468  -  399  a.C.



 
 
 
 
 

          Era um homem de aspecto cômico, com uma grande calva em forma de cúpula, uma cara relativamente pequena, um nariz redondo e arrebitado e uma longa barba ondulada que não parecia pertencer a semelhante rosto. A sua fealdade era objeto de troça por parte dos seus amigos, mas ele próprio colaborava em tais gracejos.
 
 

          Pobre e algo vagabundo, era artista de cantaria, uma espécie de escultor semiespecializado. Não trabalhava, porém, mais do que o estritamente necessário para sustentar a mulher e três filhos que tinha, O seu maior prazer era conversar, mas como a mulher, sempre descontente e lamuriante, tinha uma língua pior que o chicote de um cocheiro, apreciava mais do que tudo estar longe de casa.
 

           Levantava-se cedo, antes do amanhecer, tomava um pequeno almoço rápido, à base de pão molhado em vinho, vestia uma túnica, punha por cima um grosso manto e saía em busca de uma loja, um templo, a casa de um amigo, os banhos públicos ou até mesmo uma esquina familiar onde encontrasse com quem discutir. Nunca lhe faltava ocasião para satisfazer os seus desígnios, pois toda a cidade em que vivia fervia em discussões e debates. A cidade era Atenas e o homem a quem nos referimos era Sócrates.

          Não só os seus traços fisionômicos eram singulares, como também os seus modos, noções e idéias que sustentava obstinada e persuasivamente.

          Graças a Sócrates, um dos maiores filósofos de todos os tempos, o interesse maior da Filosofia se deslocou, nas últimas décadas do século -V, do estudo da Natureza para o estudo do ser humano e da ética.

Biografia

          Nasceu em Atenas, por volta de -469; o pai, Sofroniscos, era um modesto escultor; a mãe, Fenarete, era parteira. Na juventude, esteve interessado na Filosofia da Natureza e chegou a estudar algum tempo com Arquelaus (séc. -V), discípulo de Anaxágoras de Clazômenas (-500/-428). Lutou bravamente na Guerra do Peloponeso em Potidéia (-432/-430), Délio (-424) e Anfípolis (-422).

          Em -423, aos quarenta e tantos anos, era já uma figura popular em Atenas, tanto que Aristófanes fez sua caricatura em As Nuvens. Feio e de pequena estatura (um "sileno careca", segundo a tradição), tinha, porém, a mente aguçada, lógica e analítica. Argumentador rigoroso, bem-humorado, costumava submeter todos os que se dispunham a ouvi-lo a uma série de pergundas muito bem dirigidas, até chegar a uma conclusão satisfatória que, em geral, punha em relevo a fragilidade das opiniões de seus interlocutores. Logo reuniu um vasto círculo de amigos, inimigos e jovens discípulos.

          Em duas ocasiões, pelo menos, deu provas de inabalável força moral: após o episódio das Arginusas (-406), quando presidia a Assembléia, recusou-se a por em votação uma moção ilegal contra os estrátegos atenienses, a despeito da pressão; na época dos Trinta Tiranos (-404), recusou-se a prender um homem injustamente condenado à morte.
          Um dos seus amigos perguntou um dia ao oráculo de Delfos quem era o homem mais sábio de Atenas. Perante a admiração geral, a sacerdotisa proferiu o nome de Sócrates, o vagabundo. «O oráculo», comentou Sócrates, «elegeu-me como o mais sábio dos Atenienses porque sou o único que sabe que nada sabe.» Esta atitude de maliciosa e astuta humildade, se lhe conferia uma grande vantagem nos debates que sustentava, também o tornava um tanto indesejável. Fingindo, ele próprio, desconhecer as respostas, acicatava as pessoas com perguntas e levava-as a inesperadas conclusões.

          Sócrates foi o evangelista do pensamento claro. Caminhava pelas ruas de Atenas pregando lógica, tal como, quatrocentos anos mais tarde, Jesus percorreria as aldeias da Palestina pregando amor. E, tal como Jesus, sem haver escrito uma única palavra, exerceu sobre o espirito dos homens uma influência tal que nem uma grande biblioteca, repleta de livros, a poderia ter ultrapassado. Se encontrava um cidadão, fosse ele o mais eminente, um grande orador ou qualquer outro, costumava perguntar-lhe se, na realidade, sabia de que estava a falar. Suponhamos que um famoso estadista tinha acabado de pronunciar um patriótico discurso acerca da coragem e da glória de morrer pela pátria. Sócrates não mostrava o menor pelo em se aproximar dele e perguntar-lhe:

— Desculpa a minha intromissão, mas que entendes por coragem?

— Coragem consiste em conservarmo-nos no nosso posto, mesmo perante o perigo.

— Mas supõe que a boa estratégia aconselha a retirada?

— Bem, então, isso é diferente. Claro que, nessas circunstâncias, é aconselhável a retirada.

— Desse modo, a coragem não consiste nem na permanência nem na retirada, não é verdade? Como definiras então a coragem?

O orador, nesta altura, enrugaria a testa e diria:

 
— Deixaste-me um tanto confuso e receio não te saber responder.

—Também eu não—diria Sócrates—, mas pergunto

a mim próprio se será algo mais do que saber fazer uso da inteligência, quer dizer, agir de um modo racional e sem pensar no perigo.

— Parece-me que será mais isso — diria alguém de entre a multidão — e Sócrates voltar-se-ia para esta nova voz.

— Devemos então admitir — em hipótese, pois se trata de um problema muito complexo — que a coragem é a determinação de atuar de acordo com um juízo firme e sereno? Coragem o mesmo que presença de espírito? E o oposto, neste caso, seria a presença de emoção, por vezes tão forte que turva o próprio entendimento?

          Sócrates sabia, por experiência pessoal, o que era coragem e aqueles que o ouviam tinham conhecimento disso. O seu comportamento frio e resoluto na batalha de Delium, durante a guerra do Peloponeso, tornara-se, tal como a sua resistência física, notório. A sua energia moral era, igualmente, insigne e todos recordavam como ele tinha enfrentado, sozinho, a histeria pública quando foram condenados à morte após a batalha naval de Arginusas, no Mar Egeu dez comandantes que não tinham socorrido alguns soldados que estavam a afogar-se. Sócrates sustentou, firmemente, que, culpados ou não, era injusto julgar ou condenar homens em grupo.

          Nos seus pormenores, o diálogo anterior foi, como é óbvio, imaginário. Todavia, ilustra os traços essenciais que fizeram desse homem de aspecto disforme, mas fascinante e dotado de poderes persuasivos extraordinários, um ponto de viragem na história da civilização. Sócrates ensinou-nos que toda a boa conduta se encontra sob o domínio da razão e que, no fundo, todas as virtudes consistem na supremacia da inteligência sobre a emoção.

          Além de insistir na importância moral do pensamento claro, Sócrates deu o primeiro grande passo para ensinar ao homem a forma de o atingir. Introduziu a idéia de que, antes de tudo, se deve precisar o teor do assunto a ser exposto. Costumava dizer:

          «Antes de começarmos a falar, decidamos, com exatidão, qual o tema que vamos versar.» Claro que tal preceito já havia sido preconizado em reuniões ou conversas privadas. Sócrates, porém, deu-lhe um caracter quase evangélico.
 

          Durante as três gerações que precederam a sua, os filósofos gregos haviam estudado a Natureza e as estrelas, dando origem a um magnífico florescimento intelectual, a que hoje chamamos ciência. Sócrates aplicou o método científico ao estudo da arte de viver. Nos seus dias, o mundo maravilhoso das cidades-estados gregas e da cultura helênica estendia-se por toda a bacia mediterrânica, transportando-se pelo Mar Negro até às costas da Rússia.
 

          A frota mercante grega dominava o comércio do Mediterrâneo. Sob o comando dos chefes da grande cidade comercial de Atenas, os gregos tinham derrotado os exércitos persas. A Atenas afluíam agora artistas, poetas, cientistas, filósofos, estudantes e professores de todo o mundo. Homens ricos de países tão distantes como a Sicília, para ali mandavam os filhos, a fim de que estes pudessem acompanhar Sócrates (que se recusava a cobrar quaisquer honorários) nos seus passeios e ouvir as suas peculiares controvérsias.


 


Escola em Atenas



 
 
 
 
 
 
 

          Todas as grandes escolas filosóficas que surgiram no mundo grego e, mais tarde, no romano, se orgulharam das suas fontes socráticas. Platão foi discípulo de Sócrates e Aristóteles foi discípulo de Platão. Nós próprios, ainda hoje, vivemos da herança socrática. Talvez os seus ensinamentos não tivessem deixado uma marca tão profunda na humanidade se ele não tivesse sido mártir dos seus próprios princípios. Parece-nos absurdo que se tenha condenado um homem à morte, por ser o responsável por «introduzir algumas definições de ordem geral». Contudo, se considerarmos o que aquela nova técnica, quando levada, de modo obstinado, até às suas conclusões lógicas, poderia provocar nas velhas crenças emocionais, a sorte de Sócrates não nos surpreenderá. Para os seus amigos, jovens e progressistas, Sócrates parecia o mais pacífico dos homens; mas, para milhares de velhos obscurantistas e, mesmo, para muitas outras pessoas de idéias moderadas, Sócrates surgia como um revolucionário.

          Havia duas acusações formais contra Sócrates: primeiro, não acreditava nos deuses reconhecidos pela cidade; segundo, «corrompia a juventude».

          Ainda hoje não está bem esclarecido o que os acusadores queriam dizer sob a forma da última acusação. Sabe-se, sim, que os jovens o amavam e se sentiam atraídos pelas novas idéias e pelo convite a pensarem por si próprios; no entanto, seus pais temiam que, ao lado de Sócrates, aprendessem doutrinas revolucionárias. Aconteceu que um dos seus discípulos, o arrebatado e inconstante Alcibíades, se passou para o lado do inimigo, durante a guerra com Esparta. Sócrates não teve qualquer culpa do sucedido mas Atenas, ferida pela derrota, procurava bodes expiatórios. Sócrates foi julgado por um júri formado por quinhentos e um cidadãos e condenado à m o r t e por uma maioria de sessenta. É possível que poucos dos jurados esperassem que a sentença fosse cumprida, O réu tinha o privilégio legal de apelar, para conseguir uma pena mais suave e requerer nova votação. Se o fizesse humildemente, lamentando-se e implorando, como era costume em tais casos, é indubitável que mais de trinta dos jurados teriam alterado o seu voto. Mas Sócrates obstinou-se em manter uma atitude exclusivamente racional.

          «Uma das coisas em que acredito é no império da lei», disse aos discípulos que acorreram à prisão, incitando-o a fuga. «Um bom cidadão, tal como vos disse muitas vezes, é aquele que obedece as leis da cidade. As leis de Atenas condenaram-me a morte; desse fato logicamente se infere que, como bom cidadão, devo morrer.»

          Platão descreveu, no diálogo Fédon, a última noite de Sócrates. Tal como havia feito em tantas outras, também esta a passou discutindo filosofia com os seus jovens amigos. «Existe outra vida depois da morte?», foi o tema da discussão daquela noite. Sócrates inclinava-se para uma resposta afirmativa. No entanto, escutou atentamente as opiniões contrárias, vindas de alguns dos seus discípulos. Embora soubesse que ia morrer dentro de algumas horas, conservou a serenidade, discutindo, com calma e lucidez, as possibilidades de uma vida futura.

        
Ao aproximar-se a hora final, os amigos reuniram-se a volta do querido mestre e prepararam-se, com amargura, para o ver beber a taça de veneno. Ele próprio o tinha mandado buscar, antes de o sol se pôr por detrás das montanhas do Ocidente. Quando o criado trouxe a taça, Sócrates disse-lhe num tom tranqüilo e natural: «Tu, que conheces todos os pormenores deste ato, diz-me o que devo fazer.» — «Bebe a cicuta e, em seguida, levanta-te e passeia um pouco pelo quarto, até sentires as pernas pesadas. Então, deita-te e um torpor te invadirá até atingir o coração.»

          Sócrates, deliberada e friamente, procedeu como lhe disseram, detendo-se apenas, para repreender os seus amigos, que soluçavam e choravam, como se ele não estivesse agindo da forma mais correta e sensata. O seu último pensamento foi para uma pequena dívida que havia esquecido. Afastou o pano que lhe tinham colocado sobre o rosto e disse: «Críton, devo um galo a Esculápio, trata de que seja pago.»

          Em seguida, cerrou os olhos e tornou a cobrir-se com o pano. Quando Críton lhe perguntou se tinha outras instruções a dar-lhe, já não obteve resposta.
 

«Tal foi o fim do nosso amigo», disse Platão, ao descrever com palavras imortais a cena da sua morte, «o melhor, o mais justo e o mais sábio de todos os homens que nos foi dado conhecer.»

Pensamento e obra

          Tudo o que sabemos das idéias de Sócrates se baseia nas informações de dois discípulos e entusiasmados admiradores, Platão e Xenofonte, e pela caricatura de Aristófanes.

          Foi proclamado 'o mais sábio dos homens' pelo Oráculo de Delfos (Platão, Ap., 21a); o filósofo, porém, se apresentava apenas como um ignorante em busca da verdade: "só sei que nada sei", dizia.

          Ele acreditava que a virtude e os mais altos valores éticos estavam profundamente arraigados no inconsciente das pessoas e comparava seu trabalho de 'extrair' as idéias ao de uma parteira (maiêutica socrática). Para que seus interlocutores recuperassem o conhecimento 'adormecido' e abandonassem as idéias falsas, recorria à ironia: alegando nada saber, conduzia habilmente o interlocutor até que ele mesmo, refletindo, chegasse à conclusão correta.

          Aparentemente, Sócrates chegou a ser confundido com os sofistas, com os quais ele tinha, no entanto, múltiplas e consideráveis divergências.

          Para Sócrates, o bem e a virtude eram conseqüências naturais do saber. Assim, se o conhecimento levava à sabedoria, a prática da injustiça e da maldade era apenas o resultado da ignorância; o mal nada mais era que a falta de conhecimento do bem...

          Além de Platão e Xenofonte, os mais conhecidos dentre os discípulos mais próximos de Sócrates foram os políticos Alcibíades (-450/-404) e Crítias
(-460/-403), e os filósofos Antístenes (-445/-360) e Aristipos (-435/-366).
 

De Platão:
    Apologia de Sócrates
    Críton
    Lísis
    Protágoras
    Górgias
    Íon
  De Xenofonte:
    Memorabilia
    O Banquete
    Apologia
 
 

SÓCRATES   E   PLATÃO








           Para determinar com certeza a influência de Sócrates sobre Platão seria necessário ter um conhecimento exato dos ensinamentos do mestre. Ora, a questão socrática é sujeita a maiores controvérsias do que a própria questão platônica. Além disso, no que concerne às relações entre o mestre e o discípulo, a critica moderna não demonstra haver procedido com o rigor lógico suficiente. Se acompanharmos Ed. Zeller, por exemplo, que afirma ser Xenofonte uma testemunha digna de maior fé do que Platão no que se relaciona com Sócrates, é bem difícil admitir, como esse mesmo autor o faz, que Platão começou a escrever imediatamente após a morte de Sócrates ou mesmo antes.
          O Sócrates dos primeiros escritos de Platão — e isto facilmente se verifica na Apologia — obstina-se em dizer que nada sabe. Nunca conclui, limita-se a demolir as teses que lhe são propostas e raramente deixa transparecer as suas próprias tendências. Um pouco mais tarde, o mesmo Sócrates levará seus interlocutores a descobrirem por si mesmos o todo ou a parte de verdade dos seus discursos. Será então uma espécie de parteiro (método maiêutico). Mas esta célebre imagem é evidentemente uma invenção do próprio Platão, que aparece em um diálogo, o Teeteto, de data bastante tardia.
          Platão não modificou sua primeira posição senão depois de haver, graças a ela, mostrado pela ironia dialética a influência da indução socrática, tal como a encontramos em Xenofonte, isto é, tal como a praticavam também Antístenes e seus outros condiscipulos. Na hipótese admitida de Ed. Zelier de que estes primeiros autores de diálogos tivessem seguido fielmente os processos do mestre, é absolutamente inverossímil que Platão tivesse tomado desde muito cedo uma posição tão nítida e característica como a dos seus inícios filosóficos. É, ao contrário, perfeitamente permitido acreditar, mesmo contra a opinião corrente da antigüidade, que os primeiros diálogos de Platão traduzem fielmente o verdadeiro caráter de uma parte ao menos das conversações de Sócrates. Mas seria mister, então, não ter em nenhuma conta Xenofonte e construir, de modo completamente diferente do que se tem feito, a figura do mestre. Ora, por este caminho, somos conduzidos a uma terceira hipótese: a de que tanto Platão como Xenofonte deformaram igualmente as conversações de Sócrates e assim calmos na mais completa incerteza.

          Em resumo: Sócrates exerceu sobre Platão uma influência moral de que é inútil apresentar provas; formou-o e exercitou-o na Dialética. Mas o discípulo que com tanta destreza soube manejar esta arma, não a teria aperfeiçoado? É tão difícil afirmar como não crer nisso. Insistimos em dizer que a indução socrática não deve ser considerada como fundamento da doutrina das idéias. O que Sócrates procurava estabelecer era a definição. certo que a procurava com um objetivo dialético, como um ponto de partida necessário que ele propunha ao adversário, como base fixa para conduzir uma discussão ou uma critica.
          É pouco provável que ele atribuísse valor científico aos seus enunciados, baseados na aplicação das convenções de linguagem existentes, em exemplos fornecidos pela experiência vulgar. A teoria das idéias tem por objeto conciliar, como já o indicamos, o fluxo dos fenômenos (devir) com a permanência que os eleatas davam ao ser.

          Mas, enquanto no século precedente os filósofos haviam procurado esta conciliação no domínio do sensível, Platão foi o primeiro que ensinou a humanidade a transpor esta questão para a esfera da transcendência.


 
 
 

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Bibliografia:







- Ribeiro Jr., Wa - Grécia Antiga - São Carlos:
http://warj.med.br outubro de 1999.


-Max Eastman - O mais Justo e o mais Sábio dos Homens,
                           Seleções do Reader's Digest ( Portugal ).


- Diálogos de Platão - Livrarias Edições de Ouro.
 
 

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