Bullets In Blue Sky

Tiros no Céu Azul

Capítulo 4: Lembranças, pensamentos. Prelúdio para duetos.


Fazia muito tempo que o comitê não se reunia daquela forma. Por muito tempo ficaram se falando por conferências através da Internet. Era uma das formas mais seguras de se comunicarem, tinham a proteção dos mais novos e poderosos firewalls além da própria segurança de estarem uns longe dos outros, dificultando ainda mais a vida de alguém que quisesse achá-los. Ou que ousasse. Mas as coisas mudam. Não era mais seguro se falarem pelo meio antigo. A Internet era o domínio do seu mais novo inimigo. E os membros da Seele tinham suas dúvidas se conseguiriam lidar com os Patriots. Os japoneses tinham a força, os americanos a tecnologia. Uma ironia. A história geralmente pregava o contrário.

Estavam todos os seis lá. Keel Lorenz e os homens conhecidos apenas como números. Claro que eles sabiam os nomes uns dos outros, mas não havia necessidade alguma de pronunciá-los. Conheciam suas vozes e seus rostos de tempos atrás.

- Alguém pode me explicar como a Unidade 01 foi capaz de voltar, por livre e espontânea vontade?

- Nem próxima da Terra ela estava para justificar uma possível entrada na órbita terrestre...

- Ainda mais que ela foi parar exatamente em Tóquio-3.

- Ela é diferente, já deveriam ter isso em mente - Keel resolveu falar.

Um dos membros restantes estava prestes a responder a provocação de Lorenz, mas se manteve quieto ao ouvir o som de uma porta abrindo e batendo violentamente na parede. Ela continuou aberta, fazendo com que um pequeno feixe de luz invadisse a sala. Pequeno mas nem tanto já que foi suficiente para irritar boa parte das pessoas naquela sala. A figura que acabara de fazer-se notar da forma como planejava caminhou até o centro da sala onde havia uma cadeira de metal simples que só faltava uma propaganda de cerveja barata para ser considerada saída de um barzinho de país de terceiro mundo. O resto das mesas onde estavam aqueles já presentes na sala há algum tempo, por outro lado, era feita do melhor material possível com direito até a laptops embutidos, e estavam posicionadas de forma proposital formando um círculo envolta da peça simples. Isso facilmente faria uma pessoa normal se sentir nos dias da Inquisição, talvez esse até fosse o propósito do posicionamento. Mas aquele ali, o recém-chegado que adorou a atenção que recebeu, com seu longo sobretudo marrom e seu tapa olho, estava mais para Inquisidor do que para qualquer outra coisa.

- Senhores, se me permitem... - Ele disse com um falso e proposital vestígio de educação na voz. Mesmo se algum dos velhos quisesse se opor, não teria tempo. - Eu acho que vocês tem algo mais importante com o que se preocupar.

- Seria?

- Ah, você sabe. A bonequinha de vocês, aquela que estava escrito que seria apenas uma coadjuvante, conseguiu hoje controlar o Evangelion mais instável. Não sei se os cérebros esclerosados de vocês já pensaram no motivo disso ter acontecido.

- Ninguém sabe como isso aconteceu, Big Boss.

- Ah, eu acho que sei como isso aconteceu! Vocês tentaram alcançar Deus, mas ao invés disso... - Ele fez uma pausa, olhou para cada um dos membros do comitê, esperando encontrar o olhar de cada um deles o que inevitavelmente aconteceu. - Vocês criaram Deus. Mais de um. Irônico, não é?

- Ainda não temos certeza disso! - Um dos velhos gritou quase histérico. Big Boss, se pudesse, teria feito seu sorriso crescer mais ainda depois daquilo.

- Mas vocês são uns tolos mesmo! Primeiro deixam um deus surgir do nada, depois perdem o controle sobre o seu anjo, em seguida tentaram improvisar e deixaram a humanidade nas mãos de um garoto... acharam que ele ia fazer o que vocês queriam, mas alguma coisa deu errado e nem vocês sabem o que foi. E agora a menina que vocês quase mataram conseguiu algo que parecia impossível, sabe-se lá Deus como. Falando Nele, eu já disse que acho que vocês criaram mais de um deus?

- Sim! - Outro dos velhos respondeu sem perceber que caiu na provocação do homem de tapa-olhos.

- E o que vocês pretendem fazer, Seele?

O velho de tapa-olho finalmente cedeu e sentou-se na cadeira. Aquele ambiente já estava se tornando insuportável para ele, mesmo se achando bom demais comparado à Seele. E bom em provocar também, por mais que não gostasse desse tipo de atitude era ela que estava ajudando a disfarçar a sua indignação e raiva em com os velhos. Descansou uma perna sobre a outra e botou ambas as mãos na nuca. Deu uma risada em tom de provocação para o velho que estava na sua frente, sem fazer questão alguma se ele tinha alguma importância ou não naquele comitê. Sabia que só a Keel Lorentz que deveria dirigir o mínimo de respeito. O mínimo... De qualquer forma, aquele na sua frente não era Keel.

- Chega de arrogância, Big Boss!

- Ah... eu estou parecendo arrogante? Desculpem-me! Eu fico assim quando estou preocupado. É que comigo vocês tem toda Outer Heaven a sua disposição. Mas sabem como é, eles podem ser soldados, mas também são humanos. E eles não tem a menor chance contra as besteiras que vocês fizeram. A garota sozinha dizimou metade da JSSDF e só não foi além por que o resto estava dentro da Nerv, imagina com a Unidade 01 junto agora. Nem Outer Heaven com a ajuda de todas as forças armadas da América conseguem agüentar... 10 minutos.

- A Unidade 02 têm apenas 5 minutos de bateria interna se desconectada dos cabos, e a Unidade 01, basta incapacitarmos o piloto - Um dos velhos respondeu com certa maldade na voz, principalmente na última parte. Ele sabia que isso iria irritar Big Boss.

- Velho! - Big Boss havia se levantado e estava em frente a mesa de quem falou por último. - Não é apenas um problema: são dois Berserkers! Ou acha que não vi os momentos finais do vermelho, antes de vocês permitirem aquela atrocidade?

- É verdade. - Keel Lorentz se pronunciou após assistir quieto o debate por algum tempo. - A Unidade 02 se mexeu mesmo depois da bateria interna acabar. Mesmo que por pouco tempo... isso só pode acontecer quando ele entra em estado de Berserk...

- Parece que mesmo com o incidente de ativação do vermelho sendo um pouco diferente do púrpura, vocês não conseguiram impedir a mãe de proteger a filha. Querem um conselho? Nunca tentem controlar uma mulher, ainda mais uma mãe que tinha a filha como a única razão de viver, como a Zeppelin. Ah! E tem a Yui também, não é Keel? - E Big Boss sabia que assim ele provocaria Keel, por mais que tivesse se segurado, e que também a sua presença naquela reunião não seria mais necessária.

- Obrigado pela presença... Big Boss. - Keel falou com um tom de tristeza e raiva na voz.

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- Não fume no meu carro! Odeio o cheiro de cigarro!

Ela pegou o cigarro já aceso do passageiro e jogou para fora do carro. O passageiro, Ryouji Kaji fez uma cara de desentendido, sua boca onde antes estava o cigarro continuava aberta devido ao que acabara de ouvir.

- Nat-chan... estamos num conversível...

- E?

- Esqueça...

Ele deitou a cabeça no banco e botou o braço para fora do conversível. Ficou ali brincando com a mão no ar e sentindo o vento forte entre os dedos, esperando ansiosamente que chegassem logo no seu destino. As músicas no player do carro da russa Natasha não faziam o seu estilo. Devia ter escutado o Mark... até os Stones dele são melhores que esses pop’s russos... qual o nome dessa droga mesmo? t.a.T.a? Kaji suspirou e olhou para o céu, até as nuvens estavam passando rápidas pela sua cabeça. Era a velocidade insana que a loira estava botando no carro. Quando me disseram que ela era pior que a Katsuragi eu não acreditei... Foi então alguma coisa chamou a atenção de Ryouji Kaji. Chegou a se inclinar um pouco para enxergar melhor a imagem refletida no espelho retrovisor.

- O que foi? - A russa perguntou após o movimento do homem barbado chamar sua atenção.

- Que saco... tem alguém seguindo a gente... - Ele respondeu enquanto se apoiava na porta do carro e se erguia ligeiramente para olhar o que vinha atrás do carro deles. - Um, dois, três... quatro! - Ele disse após terminar de contar.

- Carros ou motos? - Ela perguntou já diminuindo a velocidade do carro para deixar os inimigos se aproximarem de forma mais rápida.

- Na verdade caminhões...

- AHN?

- Pisa fundo, a não ser que queira ser prensada por eles...

- Ai droga... e você aí agindo com a maior calma!

- Tem uma arma aqui? É que gastei toda a minha munição...

- No porta-luvas deve ter uma Desert Eagle. Pelo menos é forte o bastante para um caminhão.

- É, mas você tem clipes extras aqui? Por que quatro caminhões com 7 tiros só o seu amiguinho cowboy lá pra conseguir. - Ele disse e logo abriu o porta-luvas e pegou o que achou ali dentro. E então ele fez a cara mais idiota que a situação permitiu.

- Por que ainda não está atirando? - Ela perguntou meio curiosa, meio irritada.

Ryouji Kaji apenas mostrou o estojo de maquiagem que pegou no porta-luvas. A russa deixou uma risada curta e idiota escapar. Então acelerou o carro até onde o pedal permitiu, ignorando o fato de estar no meio de uma curva. Daquelas bem fechadas.

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Por que você voltou, mãe? O jovem Ikari se perguntou. Sabia que não haveria uma resposta para aquilo. Nem dos vários funcionários da Nerv vestidos com os uniformes da equipe técnica, nem do gigante magnificente à sua frente, embora ele soubesse que de alguma forma esse último seria o mais propenso a responder seu questionamento. Tanto tempo no espaço - ou seja lá onde esteve - nem as rachaduras presentes em todo o corpo do Eva o fizeram perder sua majestade. Na verdade, o Evangelion púrpura parecia ainda mais aterrador assim. Era possível ver os pesquisadores da Nerv se aproximando cautelosamente do Evangelion em plataformas mecânicas suspensas e na ponte onde estava o piloto exclusivo dele. Shinji pode comprovar isso com seus próprios olhos. Viu um dos funcionários caminhar a passos trêmulos e lentos até o gigante. Por longos segundos o homem desviou o olhar para o garoto, como se pedisse a permissão dele para chegar perto e mexer no robô. Só quando o garoto assentiu, ainda que relutante o homem se aproximou.

Foi ali, vendo um adulto temer tanto quanto ele, que Shinji Ikari realizou que não sentia medo algum na frente daquele gigante. Foi uma sensação diferente da de apenas pensar em entrar na Unidade 00. Se pegou numa situação nunca imaginada. Ele estava com vontade de entrar no Eva, não importava se fosse naqueles longos e tediosos testes de sincronização, ou para estar ali dentro por uma banalidade qualquer. É possível que nem se importasse se o pretexto para entrar no Eva fosse uma batalha.

Se ele estava com medo, assustado ou angustiado naquele dia, ficar ali olhando a Unidade 01 fez com que todos aqueles sentimentos ruins simplesmente evaporassem. Deu alguns passos para o lado pretendendo contornar a cabeça do Evangelion. Parou quando seu rosto ficou de frente para o olho direito e sem vida do Evangelion, inclusive nem percebeu que atualmente estava sobre uma das plataformas suspensas ao redor do Eva. Dois técnicos estranharam um pouco a presença do garoto.

O piloto da Unidade 01 ficou ali por tempo indeterminado olhando para o buraco negro e vazio do avatar púrpura. Nunca esteve tão perto e tão atento a detalhes de seu Eva quanto aquele momento, foi quando reparou que o olho dele não era um vazio escuro e sem nada. Havia alguma coisa ali. Um olho! Um olho fechado. Ele conseguia até distinguir os contornos apesar da escuridão ali dentro.

É como se fosse uma máscara... Ele continuou ali fitando o olho forçadamente fechado do monstro púrpura. Foi quando alguma coisa aconteceu. Alguma coisa que seria impossível que só ele, Shinji Ikari, fosse capaz de perceber. O olho direito do Evangelion abriu, aconteceu provavelmente a mesma coisa com o outro, mas nem isso chamou a atenção de ninguém ali naquela sala imensa.

O garoto encarou com passividade o olho verde e aberto do gigante piscar e sua pupila fita-lo. Ele encarou silenciosamente Shinji por alguns instantes antes de fechar e voltar a forma de antes. Mesmo com aquela estranha situação, Shinji Ikari ainda se encontrava pela primeira vez naquele dia livre dos sentimentos que não gostava.

Ela tinha olhos verdes? Ele pulou para fora da plataforma. E encontrou alguém além das pessoas de antes que corriam de um lado para o outro.

- Shinji... - Era uma voz grossa e imponente, apesar do tom baixo.

Shinji olhou para o dono da voz. Gendo Ikari estava na mesma posição que o filho se encontrava momentos atrás. Ele também observava com curiosidade e surpresa a Unidade 01, talvez tenha visto também o olho do Eva. Talvez fosse uma coisa que só os Ikaris pudessem ver. Foi uma das poucas vezes, se não a única, que o jovem Ikari conseguiu ver seu pai demonstrar algum tipo de sentimento, ainda que estivessem claramente suprimidos pela expressão de sempre de comandante da Nerv. Não tinha lugar onde apoiar seus braços e deixar suas mãos cruzadas como o usual, portanto tinha elas atrás da cintura, como se algemado, mas as mãos continuavam cruzadas. Só que mesmo assim ele ainda conseguia impor medo e respeito a qualquer um.

- C-comandante - O piloto da Unidade 01 respondeu com um pouco de receio, se recusando referir-se a Gendo Ikari como seu pai novamente.

- A Unidade 01, você vai pilotar?

- Vou!

Qualquer pessoa teria se impressionado com a determinação na resposta rápida de Shinji. Mas não o supremo comandante da Nerv e pai dele. Não pelo fato de ser pai ou conhecer o garoto, mas sim por saber que o garoto descobriu tudo durante o Terceiro Impacto, e até mesmo o pequeno covarde também conhecido como Shinji Ikari poderia mudar ao ser apresentado a tantas revelações como as da Instrumentalidade. Uma dessas revelações fazia referência a Gendo e seus motivos a agir da forma como vinha fazendo a dez longos anos. Fazia tempo que tudo havia voltado ao normal, e o pai já estava começando a se perguntar o que realmente aconteceu com seu filho, coisa que não teria feito antes. Não que ele ligasse para isso...

- Ótimo!

O comandante voltou a atenção para a Unidade 01, apesar de seus olhos nunca terem deixado o gigante púrpura. Da posição em que ele estava era impossível para qualquer pessoa ali ver o sorriso que surgiu no rosto dele, sejam os incontáveis funcionários correndo de um lado para o outro ou o jovem Ikari, a única “coisa” ali presente que poderia ter visto a reação dele seria a própria Unidade 01. E Gendo Ikari queria acreditar cegamente nessa possibilidade. Mesmo com a atenção voltada para o gigante, ele pode ver seu filho se afastar, no entanto, havia mais uma coisa que queria falar com o menino, ou pelo menos anunciar.

- Você também viu, não?

Foram as únicas palavras do homem de traje preto. Elas não pareceram chegar aos ouvidos do garoto, mas ele sabia que se tinha feito ouvir. Chegou a desviar o olhar para o filho e encontrou o mesmo de costas para ele, indo na direção da porta onde alguém esperava por ele. Um dos seguranças contratados.

- O que foi garoto? - Perguntou Mark Goodspeed.

- N-nada...

Shinji continuou o caminhar e passou reto pelo segurança, esperando que o mesmo o seguiria logo em seguida, no entanto isso não aconteceu. Alguns passos depois Shinji reparou e resolveu virar-se para ver o que tinha acontecido. Mark estava encostado na parede e olhando para o Evangelion púrpura. O garoto pensou em deixar o outro ali sozinho e tomar o seu rumo, mas parou quando ouviu a voz de Mark.

- Ele é assustador. Não tem medo quando está dentro dele?

- Sim... - Shinji olhou para o chão por alguns instantes. - E não... - Essa adição com certeza fez Goodspeed olhar com estranheza o garoto.

- Se importa de explicar? Fiquei um pouco... confuso...

- Eu não tenho medo dela pela aparência assustadora, que não vou negar que tem, tenho medo do que pode fazer. O poder que ela tem. É algo que não sei se poderia estar em minhas mãos, nem nas de nenhum de nós pilotos...

- Não é algo para alguém na idade de vocês, é isso que quer dizer?

- Não. Um Evangelion é poder demais para qualquer um!

- Então, por que você pilota isso?

- Pelos outros... - O garoto desviou o olhar de Mark.

- Hm, parece que não gosta muito de falar sobre isso. Vamos indo, eu e Pliskin vamos levar você e a Asuka para casa. - E deu um tapinha nas costas do garoto.

Acho que Snake tem razão em relação a ele. Talvez fosse bom ter ele ao nosso lado... mas Asuka é muito mais fácil de persuadir. Apesar de que... dois é melhor que um. Bom dessa vez eu consulto o velho antes de tomar alguma decisão precipitada.

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Ela abriu um dos armários, o de número 02 especificamente, e tirou tudo que havia ali dentro: uma camisa branca, um vestido verde, meias brancas e longas e um par de sapatos pretos. Era o uniforme completo da escola onde estudava e que provavelmente ela tinha esquecido ali em uma das suas missões de algum tempo atrás. Ficou olhando para as peças de roupa por algum tempo até que se lembrou do dia em que usou aquelas roupas pela última vez. Uns poucos e pequenos rasgos e uma parte ou outra mais suja nas peças, principalmente no vestido verde, faziam daquela roupa algo cheio de más recordações. Ela jogou a primeira coisa que viu no chão e socou o próprio armário, repetindo o gesto de meses antes após um fracasso nas lutas contra os anjos que ela sequer lembrava qual era.

A ação dela foi tão instintiva e impensada que sequer escolheu o punho para desferir o golpe, só foi perceber a besteira de ter usado logo punho e braço enfaixados quando a dor a fez segurar ambos contra o corpo na tentativa inútil de fazer a sensação passar logo. Mesmo seu olho direito estando fortemente fechado, ele teve de abrir para deixar escapar umas poucas lágrimas.

Aquilo nunca vai acontecer de novo! Eu voltei a ser piloto do Eva! Eu voltei a ter alguma coisa na minha vida!

- Eu estou chorando... por causa da dor... POR CAUSA DA DOR! - Ela gritou, como se tivesse alguém ali para que devesse alguma explicação.

Soryu Asuka Langley sabia muito bem o motivo de suas lágrimas, ainda que fosse difícil admitir para si mesma. Não era a dor a razão daquela cena, que ela já estava achando patética, mas sim a lembrança que aquelas roupas trouxeram a ela. O motivo de elas estarem ali é que provavelmente algum funcionário da Nerv achou - errado - que elas tinham de ficar naquele armário. O estado em que elas estavam era perfeitamente explicável e claro na cabeça da piloto da Unidade 02.

Poucos dias depois da derrota para Arael, Asuka ficou desesperada, toda sua vida começou a desmoronar. A solução que ela encontrou? Foi para uma das áreas devastadas pelo Segundo Impacto, um conjunto de apartamentos do que antes foi um distrito japonês qualquer, provavelmente o que havia restado da velha Tóquio. Por dias ficou vagando por lá. No começo pensava no que faria de sua vida, mas depois de um dia ou dois já tinha feito sua decisão, o restante do tempo ficou tomando coragem para botar seu “plano” finalmente em prática. Quase não tinha mais forças, havia um bom tempo que não comia nada e apenas tomava água do primeiro lugar que encontrasse depois do desespero que a sede a fazia passar. Um desses lugares que encontrou água foi o escolhido. Tirou toda a sua roupa, um pouco suja e rasgada devido a noites mal dormidas num chão empoeirado e atolado de qualquer coisa, dobrou e arrumou impecavelmente todas as peças e finalmente deitou-se na banheira quase cheia de água de chuva. Não sabe quanto tempo olhou para o céu azul pelo buraco imenso no teto sobre ela, mas foram longas horas, o bastante para reunir a coragem que lhe faltava para requintar seu ato final. Pegou um pedaço pequeno de vidro - que facilmente cabia na palma de sua mão - esquecido na beirada da banheira e cortou lentamente os dois pulsos. Mergulhou ambas as mãos na água que não demorou a ganhar cor e voltou a olhar para o céu azul.

Parecia um clichê, ela tinha admitido isso até naquele momento, mas a sensação que teve era de que a vida aos poucos ia deixando o seu corpo, manter os olhos abertos era cada vez mais difícil, quanto mais a consciência. Ela havia sentido essa última se dissipar tão rápido quanto sua visão, chegou um momento que tinha a certeza de que faltava pouco, muito pouco para finalmente deixar o seu corpo. Mantinha os olhos abertos ainda que não prestasse atenção nenhuma no que via. Naquele momento sua mente era apenas um vazio oscilando entre branco e preto, dependendo dos raios de sol estarem ou não cobertos por nuvens que corriam rápidas no céu. Foi quando algo, alguém ou até mesmo Ele, fechou as portas para aquele destino e tomou o controle da situação. Ouviu passos lentos vindo de uma direção qualquer onde provavelmente haveria alguma porta. A consciência voltou a ela - como se uma vela se acendesse em meio ao breu total - e por um curto período ela voltou a ter controle sobre si. Foi o bastante para virar o rosto para a direção dos passos e ver uma pessoa se aproximando completamente envolta de uma escuridão intimidadora, ainda que o ambiente fosse claro e a única sombra até então pairasse sobre sua face magra dos dias sem ingerir alimento algum.

O pouco que ela realmente lembrava daquela cena, foi da figura se aproximar, chegar ao lado dela e fazer um movimento rápido com as mãos, tirando algo do rosto e guardasse em algum lugar perto da cintura, em seguida, um rápido brilho de luz surgiu naquele momento - o sol refletiu em algum metal - e então o rosto do estranho se aproximou do dela. O dele ainda estava coberto de sombras, exceto por uma parte que a ruiva logo soube identificar, quando seus olhos azuis a pouco de perder a vida encontrarem olhos verdes de um estranho irradiando compaixão e esperança. Ela ouviu o barulho da água e os braços do estranho de olhos verdes mergulharam no líquido já vermelho e levantaram seu corpo, consequentemente revelando a sua nudez. Mas em nenhum momento ele deixou de olhar para os olhos dela, - Nenhum momento mesmo! - ignorando completamente o fato dela estar sem roupa alguma. Antes de desmaiar, Asuka sentiu uma sensação estranha, como se ali nos braços daquele estranho o calor voltasse ao seu corpo, mas o mesmo não aconteceu com a sua consciência, a última coisa que ela lembrava foi do estranho beijar seu rosto e falar algumas palavras que ela lembrava com clareza: “Não é sua hora, querida...”.

Quase que instantaneamente, após ditas aquelas palavras a escuridão finalmente tomou conta dela. - Mas a escuridão da consciência e não... a morte... - Ela nunca soube como conseguiu sobreviver, como chegou na Nerv, muito menos como agüentou tanto tempo até receber o tratamento necessário. Mas a ruiva realmente se surpreenderia se soubesse como o estranho saiu daquele prédio abandonado: justamente por aquele buraco onde só se via o céu azul.

Ela finalmente levantou-se do chão e pôs-se de pé. Sentiu uma dormência nos joelhos, mas resolveu ignorar e caminhar em direção aos chuveiros. Aos poucos foi jogando as roupas no chão até que ficou só com as íntimas. Parou em frente a uma das portas. Exatamente a 00. Queria socar essa porta também. Só que o cheiro de sangue do LCL em todo o seu corpo e a lembrança da dor de momentos atrás a fez desistir. Virou-se e procurou a com o número 02 na frente. Entrou do jeito que estava e ligou o chuveiro.

Dane-se! É só para tirar essa droga do cabelo! E ela ficou ali, deixando a água bater no seu rosto com os olhos fechados e a mente livre de qualquer pensamento, inclusive o de quanto tempo ela já tinha perdido ali.

Saiu do chuveiro, ignorando e deixando o mesmo um pouco aberto fazendo com que algumas gotas caíssem de tempo em tempo, dando pelo menos algum som àquele vestiário silencioso. Andou lentamente até o banco que quase atravessava a sala de ponta a ponta. Sentou-se ali e jogou a toalha azul que usou para se enxugar em um canto qualquer da sala. Mesmo depois desse tempo todo eles continuam com essa droga de cor nas minhas toalhas. Sabem que eu gosto de vermelho! Pegou as roupas que achou no armário e começou a vesti-las. Logo na primeira das que pegou, as meias brancas, notou que as ataduras de seu braço direito continuavam com a cor meio alaranjada e quando chegou com o braço mais perto do rosto conseguiu sentir aquele cheiro desagradável. Ela sabia que não seria um pouco de água nem aquele sabonete vagabundo que mudariam aquilo, ainda que tivesse passado um bom tempo no banho.

Evitando olhar o braço de ataduras, conseguiu botar as meias rapidamente, mas parou novamente ao colocar a camisa branca e senti-la molhar ao cobrir o seu sutiã molhado. Era o preço que se pagava por alguma decência naquele complexo cheio de câmeras. Ignorou, sabendo que o vestido verde que ela colocou por cima cobriria a transparência da camisa. Terminou de se vestir ao finalmente colocar os sapatos pretos. Levantou e caminhou até um espelho horizontal grande pendurado sobre várias pias.

Meu olho... ninguém pode me ver assim... Falou consigo mesma enquanto olhava o reflexo no espelho. Esse foi um dos principais motivos para não ter voltado para a escola. Não queria que ninguém a visse assim. Com as ataduras no braço ela poderia inventar qualquer mentira: caiu de uma escada, tropeçou e quebrou o pulso ou alguma coisa, apesar de não haver gesso nenhum ali. Mesmo se quisesse falar a verdade, tinha sido proibida pelo Comandante Ikari. Ninguém poderia saber que um piloto de Evangelion, uma “criança” de 14 anos - na época, agora ela já estava com 15 - receberia danos reais. Real como um braço partido em dois e um olho perfurado e possivelmente inutilizado depois disso. A informação dada ao público, e até as Nações Unidas era de que só havia uma “dor falsa” efeito da alta sincronização dos pilotos. Tanto faz, ela não falaria a verdade mesmo. As pessoas não poderiam saber o que ela sofreu. Não preciso da piedade deles! Ela pensou com raiva.

Passou a mão lentamente pelo curativo molhado e também laranja por causa do LCL. Pelo menos não estava descolando já que as ataduras giravam pelo seu rosto cobrindo uma pequena parte. Somente o olho esquerdo tinha realmente um curativo, que era suportado por duas ou três voltas de uma atadura que ia de um lado ao outro da cabeça. Ela não gostava de se ver assim. Gostava muito menos da idéia de perder o olho e precisar de um transplante ou uma cirurgia louca dessas, não queria saber de perder um de seus lindos olhos azuis, uma das partes que mais admirava no seu corpo, depois de suas curvas e o cabelo vermelho cor de fogo.

Deslizou os dedos mais uma vez pelo curativo e um sorriso, pequeno e tímido, mas ainda um sorriso surgiu no seu rosto. Não sentia mais dor nenhuma ali. Mais uma prova de que Mark Goodspeed realmente tinha boas intenções. Os remédios que ela tomava ainda no hospital não ajudavam em nada na cura dos ferimentos, e ela tinha certeza disso devido as dores que sentiu dia após dia naquela sala branca e depressiva. Já os comprimidos que o agente secreto deu a ela realmente estavam fazendo efeito, ainda que tivesse de tomá-los escondidos de Misato e dar um jeito de sumir com os que foram receitados para ela pelos outros médicos, se assim poderiam ser chamados os profissionais sem ética que provavelmente estavam sendo subornados para tentar sem sucesso retardar a recuperação dela. Era engraçada a reação dos médicos quando verificavam o estado dela e só viam melhoras, exatamente o contrário do que esperavam. O sorriso deles era o mais falso e forçado possível. Talvez seja por isso que depois de ter desaparecido misteriosamente do hospital, em nenhuma das vezes um médico atendeu mais do que uma vez a jovem alemã, provavelmente um sinal de que estavam sendo despedidos - ou coisa pior, assim ela esperava - por incompetência.

Ainda não seria por esse súbito momento de felicidade que a faria mudar de idéia e aparecer na escola dessa forma. Já bastavam Misato e Shinji e agora os funcionários da Nerv vê-la dessa forma. Todos eles, mesmo que não falassem diretamente, principalmente o jovem Ikari, sentiam pena dela e esperavam ansiosos por sua recuperação, pelo menos era o que diziam. Já bastava a piedade deles. Não queria um bando de interesseiros falsamente se preocupando com ela quando chegasse na escola. Era um dos contras de ser uma das garotas mais populares daquele colégio. A única pessoa que se preocupava de verdade com Asuka e também a única verdadeira amiga que conseguiu fazer lá foi Hikari Horaki, apesar dela ter o defeito de estar apaixonada por um dos “Três Patetas”: Toji. Mas isso ela conseguiria digerir mais cedo ou mais tarde.

Não queria aparecer daquela forma em público e mais tarde ter de usar um implante no seu olho esquerdo. Isso só atrairia mais ainda a condolência das pessoas, e também risadas ou alegria para os mais sádicos. Por mais perfeita que fosse a cirurgia e o implante... não seriam mais os mesmos olhos... Ela se esforçou e com custo conseguiu segurar uma lágrima ao pensar nessa terrível possibilidade. Ou usar um tapa-olho... ARGH! Virou-se e deu as costas para o espelho. Pegou o terno de Goodspeed que ela jogou no chão logo que entrou no vestiário e também as roupas encharcadas de LCL, botou todas na sacola onde estava a muda de roupa no armário, exceto pela vestimenta de Mark, que voltou ao corpo dela pelo pouco de frio que ainda sentia. Fez questão de lembrar-se de quando chegar em casa tratar de jogar fora ou queimar a sacola. Vou queimar essa droga de uniforme também. Foi em direção a porta da saída ainda a passos lentos, quando uma gota do chuveiro voltou a cair e fez-se ouvir naquele silêncio todo. Foi o bastante para chamar a atenção da ruiva de volta para aquela direção, e para o espelho logo em seguida. E mesmo de longe ela viu seu reflexo mais uma vez, em especial nas ataduras do rosto.

Ela não sabe como e nem por que, mas quando se viu no espelho, pela segunda vez naquele lugar um sorriso rápido surgiu na face da ruiva. Ela viu esperança. A mesma esperança que viu em olhos verdes naquele dia fatídico. Para se lembrar, precisava lutar contra sua mente e sua memória, mas pelo menos ali, ela conseguia sair vitoriosa. Aos poucos o que ela se lembraria daquele dia seriam apenas os olhos verdes cheios de esperança, compaixão... e salvação... O resto ela não fazia questão de se lembrar.

A jovem piloto ainda estava anestesiada com seus pensamentos e levou um pequeno, mas imperceptível para qualquer observador, susto. A última pessoa que esperava estar ali esperando por ela era Solid Snake, conhecido por ela apenas como Iroquois Pliskin. O corpo alto do segurança ocidental a fitou por alguns instantes com alguma curiosidade. A ruiva viu um sinal de fadiga no homem, que respirava alto mas que logo tratou de se recompor. Era como se ele tivesse corrido até ali. Asuka encarou Snake por algum tempo tendo a certeza de esquecer uma expressão amigável ou qualquer coisa do tipo. Ele deu uma rápida risada antes de com o maior prazer, quebrar uma das regras da Nerv: Não fumar. Acendeu o cigarro e deu as costas pra ruiva, andou poucos passos antes de voltar-se para ela com uma expressão de alguém que não estava gostando de ser feito de tolo. Asuka tinha entendido que a razão dele estar ali era para levá-la para casa. Só que estava sendo desafiador e divertido tentar arrancar algum sinal de irritação do seu segurança.

- Onde está o Mark? - Ela falou após quase um minuto de troca de olhares de “quem cede primeiro” com Snake.

- Foi pegar o Shinji. Vamos levar vocês dois para casa, Katsuragi disse que vai ter que ficar aqui por um tempo.

- O dia e a noite toda, ela quis dizer... - Asuka completou com um forçado desinteresse na voz. Mas na verdade o fato de ficar sozinha em casa com Shinji a deixava nervosa. Em todos os sentidos.

- Se quiser podemos ficar lá com vocês por algum tempo, não temos nada pra fazer mesmo...

- Não, obrigada, mas adultos responsáveis me controlando não é algo que eu estou acostumada.

- O que quer dizer com responsáveis? - O segurança perguntou com certa curiosidade apesar de já adivinhar no que a ruivinha se referia.

- Vocês foram lá em casa outro dia... sabem que Misato é a definição perfeita de responsabilidade...

- Ah, dê algum crédito a ela. Com certeza é melhor viver com alguém como a Misato do que comigo.

- Talvez. Apesar de você me parece uma pessoa incrivelmente chata.

- Hehe... é verdade. Cortesia de anos de treinamento militar.

- Hmm, e onde você serviu ou treinou esse tempo todo? Um soldado do seu nível deve ter viajado pelos mais variados países, não é? Deve ter várias histórias interessantes - Asuka quase não acreditava, mas o velho Pliskin acabava de levantar um tópico atraente para uma conversa.

- Vários países, várias zonas de guerra, lutado com diversos inimigos... mas duvido que uma pirralha como você se interesse pela minha história. Dormiria ainda no começo dela.

- Então conte sua história lá em casa, pelo menos assim eu consigo dormir sem me preocupar com o pervertido do Shinji.

- Ah não! Contar historinha pra criança dormir já é demais! - Snake tentou responder com indignação, mas sabia que no fundo estava gostando da discussão infantil que estava tendo com ela.

- Calado! Você que me provocou, agora agüenta! Ou eu falo para o comandante que não está cumprindo o seu trabalho!

Há! Eu pedi pra isso... Snake pensou sorrindo e logo avistou Mark e Shinji em frente ao elevador que levava ao estacionamento.

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As ruas de Tóquio-3 costumam ser bastante movimentadas, principalmente perto do anoitecer quando um número incontável de veículos invade as estradas. As pessoas acabavam de sair de seus trabalhos e se dirigiam a seus lares. Era a hora do rush. E na capital do Japão não era diferente das outras cidades do mundo. Os mesmos veículos, as mesmas pessoas estressadas e ansiosas. Definitivamente impossível de se manter calmo naquele momento. Ainda mais se o seu nome é Soryu Asuka Langely.

- PASSA POR CIMA DELE!

Os três ocupantes do carro olharam assustados para a jovem alemã. Todos ali sabiam que deixar Asuka irritada era perigoso, ainda mais em um lugar em que eles não estavam aptos a resolver a situação. Quer dizer, estavam a mercê do engarrafamento, e isso não era bom. Eles logo desviaram o olhar da pequena ruiva, novamente assustados. Era impressionante como ela conseguia aterrorizar até mesmo pessoas treinadas a lidar com o medo, como era o caso dos dois seguranças nos bancos da frente da caminhonete preta.

- O QUE FOI?

Silêncio...

Eles também sabiam que responder, ou na pior das hipóteses discutir com Asuka não era algo inteligente. E o jovem Ikari sabia disso tão bem quanto qualquer um. E Shinji Ikari não é um ser dotado de inteligência como os dois outros homens naquele carro, que sabiam perfeitamente a hora de ficar calados, por mais que as intenções fossem boas. Bom, de certa forma isso é um bom sinal, quer dizer que pelo menos o garoto se preocupa com as pessoas. Certo?

- C-calma, Asuka... não precisa se irritar...

Certo, mas Asuka não é uma pessoa que enxerga muito além do seu próprio nariz. E isso quer dizer que se não fosse por Mark e Snake com muito custo conseguindo dominar a situação, o jovem garoto voltaria a pé para casa. Aliás, eles tiveram alguma ajuda externa: um conversível amarelo acabava de passar a toda velocidade na contramão da pista vazia ao lado do carro deles. Isso seria uma cena quase normal se não fosse pelos quatro caminhões que o seguiam.

- Aquele não era...

- Era - Snake respondeu depois de fechar o vidro da janela por onde tinha acompanhado a perseguição.

- E por que tinham caminhões atrás deles?

- Nem me pergunte...

- ANDA LOGO! A FILA TA ANDANDO!

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- E então crianças? Conseguem ficar sozinhos em casa sem se matar? - Mark Goodspeed perguntou para o nada. A resposta veio momentos depois.

- SAI DA MINHA FRENTE!

- Eu não estou na sua frente! - Shinji respondeu assustado.

Estava encostado na parede. Prensado, melhor dizendo. Apontava para a direção do pequeno corredor onde ele e Asuka estavam. De fato ele não estava no caminho da garota, mas não era isso que iria mudar a opinião dela, ou o humor. Ela queria simplesmente evitar qualquer contado com o piloto da Unidade 01.

- TÁ SIM!

Foi ai que veio a resposta da pergunta idiota de Mark. Shinji Ikari acabara de passar voando pela frente do segurança, caindo em frente a porta do banheiro e levando abaixo algumas caixas empilhadas que tiveram como destino o corpo do pobre garoto.

- É... acho que não...

- Ai! - Shinji gritou quando outra coisa caiu sobre ele. - Meu cello?

Pouco depois Shinji carregava o case com cello até a sala. Sentou no sofá e começou a retirá-lo. Shinji não sabe o que deu nele para tocar o instrumento, já não o fazia há meses, para falar a verdade ele não tinha a menor idéia onde Misato o tinha guardado. Até tentou perguntar para ela onde estava o cello, mas a major respondeu que estava bêbada e não se lembrava. E ele também não se preocupou nem um pouco em procura-lo. Quem sabe tocar o instrumento de quatro cordas diminua um pouco a tristeza dos últimos tempos, apesar dessa ter sido magicamente amenizada quando a Unidade 01 voltou. Mas ainda haviam as dores das pancadas da sua companheira de trabalho. Talvez o cello fizesse alguma coisa a respeito.

- Eu vou indo pra casa... - Snake falou baixo para ninguém ouvir. Quando estava quase alcançando a porta alguém segurou o seu terno.

- Ei, Pliskin, eu sei que têm mais o que fazer, mas dá pra pegar o meu violão lá em casa? - Ver Shinji com o violoncelo pareceu uma boa chance de acalmar os ânimos naquela casa, e principalmente de uma certa pessoa.

O piloto da unidade 01 se surpreendeu com a agilidade que ainda conseguia tocar. Não que se considerasse um bom violoncelista, apesar de várias pessoas o terem elogiado e por incrível que pareça até mesmo Asuka estava entre elas. Ele poderia ficar o dia todo ali tocando, afinal era a primeira vez que se sentia realmente bem em tocar. Todos os seus problemas pareceram sumir por... dois minutos. Foi o tempo que ele levou para começar a tocar e ser interrompido pela voz irritante de Asuka.

- Para de tocar essa droga! Eu to tentando dormir! - Veio a voz do quarto dela.

E ela disse que eu tocava bem... deve ser por causa do dia ruim que ela teve... Assim ele esperava. Por mais que estivesse adorando voltar a tocar o seu instrumento, um pedido de Asuka era uma ordem. O cello estava para entrar no case quando alguém se sentou no sofá ao lado dele e chamou sua atenção. Era Mark Goodspeed com um violão. Bem bonito, por sinal. Parecia ser do tipo caro a julgar pelo nível de detalhes e principalmente pela cor. Provavelmente tinha sido feito especialmente para Mark, uma vez que um violão como aquele não se encontrava em qualquer lugar. De cor verde escura, haviam detalhes pretos e brancos de uma arte exótica, quase tribal, que após envolver a boca, seguia com uma linha que ultrapassava o cavalete e contornava as beiradas do corpo. Essas, assim como as trastes, eram douradas. Para completar, as cordas eram de um nítido e brilhante prata e sem nenhum sinal de desgaste, provavelmente recém compradas.

- E aí! A quinta sinfonia de Beethoven não tem violão?

- Acho que não.

- Ei, sei de uma que pode ser tocada por violão e cello: Canon, de Johann Pachebel.

- Ah... eu conheço essa...

- He, o primeiro one-hit-wonder da história - Snake comentou encostado na parede.

Parece que ele resolveu ficar mais um pouco, provavelmente para ver a reação de Asuka quando visse os dois e que o barulho não cessou. Num primeiro momento isso seria mais interessante do que ver os outros dois tocarem. Por mais que tenham começado com uma música clássica, Snake tinha a impressão que em pouco tempo Mark estaria fazendo o garoto tocar Led Zeppelin com o violoncelo. Mesmo se isso não fosse possível.

- Mas... não vai ficar um pouco estranho?

- Ah, eu tenho certeza que um violino vai nos acompanhar logo, logo. - Mark respondeu ao garoto.

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Amazônia, América do Sul

Dois olhos azuis observavam um pequeno pássaro amarelo. Aquela cena provavelmente era a mais bonita e fantástica que o homem de cabelos loiros tinha visto nos últimos dias. Quase uma semana ali naquela floresta equatorial e este foi o único momento ali digno de uma fotografia. A tranqüilidade que passava aquele passarinho e o momento eram tantas que ele botou suas armas no chão e procurou pela sua câmera digital. Não, ele não era alguém com gosto para fotografia, muito menos esse era um hobby para ele, que aliás ele vinha tentando achar um fazia algum tempo. Era um soldado, mas acima de tudo prezava pelas belezas que a natureza podia oferecer, e o momento em questão era provavelmente um dos raros que lhe seriam oferecidos na sua estadia na Amazônia.

Tirou o aparelho digital da mochila e posicionou nas mãos. Mirou no pequeno animal e ficou admirando-o por algum tempo pela tela de cristal líquido da câmera. Click! Lá estava a foto guardada na memória da câmera e no seu banco de dados da sua base no outro lado do mundo. Um dos prós da nova tecnologia. O problema seria que em questão de segundos o coronel Roy Campbell o chamaria pelo codec perguntando que baboseira era aquela que ele tinha acabado de enviar pela internet. Aquela câmera era usada para fins estratégicos, como conseguir confirmação da existência de ameaças ou para traçar planos estratégicos de invasão e assalto com a ajuda das fotografias. E não para passarinhos. Foi antevendo a bronca do coronel Campbell que a imagem de Rosemary passou pela cabeça de Jack Raiden. Provavelmente não haveria nenhuma discussão sobre a foto que ele acabara de tirar. Rose entenderia perfeitamente os motivos de Raiden e quem sabe até fizesse algum comentário para alegra-lo.

Mas eu devia ter pensado nisso antes de te-la engravidado... Ele suspirou e voltou a olhar para o passarinho. O pequeno pulou com graça de um galho para o outro na arvore onde estava e foi em direção a um ninho, provavelmente o seu. Raiden deu uma risada ao ver as cabeças dos filhotinhos saltarem de dentro do ninho e cumprimentarem a mãe. Nem pensou nas conseqüências. Tirou mais uma foto antes de guardar a câmera.

Um soldado trajando uma roupa camuflada em dois tons de marrom se aproximou dele. O loiro observou o sul-americano por algum instante, principalmente a roupa que ele trajava. Era a de um militar normal, um soldado de infantaria. Não oferecia proteção nenhuma exceto pela sua camuflagem oferecida pelos tons de cores. O soldado provavelmente o estranhou também: um homem vestido com as roupas de Raiden não era comum de se ver por aquelas regiões. Poucos anos atrás tudo bem, aqueles soldados especiais estrangeiros tinham sido muito usados nas guerras civis que ocorreram nas cidades daquele continente. Bem, mas numa floresta, talvez fosse a primeira vez que um agente daqueles comandava alguma operação.

O jovem militar tirou o chapéu de mesmos tons de marrom como a roupa e o segurou entre o braço e o corpo, fez posição de sentido mostrando um pouco de respeito, coisa que Raiden tinha visto pouco na sua estadia. Não que ele fizesse muita questão disso.

- Senhor, toda a ameaça inimiga ao longo do Negro River foi eliminada. As equipes Guará, Albatroz e Gavião asseguraram os perímetros das cidades próximas. Os Araras tiveram alguns contratempos na capital, mas com a chegada da sua Bravo Team, as forças americanas foram reprimidas e em poucos minutos a ameaça foi dizimada.

As palavras do soldado foram um pouco confusas para Raiden, ele misturou inglês com a língua daquele país, e isso já era confuso o bastante, para piorar ainda tinha nomes das equipes, todas nomeadas a partir de animais da fauna nativa e que o agente especial logo os considerou quase impossíveis de pronunciar, pelo menos com perfeição. Apesar da confusão das línguas, a última palavra do soldado foi a que mais chamou a atenção de Raiden, o bastante para sua curiosidade pedir uma melhor explicação para o jovem militar.

- Dizimada?

- Sem prisioneiros senhor. Houve alguns protestos da Bravo Team, mas a capitã Silverburgh amenizou os ânimos dos seus soldados.

Era o resultado de tantos anos de hostilidade americana. Não só os povos da América do Sul, mas como os de todas as partes do mundo não viam com bons olhos os americanos. E este era um bom motivo para descontar a raiva contra os americanos, ainda que chamar mercenários - como eram os inimigos - de patriotas de qualquer que seja o país, mesmo sendo grande maioria deles americanos, fosse algo meio errado. Mas parecia que era isso que os sul-americanos tinham instituído pelo senso comum: sem prisioneiros. Em uma parte da sua consciência, Raiden chegava a dar um pouco de razão aos sulistas.

- A única coisa que podemos fazer e não repetir os gestos dele, tenente... Mendes - Raiden acentuou um sotaque espanhol ao falar o nome escrito na roupa. De alguma forma, o tenente pareceu mudar de humor de repente. Ignorou o olhar do jovem e voltou a falar. - Avise a tropa que teremos dez horas de descanso, vamos esperar o dia amanhecer e começar a subir o Uaupes River. Continuando pela margem direita vamos chegar num vilarejo guardado pelas tropas brasileiras e pelos Pacificadores das Nações Unidas, a partir daí vocês vão em veículos até a Colômbia. - Raiden estava realmente estranhando o olhar indignado do jovem. Até onde ele sabia um tenente e os demais abaixo da hierarquia de capitão deviam direcionar algum respeito a esse último.

- O senhor não vai nos acompanhar até a Colômbia? - O soldado perguntou com interesse. O capitão Raiden, apesar da provável origem americana era uma boa pessoa. Mesmo sendo de uma divisão superior a qualquer exército daquela região, e provavelmente do mundo também, ele tratava todos da tropa de forma amigável. Todos os dias distribuía seus “Hi’s!” e “Good Morning’s!” para todos os soldados, apesar de que no começo muitos não terem entendido o inglês dele. A saudação militar já tinha sido quase esquecida naquela unidade. Foi trocada por “Hi, capitão!” e “Hello, capitão!”, com os cabos e sub-tenentes obviamente misturando as duas línguas.

- Não, vou pegar um helicóptero até a capital e depois pego um jato direto para Tóquio-3 no Japão. Parece que os Patriots vão começar a atacar por lá. Botar panos quentes em conflitos aqui na floresta é fácil, não há muitos civis por aqui, apesar da dificuldade que estamos passando para explicar para os moradores das cidades o que é tudo isso. Só que um conflito armado numa cidade como Tóquio é algo diferente, não vamos conseguir segurar a mídia lá. É só ver os Evangelions e aqueles monstros que eles lutavam, era pra ser segredo, mas sempre tem um idiota com uma filmadora que não obedece as ordens - Raiden ficou pensativo por alguns instantes. Ir para a capital do Japão estava começando a deixa-lo apreensivo. Eram coisas gigantes demais pro gosto dele. Evangelions, e ainda era capaz de mais daqueles monstros aparecerem. Ainda havia as tais de Seele e Nerv que não iam muito bem. E pra completar, como se tudo aquilo fosse pouco, os Patriots iam começar a agir lá, e isso significava problemas. E Metal Gears...

- É verdade, a mídia é sempre um problema, senhor.

- Até que alguém venha para cá me substituir, provavelmente você vai ser promovido ao comando, Mendes - Raiden respondeu e logo viu a cara fechada voltar ao jovem tenente.

Pensei que qualquer um gostaria de ser promovido. Logo em seguida pegou suas armas: um rifle Colt de fabricação americana e um embrulho que todos da tropa achavam estranho. Tinha pouco mais de um metro de altura e era envolto por um pano e cordas. Alguns achavam que só podia ser uma espada, mas isso seria algo meio inútil num campo de batalha moderno.

- Hm, que pena... Ah, e senhor! - Raiden se virou para o tenente Mendes. - O senhor poderia parar com esse sotaque espanhol... o pessoal não gosta...

- Ah, então é isso. Certo, desculpe então! - E o rapaz loiro se virou e foi em direção ao acampamento. O jovem tenente ficou ali parado, incrédulo. Um militar de hierarquia superior se desculpar a seus subordinados não era algo que se vê todo dia.


Notas do autor: Desculpem pela demora, tive um bloqueio que só foi passar quando começei a escrever uma fanfiction nova (devo postar nos próximos meses). Ok, nem eu consigo mais segurar a Rei pra história. No próximo capítulo ela aparece. Tive que mudar umas pequenas coisas na história por isso, mas elas só vão deixar tudo mais interessante (e desafiador pra mim ¬¬)

Escrito ao som de: Emerson, Lake & Palmer - Karn Evil 9 e suas vááárias impressions, The Cult - Star e os álbuns Mother's Milk do Red Hot Chilli Peppers e Keepers of the Seven Keys parts 1, 2 & 3 do Helloween.

Capítulo 5

Capítulo 3

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