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Parte I / Parte II


Análise Literária - Senhora I
Texto do trabalho: José de Alencar Senhora

Senhora de raios e réis
Graça Paulino

Senhora, romance que José de Alencar escreveu há mais de cem anos, conta um caso de amor quase golpe do baú, ou um caso de golpe de baú quase de amor. O que distingue também esse caso é que ele não é conduzido de um ponto de vista masculino: a mulher, aparentemente próxima ao estado de objeto, exige o tempo inteiro a condição de sujeito da história.

Esta história, como o leitor há de reparar, começa com um pedido de desculpas do Autor, que, cansado de críticas ao folhetim - tipo de narração exuberante e sedutora, capaz de interessar aos leitores comuns e às experiências de escritores da época - afirma ser verdadeiro o caso que conta, a partir de confidências "dos principais autores desse drama curioso". Entretanto, o Autor justifica, de antemão, o "heroísmo de virtude na altivez dessa mulher, que resiste a todas as seduções, aos impulsos da própria paixão, como ao arrebatamento dos sentidos". Está construído, ainda no prefácio do Autor, o perfil incomum e resoluto de personagem feminina, capaz de fazer "brochar" qualquer homem que pense e crie suas artes contra ela. A Senhora de Alencar e de seus leitores chama-se Aurélia Camargo: inteligente como Ulisses, diante dos feitiços interesseiros, bela como Circe, diante dos mortais depreciados, alia a sedução à inteligência, como só mulheres especialmente afirmativas saberiam fazer. Mais: Aurélia alia à sedução e a inteligência (aliás, perfeitamente verossímeis na personagem) uma qualidade que seres superiores como ela de fato desprezariam: grande quantidade de dinheiro, obtida por herança tardia. Isso a torna, ainda mais, um sujeito "especial" na história da sociedade brasileira, contada por José de Alencar, no século passado.

O outro da história, o Homem com maiúscula, capaz de conduzir-se por interesses socialmente corriqueiros no casamento é Fernando Seixas. Trata-se apenas de rapaz jovem, inteligente e belo, que se deixa levar por uma vida de etiqueta e ostentação. Forçado pela condição de funcionário público com baixo salário, aliado á promessa de aposentadoria, Fernando vive em prol de um futuro prazeroso: bailes, jantares finos, elegância, etiqueta, bom-tom. Despertado seu coração pelo Amor de certa moça pobre, resguarda-se, em nome de vida melhor. Quando este "dote", aliás de trinta contos de réis, é ultrapassado por outro, de cem, sua única hesitação deriva da incerteza sobre os dotes físicos da "escolhida". Quão agradável não é sua surpresa, quando lhe apresentam a disputada Aurélia Camargo? Já lhe merecera esta o namoro e o noivado. Ele a tinha deixado apenas por ser pobre. Existe, então, da parte dele, o verdadeiro amor? Ou se trata de "golpe do baú"? Os leitores de Senhora que o digam.

Se se tratar de leitor ávido por histórias "lucrativas", isto é, envolventes, cedo perceberá a boa condução do caso pelo narrador. Aurélia é apresentada como mulher sensível, amorosa, bonita, jovem e lúcida, com relação a seus dotes e a seu dote. Fernando, por sua vez, também se apresenta como homem inteligente, interessante e suscetível a alterações internas e externas da vida. Ele tem uma mácula que o narrador lhe desculpa: ter sido capaz de entregar-se aos prazeres da sociedade, de modo a assumir, como suas, a leviandade e a corrupção que eram "naturais" para certa elite econômica da época.

É dessa ambivalência, aliás, que resulta a maior força desse caso de amor/engano: não há partido que o leitor possa tomar, de modo a dividir a história entre inocentes e culpados. Charmosos e sensíveis, os protagonistas mostram ao leitor valores que não dependem da condição sexual ou econômica de cada um, mas da retomada de uma identidade perdida, por certo tempo, entre as ruínas morais de corte. São personagens criadas com talento suficiente para fazer o leitor deslocar-se com elas do espaço social mesquinho e desumanizado para outro lugar: o do diálogo.

Alencar, com toda a habilidade de exímio folhetinista, deixa-nos até hoje presos ao fio de sua Ariadne/Aurélia, capaz de ficar a janela seduzindo um passante como seu possível noivo para, depois, ficar à espreita de outro momento de condução da vontade alheia, através da fortuna que passa a pertencer-lhe por herança. Também Fernando Seixas não cansa de demonstrar-nos o aviltamento a que chegou por considerar a riqueza "como a primeira força viva da existência". Que importância terá o amor neste caso? Exatamente a de funcionar para que se ultrapassem tais limitações sócio-econômicas.

Decerto Alencar teve e terá leitores que, julgando naturais os interesses extra-afetivos ligados ao casamento, fiquem perguntando-se por que Aurélia e Fernando tiveram de sofrer um destino pesado. O próprio narrador parece, em certa parte do texto, conduzir o leitor a esse tipo de surpresa: "mas parecia tudo tão certo!" Diferente pode ser, entretanto, a leitura deste caso: o destino das personagens dói como o de quaisquer membros de uma sociedade em crise, cujos interesses precisam ser ultrapassados, para que cada um possa finalmente conhecer e amar a si e ao outro.

Assim, em torno dessas duas personagens típicas do Brasil de ontem e de hoje, Senhora traça um perfil social amargo e romântico, que diz respeito a qualquer leitor capaz de reconhecer seus pares na história. Não estaria de fora dela quem já se casou, quem pensa um dia casar-se, ou mesmo quem se sente melhor em distância crítica desses impasses, que a vida e seus textos costumam reservar a leitores e a outras entidades.

Graça Paulino é Doutora
em Teoria Literária pela UFRJ
e professora do Departamento de Semiótica
e Teoria da Literatura da UFMG

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