvenientes, e s�o for�ados a se manterem ao mesmo baixo n�vel de t�cnica militar de seus rivais; mas, uma vez que esse m�nimo seja atingido, eles podem distorcer a realidade � forma que escolherem.

"A guerra, portanto, se a julgarmos pelos padr�es das guerras anteriores, � meramente uma impostura. (...) Mas, apesar de ser irreal, ela n�o � sem sentido. Ela consome o excesso de bens e ajuda a preservar a atmosfera mental especial de que uma sociedade hier�rquica precisa. A guerra, como se ver�, � agora um assunto puramente interno. No passado, os grupos dominantes de todos os pa�ses, apesar de poderem reconhecer seu interesse comum e portanto limitar o car�ter destruidor da guerra, realmente lutavam um contra o outro, e o vitorioso sempre pilhava o vencido. Em nossos dias, eles absolutamente n�o est�o lutando um contra o outro. A guerra � movida por cada grupo dominante contra seus pr�prios s�ditos, e seu objeto n�o � obter ou prevenir conquistas de territ�rio, mas manter intacta a estrutura da sociedade. A pr�pria palavra "guerra", portanto, tornou-se enganosa. Seria provavelmente acurado dizer que, ao se tornar cont�nua, a guerra tenha deixado de existir. (...) O efeito seria praticamente o mesmo se os tr�s Superestados, em lugar de lutar um contra o outro, concordassem em viver em paz perp�tua, cada um inviolado em suas pr�prias fronteiras. Porque, nesse caso, cada um ainda seria um universo herm�tico, liberto para sempre da influ�ncia do perigo externo, causadora de sobriedade. Uma paz que fosse verdadeiramente permanente seria o mesmo que uma guerra permanente. Esse � apesar de a vasta maioria dos membros do Partido o entender apenas em um sentido mais raso � � o significado mais nuclear do slogan do Partido: Guerra � Paz."

Ainda em mat�ria de emburrecimento, Winston continua a ler o livro em sua an�lise de outro slogan do Partido: Ignor�ncia � For�a. Nesse sentido,

"Por toda a Hist�ria, e provavelmente desde o fim do Neol�tico, tem havido tr�s tipos de pessoas no mundo, os Altos, os M�dios e os Baixos. Eles foram subdivididos de muitas formas, eles tiveram incont�veis nomes, e suas quantidades relativas, bem como sua atitude um em rela��o ao outro, t�m variado com as �pocas: mas a estrutura essencial da sociedade nunca se alterou. Mesmo ap�s enormes levantes e mudan�as aparentemente irrevog�veis, o mesmo padr�o sempre se reafirmou, tal como um girosc�pio sempre retorna ao equil�brio, n�o importando o quanto seja empurrado numa dire��o ou noutra. (...)

"Os objetivos desses tr�s grupos s�o inteiramente irreconcili�veis. O objetivo dos Altos � se manterem onde est�o. O objetivo dos M�dios � trocar de lugar com os Altos. O objetivo dos Baixos, quando t�m um objetivo � porque uma caracter�stica obediente dos Baixos � que eles s�o muito esmagados por tarefas tediosas para estarem mais do que intermitentemente conscientes de qualquer coisa fora de seu dia-a-dia �, � abolir todas as distin��es e criar uma sociedade onde todos os homens devam ser iguais. Assim, atrav�s da Hist�ria, repete-se uma luta que � a mesma em suas linhas principais. Por longos per�odos, os Altos parecem estar no poder em seguran�a, por�m, mais cedo ou mais tarde, sempre chega um momento em que [enfraquecem]. Ent�o, eles s�o derrubados pelos M�dios, que recrutam os Baixos fingindo que est�o lutando por liberdade e justi�a. Assim que atingem seu objetivo, os M�dios atiram os Baixos de volta a sua antiga posi��o de servid�o e tornam-se, eles mesmos, os Altos. Imediatamente, um novo grupo M�dio se separa de um dos outros grupos, ou de ambos, e a luta recome�a. Dos tr�s grupos, apenas os Baixos nunca t�m sucesso sequer temporariamente em seu objetivo. Seria um exagero dizer que, atrav�s da Hist�ria, n�o tenha havido progresso material. Mesmo hoje, em um per�odo de decl�nio, o ser humano m�dio est� fisicamente melhor do que estava alguns s�culos atr�s. Mas nenhum avan�o em riqueza, nenhuma suaviza��o dos comportamentos, nenhuma reforma ou revolu��o jamais trouxe a igualdade humana um mil�metro mais perto. Do ponto de vista dos Baixos, nenhuma mudan�a hist�rica jamais significou muito mais do que uma mudan�a no nome de seus mestres. (...)

"Em compara��o com aquela existente hoje, todas as tiranias do passado eram incompletas e ineficientes. Os grupos dominantes foram sempre infectados por id�ias liberais em alguma extens�o, e estavam satisfeitos em deixar pontas soltas por toda parte, cuidando apenas dos atos ostensivos e desinteressando-se pelo que seus s�ditos estivessem pensando. Pelos padr�es modernos, at� a Igreja Cat�lica medieval era tolerante. Parte da raz�o disso era que, no passado, nenhum governo tinha o poder de manter seus cidad�os sob vigil�ncia constante. Entretanto, a inven��o da imprensa facilitou a manipula��o da opini�o p�blica, e o cinema e o r�dio levaram o processo adiante. Com o desenvolvimento da televis�o [lembre-se de que 1984 foi escrito antes de a televis�o povoar os lares], e o avan�o t�cnico que possibilitou receber e transmitir simultaneamente no mesmo instrumento, a vida privada acabou. Todo cidad�o, ou ao menos todo cidad�o suficientemente importante para valer a pena de observ�-lo, podia ser mantido vinte e quatro horas por dia sob os olhos da pol�cia e o som da propaganda oficial, fechados todos os outros canais de comunica��o. Agora, pela primeira vez, existia a possibilidade de se impor n�o apenas a completa obedi�ncia � vontade do Estado, mas completa uniformidade de opini�o sobre todos os s�ditos. (...)

"Todas as cren�as, h�bitos, gostos, emo��es, atitudes mentais que caracterizam nossa �poca s�o realmente projetados para sustentar a m�stica do Partido e impedir que se perceba a verdadeira natureza da sociedade. Atualmente, a rebeli�o f�sica, ou qualquer movimento preliminar no sentido da rebeli�o, n�o � poss�vel. Dos prolet�rios nada se deve temer. Deixados a si mesmos, eles continuar�o, de gera��o a gera��o e de s�culo a s�culo, trabalhando, reproduzindo-se e morrendo, n�o apenas sem qualquer impulso de se rebelarem, mas sem o poder de entenderem que o mundo poderia ser diferente do que �. Eles s� poderiam tornar-se perigosos se o avan�o da t�cnica industrial necessitasse instru�-los melhor; mas, uma vez que as rivalidades militar e comercial n�o s�o mais importantes, o n�vel da instru��o popular est�, na verdade, decaindo. A quest�o de quais opini�es as massas t�m, ou n�o t�m, � mat�ria considerada indiferente. Pode-se permitir a elas liberdade intelectual, porque elas n�o t�m intelecto. Por outro lado, em um membro do Partido n�o se pode tolerar sequer o menor desvio de opini�o sobre o assunto mais sem import�ncia.

"Um membro do Partido vive do nascimento � morte sob o olhar da Pol�cia do Pensamento. Mesmo quando est� sozinho, ele nunca pode ter certeza de estar sozinho. Onde quer que possa estar, dormindo ou acordado, trabalhando ou descansando, no banho ou na cama, ele pode ser inspecionado sem aviso e sem saber que est� sendo inspecionado. Nada do que faz � indiferente. Suas amizades, seus relaxamentos, seu comportamento em rela��o � esposa e aos filhos, a express�o de seu rosto quando est� sozinho, as palavras que murmura ao dormir, mesmo os movimentos caracter�sticos de seu corpo, s�o todos ciumentamente escrutinizados. Garantidamente, ser� detectado n�o apenas qualquer verdadeiro mau comportamento, mas qualquer excentricidade por menor que seja, qualquer mudan�a de h�bitos, qualquer maneirismo nervoso que pudesse ser o sintoma de uma luta interior. Ele n�o tem liberdade de escolha em qualquer dire��o. Por outro lado, suas a��es n�o s�o reguladas pela lei ou por qualquer c�digo de comportamento claramente formulado. N�o h� lei em Oceania. N�o s�o formalmente proibidos pensamentos ou a��es que, quando detectados, significam morte certa, e os infind�veis expurgos, pris�es, torturas, encarceramentos e vaporiza��es [no livro: apagamento da exist�ncia de uma pessoa, com a elimina��o de todos os registros sobre ela] n�o s�o infligidos como puni��o por crimes que tenham sido realmente cometidos, mas s�o meramente o apagamento de pessoas que talvez pudessem cometer um crime em algum momento futuro. Requer-se que um membro do Partido tenha n�o apenas as opini�es corretas, mas os instintos corretos. Muitas das cren�as e atitudes exigidas dele nunca s�o afirmadas claramente, nem poderiam ser afirmadas sem desnudar as contradi��es inerentes ao Sistema. Se ele for uma pessoa naturalmente ortodoxa (...), em todas as circunst�ncias ele saber�, sem pensar, qual � a cren�a verdadeira ou a emo��o desej�vel. Mas, de todo modo, um treinamento mental elaborado, sofrido na inf�ncia (...), torna-o indisposto e incapaz de pensar muito profundamente sobre qualquer assunto.

"Espera-se que um membro do Partido n�o tenha emo��es privadas nem al�vios do entusiasmo. Espera-se que ele viva em um frenesi cont�nuo de �dio aos inimigos estrangeiros e traidores internos, (...) e as especula��es que poderiam induzir uma atitude c�tica ou rebelde s�o antecipadamente mortas por sua disciplina interna, adquirida cedo. O primeiro e mais simples est�gio da disciplina, que pode ser ensinado mesmo a crian�as pequenas, � chamado (...) p�ra-crime. P�ra-crime significa a faculdade de parar, como por instinto, ao atingir o limiar de qualquer pensamento perigoso. Inclui o poder de n�o alcan�ar analogias, de deixar de perceber erros l�gicos, de entender errado os mais simples argumentos se eles forem contr�rios ao Sistema, e de ficar entediado ou avesso a qualquer seq��ncia de pensamento capaz de levar em uma dire��o her�tica. P�ra-crime, resumidamente, significa burrice protetiva."

Neste ponto, devo comentar que minha aten��o foi chamada, logo no in�cio do livro, pela seguinte frase: "isto n�o era ilegal (nada era ilegal, uma vez que n�o havia mais leis)". Isso diz muito sobre um Estado total. Em uma democracia, as leis s�o criadas para conter o poder do Estado, que s� pode tirar liberdade do s�dito na medida em que a lei assim permite. Mas um Estado total n�o aceitaria ser limitado pela lei: ele quer que sua vontade prevale�a. De in�cio, a lei seria um obst�culo, e, uma vez superada, seria in�til. Se o Estado sempre consegue sua vontade, a lei � desnecess�ria. E � desnecess�ria at� mesmo como express�o dessa vontade: n�o � bom que o s�dito saiba a vontade do Estado de antem�o, nem poder� aleg�-la em face dele. Quando o Estado quiser que o s�dito saiba sua vontade, ele dir�. Idealmente, o Estado quer mist�rio, quer que as pessoas permane�am em d�vida sobre sua vontade. Tamb�m, se a lei pretendesse ser a express�o da vontade do Estado, seu car�ter fixo seria novamente um obst�culo �s mudan�as pol�ticas da conveni�ncia do Estado. Ele vai fazer o que vai fazer, n�o importando o que diga a lei. Mesmo para regular a vida privada dos s�ditos a lei � irrelevante: em caso de conflito, procurar�o a autoridade, mas ela decidir� conforme a diretriz pol�tica do momento, vontade soberana do mesmo Estado. Numa organiza��o total, nunca sabemos exatamente o que se espera de n�s, e vivemos em uma presun��o de culpa, de que algo n�o vai bem. Mesmo assim, vamos levando, congratulando-nos por termos sobrevivido mais um dia, at� o momento em que falharemos sem querer, seremos apanhados e os demais aut�matos � nossa volta dir�o que isso era inevit�vel em face de nossa inadequa��o rebelde.

Voltando � leitura que Winston faz do livro subversivo, ele constata que as explica��es coincidem com o que sempre soube, mas de forma muito mais sistem�tica e articulada. "Os melhores livros, ele percebeu, s�o aqueles que lhe dizem o que voc� j� sabe." Essa � uma verdade que descobri h� anos e que j� havia sido comentada por Richard Bach, n�o lembro em qual livro, creio que com essas mesmas palavras. Os melhores livros s�o c�mplices que devolvem a voc� um reconhecimento de que sua percep��o do mundo est� correta. Tudo aquilo que voc� tem visto no mundo � explicitado para voc�, todo o significado oculto que voc� afinal viu mas no qual n�o quer acreditar porque diverge do que lhe foi ensinado na escola.

Alguns livros me atraem feito �m�s, e 1984 � um deles. �s vezes, os livros que me atraem s�o uma esp�cie de c�mplice: a cr�tica e os outros Autores discorrem sobre eles, mas eu sei que n�o s�o bem o que deles se diz, e vou encontr�-los pessoalmente, onde me esperam para mostrar o que eu e eles j� sab�amos em segredo: que s�o muito mais simples e vigorosos. Assim, por exemplo, os comentaristas sempre se referem ao Grande Irm�o como o grande vil�o, chefe do sistema opressor de 1984. Entretanto, j� li dois ter�os do livro e, a esta altura, posso dizer com seguran�a (at� porque o livro subversivo foi expl�cito neste ponto): o Grande Irm�o n�o existe. Ele � um personagem, uma face criada para representar o Partido e focalizar o amor e o �dio de seus seguidores. N�o h� ningu�m chefiando o Partido, n�o h� um antagonista identificado como uma pessoa. Como toda institui��o, o Estado total n�o tem realmente um rosto, o que torna imposs�vel atac�-lo efetiva ou duradouramente. De algum modo, eu j� sabia disso mesmo antes de ler 1984. Com um pouco de conhecimento de Hist�ria, notei a incompatibilidade entre um sistema total cont�nuo e a depend�ncia sobre a figura de um l�der. As pessoas n�o obedecem a autocratas, mas a institui��es, e elas � que s�o o verdadeiro vil�o. Mais perversa do que o Grande Irm�o � a estrutura que afirma fazer sua vontade e que, na verdade, det�m e pratica o poder atribu�do a ele. At� agora, o Grande Irm�o n�o tomou qualquer import�ncia no livro, mas tem sido uma figura sem conte�do, da qual se fala mas que n�o se v� realmente fazer nada. Nem poderia ser diferente em um sistema t�o maquiav�licamente arquitetado pelo Partido, este, sim, o verdadeiro causador de todo mal. Portanto, quando voc� ler uma resenha, cr�tica ou mera refer�ncia em coment�rio de outro assunto, mencionando o Grande Irm�o como o vil�o de 1984, pode ter certeza de que quem a escreveu n�o leu o livro e est� apenas repetindo um discurso padronizado, iniciado por quem leu mas n�o entendeu. � um grande blefe cultural, procurando mostrar erudi��o diante de quem tamb�m n�o tem conhecimento para discernir que o palestrante � t�o ignorante quanto sua audi�ncia. � o cego guiando outro cego.


Este artigo est� protegido pela lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e foi publicado originalmente em http://www.geocities.com/jpcursino/NineteenEightyFour.htm em 24 de novembro de 2008. A reprodu��o s� � franqueada a quem obtiver minha permiss�o expressa, espec�fica e nas condi��es ditadas por mim. Eu costumava autorizar a reprodu��o, at� que encontrei meu artigo Uma cronologia de Jornada nas Estrelas na p�gina de uma organiza��o com a qual nunca havia tido contato. O texto havia sido adulterado, com omiss�o da autoria e meu nome apenas na "bibliografia". Sob minha insist�ncia, concordaram em tirar a obra do ar, mas insinuaram que eu n�o podia provar ser o autor. Por isso, agora, tudo � registrado.

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