Samurai X-Men

Capítulo 6: O Dia Seguinte


Manhã do dia 31 de Setembro do ano 11 da Era Meiji.

Kenshin acordou antes de o sol nascer, como de costume e logo iniciou sua rotina no dojô Kamia, onde era ao mesmo tempo cozinheiro, faxineiro e responsável pela lavanderia.

Nesse momento ele estava se esmerando no preparo do desjejum. As cerca de quatro horas de sono foram mais do que suficientes para descansar o corpo e curar a bebedeira da noite passada. O mesmo não se podia dizer de Sanosuke, que ainda ressonava alto no quartinho que ocupava. Além de acordar tarde certamente ele iria curtir uma bela ressaca. Yahiko costumava dormir até cerca das 8 horas. Sendo assim a primeira pessoa que Kenshin veria seria Kaoru. Era para ela que ele estava cozinhando.

Ele estava preparando a refeição do jeito que ela gostava. O melhor jeito de tentar remediar o constrangimento pelo mal entendido do dia anterior era com uma boa conversa. “Vai ser mais fácil se ela estiver de estômago cheio” pensou Kenshin enquanto terminava de preparar a sopa de misô e o peixe grelhado acompanhados de chá.

Já eram cerca de sete da manhã e Kaoru ainda não tinha dado as caras. Ela sempre acordava por essa hora. Kenshin associou a demora ao fato dela ter provavelmente dormido tarde, sendo assim ele aproveitou para dar seguimento às sua tarefas pegando uma vassoura e começando a varrer o pátio.

Já eram oito horas passadas quando ele terminou de varrer, durante todo o tempo em que esteve trabalhando Kenshin olhava de quando em quando para a casa esperando ver Kaoru surgir a qualquer momento vestindo seu usual conjunto de gi branco e hakama preto que ela usava para os treinos com Yahiko. A essa altura Kenshin estava decididamente preocupado com a demora dela. Não era nada comum Kaoru acordar tarde.

Ainda segurando a vassoura, começou a caminhar na direção da casa, mas acabou parando no meio do caminho.

De repente lhe ocorreu a idéia de que ela poderia não estar muito a fim de encontrá-lo.

Kenshin sabia perfeitamente que ela nutria um sentimento que ia além da simples amizade e companheirismo por ele. Era natural que ela estivesse magoada por pensar que ele tinha ido se divertir com outras mulheres. A idéia de que ele a fez sofrer, mesmo que por um mal entendido, causou um profundo remorso a Kenshin. Ele não se sentia pronto ainda para retribuir aos sentimentos de Kaoru, ou melhor, ele sentia que não tinha esse direito. Havia muitos pecados ainda a expiar.

- “Mas... quem sabe um dia?” - pensou enquanto acariciava a cicatriz em forma de cruz. - “Um dia talvez até mesmo este servo tenha o direito de ser feliz... né Tomoe?”

- O que você tá fazendo aí parado e com essa cara esquisita?

- Oro! - Kenshin acordou de repente do seu devaneio, ele estava tão distraído que não notou a aproximação de Yahiko que naquele momento o olhava da varanda da casa com uma toalha em volta do pescoço e ainda vestindo o kimono de dormir.

- Yahiko, bom dia. Dormiu bem?

- Mais ou menos. Mas pelo jeito que o Sano tá roncando, a noite de vocês foi puxada hein?- o garoto tinha um sorriso torto na cara.

- Não foi nada do que você está pensando, - respondeu Kenshin mais que depressa - o Sano só está assim porque bebeu demais.

Ante a atitude defensiva de Kenshin, Yahiko resolveu brincar mais um pouco.

- Para com isso Kenshin, não é pra mim que você tem que dar explicações. Mas mudando de assunto esse Sanosuke não tem a menor resistência pra bebida, até eu ganho del...

Desta vez quem interrompeu o falatório do garoto foi Sanosuke que apareceu do nada e aplicou-lhe um belo “pé na bunda”. O chute foi fraco, mas foi o suficiente para atirar o aprendiz de espadachim de cara no chão. Este por sua vez se ergueu num piscar de olhos e encarou Sanosuke com uma cara de raiva tão feroz que fazia saltar uma veia da têmpora.

- O que deu em vocês? Não posso falar mais nada é?

- Isso é pra você aprender a me respeitar, moleque. - Sanosuke também tinha uma expressão feroz no rosto e a mesma veia saltada - Desde quando um pivetinho que nem tem barba na cara vai conseguir beber mais do que eu?

- V-você me paga, crista de galo! - respondeu Yahiko com uma cara mais medonha ainda.

- Pode vir, tampinha.

Sem perder tempo Yahiko tomou a vassoura que ainda estava nas mãos de Kenshin e partiu pra cima de Sanosuke.

Kenshin nem ao menos tentou separá-los, ele já tinha desistido a muito tempo de intervir nestas pequenas “guerras domésticas” que vez por outra explodiam no dojô Kamia. Ele sabia por experiência própria que a melhor alternativa era deixar que os dois “brincassem” até se cansar.

Sendo assim ele se afastou para dar mais espaço aos contendores pensando em ir lavar roupa. Ele só estava impressionado com a incrível recuperação de Sanosuke, era a segunda vez em poucas horas que ele passava de um estado de letargia para o de total alerta num piscar de olhos, parecia que o seu corpo tinha uma tendência a responder de uma maneira bem conveniente quando algum interesse estava em jogo.

- Quando terminarem vão tomar café. - falou Kenshin sobre o ombro.

Mas havia algo errado. Alguma coisa estava faltando. Com este pensamento Kenshin parou e se virou. Os dois continuavam brigando, fazendo uma algazarra dos diabos. Kenshin ficou observando-os por alguns segundos tentando definir de onde vinha aquele sentimento. E então, a inquietação que ele vinha sentindo desde a noite anterior voltou mais forte do que nunca.

- PAREM!!

O grito de Kenshin teve o efeito de parar instantaneamente tanto Yahiko quanto Sanosuke. Ele só conseguiu isso fazendo uso do seu Ki, sua energia de combate.

- Não estão sentindo falta de alguma coisa? - perguntou Kenshin aos dois perplexos amigos enquanto se aproximava.

Sanosuke encarou Kenshin com um olhar perdido até que se voltou para a casa silenciosa:

- É mesmo. Cadê a donzela? Não é normal ela ficar na cama até essa hora. Ainda mais com toda essa balbúrdia. Ela detesta que a gente brigue (a não ser quando ela mesmo começa, é claro).

Logo depois de dizer isto Sanosuke voltou vivamente a cabeça e encarou Kenshin com uma expressão de quem finalmente tinha entendido onde o outro queria chegar.

Ao mesmo tempo os olhares inquisidores de Sanosuke e Kenshin se voltam para Yahiko. O garoto conseguiu ler a pergunta nos olhos deles.

- Ela, ela saiu logo depois de vocês ontem, disse que ia na Megumi, não vi que hora ela chegou... Ei! Espera Kenshin.

Kenshin Himura voou na direção da casa, seguido de perto por Sanosuke e Yahiko. Sem perder mais tempo abriu a porta do quarto de Kaoru com violência. O que ele mais queria era que ela estivesse ali e retribuísse a entrada intempestiva com um belo golpe de shinai.

Mas infelizmente o quarto estava vazio. Perfeitamente arrumado.

Sob o olhar aturdido de Sanosuke e Yahiko, Kenshin correu para o seu próprio quarto e pegou sua sakabatou.

- Sano, venha com este servo até o consultório. Yahiko, espere aqui. - disse ele enquanto ajustava a espada à cintura sem ao menos olhar para os companheiros.

- O que está acontecendo? Quero ir junto. - tentou protestar o menino.

- Você fica aqui para o caso dela aparecer, tonto. - Sanosuke não conseguiu esconder um tremor de preocupação na voz.

- Vamos! - disse Kenshin.

O trio saiu em disparada na direção do portão da frente. Yahiko queria acompanhá-los, nem que fosse só até ali.

Kenshin abre o portão com força. Mas tem a sua saída barrada pela figura de um policial. Ele parecia estar prestes a bater na porta. Por alguns instantes todos ficam apenas se olhando.

O policial, pego de surpresa e um pouco perturbado pela presença de Kenshin leva alguns segundos para se recompor.

- S-senhor Himura, eu presumo?

- Hai. - a resposta de Kenshin foi quase um sussurro. A presença daquele policial ali naquela hora não podia ser coincidência. - O que o senhor deseja?

- Desculpe incomodar. - respondeu com uma saudação polida - Tenho um recado para o senhor de parte do subdelegado Gorou Fujita.

 

Não muito longe da zona portuária de Tókio, um antigo bairro comercial estava se expandindo. Com a abertura dos portos que se seguiu ao fim do shogunato, era cada vez maior a presença de estrangeiros que vinham estabelecer ali seus negócios. Depois de duzentos anos de isolamento, o Japão, e em particular Tókio estavam se tornando em pouco tempo uma nova Xangai, atraindo muitos interessados naquele novo e expressivo mercado.

Cedo da manhã o movimento de vai e vem na rua já era intenso. Naquela parte da cidade já era bem comum se ver japoneses vestindo kimonos andando lado a lado com estrangeiros vestindo casaco e colete. Também nas novas construções era possível ver a crescente influência ocidental, como no caso de um novíssimo prédio em estilo vitoriano inaugurado há poucos meses atrás. Na sua austera fachada de tijolos havia uma placa pendurada em um poste onde brilhavam caracteres dourados que ainda poucos japoneses sabiam decifrar.

Pessoas como o jovem estudante da também recentemente inaugurada universidade de Tókio[1]. Ele vinha pela rua na companhia de um amigo. Este, ao olhar o prédio, não pôde deixar de se admirar com a brutal discrepância que ele tinha com o ambiente.

- Ei, Kensuke. - disse este segurando o braço do amigo universitário.

- Que foi, Hiro? - perguntou o estudante meio contrariado - Eu não posso me atrasar para a aula.

- Que prédio esquisito é aquele? E o que está escrito naquela tabuleta? Quero ver se você já está bom em inglês.

- Bom... - ele para e olha a tabuleta - pelo que ouvi dizer aquilo ali é um banco ou coisa parecida e o que está escrito na placa... - Kensuke demora alguns segundos estudando o texto.

- Randau, Ruckman & Rake. - como a maioria dos nipônicos não conseguiu pronunciar de forma correta o “L” - E mais umas coisas que eu não consegui entender.

- Que estranho. - comentou Hiro com desdém.

- Você não viu nada, - falou Kensuke chamando a atenção do amigo com uma leve cotovelada e indicando uma direção com a cabeça - dá só uma olhada no gaijin que acabou de sair de lá.

Ao contrário da maioria dos estrangeiros, aquele de quem Kensuke falava, apesar de corpulento, era baixo até mesmo pelos padrões japoneses. Vestia uma roupa castanha escura e um chapéu de vaqueiro preto. E trazia na boca um charuto pra lá de grande. Ele parou junto à entrada do prédio e ficou olhando de um lado para o outro, com um ar de quem estava avaliando o terreno.

- Olha só. - falou Hiro em tom de gracejo - Com certeza é o cara mais feio que eu já vi na vida.

- É verdade. - concordou o outro com um risinho zombeteiro - Parece um orangotango branco de chapéu.

De repente, o inusitado estrangeiro lançou para a dupla um olhar que intimidaria até um samurai dos velhos tempos. Os dois pararam de rir imediatamente. Apesar da distância de mais de quinze metros que os separavam e o tumultuoso tráfego de pessoas e carroças na rua os dois tiveram absoluta certeza de que o gaijin os ouvira, e pior ainda, os entendera.

- E-eu tenho que me apressar - disse Kensuke se pondo em marcha, quase correndo.

- Espere por mim.

Logan observou por alguns segundos os dois rapazes que se afastavam sem ao menos olhar para trás. E depois, com um sorriso indulgente, riscou um fósforo e acendeu o enorme charuto que tinha preso entre os dentes. Assim que tirou uma grande baforada voltou a observar o cenário que tinha diante dos olhos.

- Isto é mesmo bem diferente da Tókio que eu conheço.

- Você é uma das poucas coisas que eu conheço que não muda com o passar dos tempos, Logan.

Logan se virou para encarar o autor da frase em inglês. Um homem asiático poucos centímetros mais alto que ele saía do prédio naquele momento. Vestia calças pretas, camisa branca com gravata borboleta e colete estampado. O rosto de idade indefinida poderia pertencer tanto a um homem de meia idade quanto a um velho de 60 anos. Um bigode e os óculos de aro redondo davam ao homem uma aparência de negociante ou banqueiro. Na mão direita ele trazia um chapéu-coco e uma bengala de bambu. Um casaco preto estava pendurado no outro braço.

- Olha quem fala, - disse Logan também em inglês - tu já tinha essa cara de uva passa no tempo em que os Beatles ainda tavam juntos, de lá pra cá não mudou quase nada... Só ficou mais feio.

- Acredite meu amigo, vindo de você isso é um grande elogio. - respondeu a figura, parando ao lado do mutante - Quanto a minha longevidade, devo isso a uma alimentação saudável e ao meu inabalável bom humor.

- Sei, sei, um dia eu descubro o teu segredo, Chang. E então, vai me contar o que um cara que deveria estar supostamente morto e enterrado está fazendo aqui?

- Como sempre, as notícias a respeito da minha morte foram um tanto quanto exageradas. Estava curtindo minha merecida aposentadoria quando fui convocado pelo senhor Landau em pessoa para essa missão. Mas tenho que confessar que estava com saudades dessa vida.

Enquanto falava, o homem chamado Chang vestia o casaco e ajustava o chapéu na cabeça. Logan não ficou muito convencido com a explicação, mas resolveu não insistir no assunto. Ele não presenciou a “morte” de Chang nem tampouco viu seu cadáver ou funeral, e além do mais Logan sabia por experiência própria que voltar dos mortos era uma coisa até comum no mundo de onde vieram. O que o incomodava era o ressurgimento de Chang justo naquele momento. De algum modo Logan sabia que a LL&L estava escondendo algo a respeito daquele caso e o envolvimento de Chang, supostamente fora de ação há anos, só servia para aumentar suas suspeitas.

Por outro lado havia uma difícil missão a cumprir e Chang era um dos melhores parceiros com que ele poderia contar. Sendo assim Logan resolveu deixar de lado suas preocupações... Por enquanto.

- Há, até parece. - falou Logan em tom jocoso - Pelo que eu me lembro, nas nossas missões o único que tinha que se arriscar era eu. Bom, chega de conversa fiada, o que cê tem pra me dizer?

Sem mostras de ter se incomodado com o comentário de Wolverine, (mesmo porque era a mais pura verdade) Chang sacou um bloco de anotações de um dos bolsos e começou a ler.

- Vejamos: poucas horas antes de você chegar nosso alvo entrou em ação mais uma vez. Ele e um grupo de ninjas do Tentáculo atacaram a sede do clã Yoshioka. Mataram todos, inclusive o próprio oyabum do clã e botaram fogo na mansão. Deste modo agora é só o Tentáculo que dá as cartas no submundo de Tókio.

- Quem diria, - comentou Logan tirando outra baforada do seu charuto - o Dentes-de-Sabre mancomunado com o Tentáculo, não podia ser pior.

- Infelizmente ainda não pude encontrar o esconderijo deles. É aí que você entra meu amigo, tenho certeza de que com a ajuda de seus talentos naturais e os meus contatos junto às autoridades não demorará muito para o encontrarmos. Tome, - disse Chang tirando do bolso interno do casaco uma carteira e alguns papéis e entregando para Logan - estes são seus documentos, você é o inspetor John Logan da inteligência militar do Canadá. Além das credenciais há uma autorização assinada pelo ministro do interior japonês assegurando livre acesso e circulação por qualquer lugar. Não se preocupe, é tudo garantido.

Logan verificou as credenciais e os passes, tudo estava perfeito. Na carteira havia além de documentos uma boa quantidade de dinheiro da época. Mas com certeza o item mais útil seria a carta com o timbre imperial e a assinatura do ministro do interior em pessoa, com isso ele poderia fazer quase tudo o que quisesse sem ser importunado pelas zelosas autoridades japonesas.

- Parabéns Chang. - falou Logan enquanto guardava os documentos num dos bolsos internos do casaco - Tu continua sendo o melhor agente de apoio e logística que eu conheço. Por onde a gente pode começar?

- Obrigado meu amigo. Eu estava pensando em irmos encontrar o meu contato junto à polícia. Com certeza o subdelegado Fujita terá alguma informação interessante para compartilhar conosco depois do incidente de ontem.

Neste momento, um rapazote passava anunciando em altos brados a principal manchete dos jornais que tinha debaixo do braço:

- LEIAM TODOS, MASSACRE NA ZONA LESTE. FAMÍLIA YOSHIOKA ATACADA POR NINJAS. LEIAM TODOS.

Com um gesto Logan chamou o menino; pediu um jornal e com a ajuda de Chang pagou a quantia correspondente acrescentando uma boa gorjeta. O garoto ficou maravilhado com a generosidade daquele gaijin esquisito e se curvou várias vezes, com efusivas demonstrações de agradecimento antes de seguir seu caminho gritando mais alto ainda.

Enquanto Logan lia a matéria de capa, Chang foi chamar a carruagem que os conduziria. Após embarcarem, Chang estava prestes a indicar o destino desejado ao cocheiro quando Logan o interrompeu botando a cabeça para fora do veículo e falando num japonês claro e fluente:

- Dozô.[2] Sabe onde ficava a sede do clã Yoshioka?

- Sim senhor, mas é uma viagem um pouco longa, pode demorar algumas horas.

- Sem problema, toca pra lá. Vai ganhar um iene[3] a mais se chegar antes do almoço.

Com um estalo de chicote a carruagem se pôs em movimento, Logan recomeçou a ler o jornal. Chang parecia curioso quanto à atitude do colega.

- Eu pretendia dar um pulo na delegacia, mas parece que você já tem outros planos.

- Só quero dar uma olhada nesse estrago. - respondeu Logan sem tirar os olhos da leitura - Além do mais, é bem provável que a gente encontre esse tal Fujita por lá.

 

Dentre os vários templos budistas e xintoístas que existem em Tókio, talvez o menos conhecido e visitado seja o que fica na encosta norte do monte Ueno. Isto se deve não só pelo seu isolamento e difícil acesso, mas também pela existência de templos maiores e mais famosos nas redondezas. O templo em si abrigava uma pequena congregação de monges zen-budistas da seita Amida que passavam a maior parte dos dias zelando pela manutenção do complexo religioso que além do templo abrigava também vários santuários dedicados a divindades xintoístas.

Todavia o principal motivo para este templo ser pouco freqüentado é a sua proximidade com uma floresta que segundo a tradição popular, é o lar de espíritos malignos e demônios. Alguns dizem até que o templo foi construído ali justamente para impedir que estes ditos espíritos saíssem da floresta. Ninguém sabe se isso é verdade, mas o fato é que nenhuma pessoa entra na floresta sem ter um bom motivo.

De alguma forma a realidade não está muito longe da lenda. Afinal foi no coração desta mesma floresta que o culto ninja do Tentáculo construiu o seu esconderijo, onde há quase trezentos anos vem treinando homens nas artes do assassinato e da espionagem.

Escondida pela densa e alta mata de pinheiros de um vale entre duas montanhas, o quartel general do Tentáculo consistia em um grande prédio central cercado por outras edificações que abrigavam além de alojamentos, oficinas, salas de treino, laboratórios e até uma fundição onde armas de vários tipos e tamanhos eram produzidas. Na verdade o próprio templo budista na entrada da floresta era parte do complexo e os monges eram ninjas, cujas incumbências eram zelar pela entrada, desencorajar os curiosos e se necessário eliminar os invasores que mesmo depois de todos os avisos queiram entrar na floresta.

Dentes-de-Sabre tinha acordado tarde. A missão da noite anterior foi cansativa e além disto, ele teve de fazer um longo e detalhado relatório verbal para o chefe do clã antes de poder descansar. Neste momento o mutante estava acabando sua refeição matinal que sempre era servida nos seus aposentos no prédio principal. Ele vestia apenas um kimono branco leve que fazia às vezes de pijama e estava sentado de pernas cruzadas sobre uma almofada. Debruçado sobre uma mesa baixa, ele devorava os restos do que a algumas horas atrás foi um veado silvestre.

Kiku, a serviçal designada para servir Creed naquela manhã, estava sentada perto da mesa e observava num misto de incredulidade e nojo o estrangeiro acabar de devorar carne assada em quantidade suficiente para alimentar dez homens:

- É um prazer ver que o senhor está apreciando a refeição, Creed-san. Gostaria de tomar um pouco de chá?

Kiku tinha um sorriso suave e uma entonação vocal encantadora. A moça, que vestia um kimono informal azul escuro com um obi vermelho, também era uma onimitsu, treinada desde a infância para ser uma assassina e também uma mestra na arte da dissimulação e persuasão. E era só devido ao seu treinamento que ela estava aturando os modos grosseiros e a falta de etiqueta daquele gaijin petulante.

- Cê sabe que eu não tomo essa bebidinha de boiola. - Creed empurrou com repugnância a xícara que lhe era oferecida quase derramando o conteúdo - Sabe do que eu mais sinto falta Kiku? Dum bom filé de búfalo mal passado acompanhado de uma cerva gelada. A comida de vocês é muito sem graça e a bebida é mais ainda.

- O que seria uma “cerva” Creed-san? - Kiku ainda sorria, mas teve de conter uma ânsia de vômito quando viu Creed usar uma de suas garras de adamantium para tirar grandes pedaços de carne de entre os dentes.

- Não tô com saco pra te explicar, guria.

- Desculpe se fui inoportuna. - Kiku que estava sentada sobre os joelhos se curvou até o chão ao pedir desculpas, na verdade ela fez isso para esconder uma expressão de ódio que simplesmente não pode conter, quando se ergueu estava sorrindo novamente.

- Deseja tomar seu banho agora?

- Pra falar a verdade eu tô a fim de fazer outra coisa. - Creed parou de palitar os dentes e olhou para a garota com uma cara que não deixava dúvidas.

“De novo não” disse Kiku para si mesma sem conseguir conter um estremecimento causado pelo medo do que poderia se seguir. Foi com dificuldade que ela manteve a expressão amável:

- Devo lembrá-lo novamente que eu estou aqui somente para servir suas refeições e arrumar seus aposentos, senhor Creed. Temos garotas especialmente treinadas para satisfazer suas outras “necessidades”.

- Sempre o mesmo papo, né Kiku?

Enquanto falava Creed se ergueu e contornou a mesa na direção da garota que olhava com o canto dos olhos para a porta como se estivesse avaliando a distância que a separava da saída.

- Só que hoje tu não me escapa.

Com uma agilidade de felino a garota se pôs de pé num salto e correu para a saída. Os relatos das garotas que já estiveram com o gaijin lhe vieram a mente, era melhor arriscar uma fuga e uma possível punição do que cair nas garras daquele animal.

Mas Creed parecia estar esperando por isso, com um pulo ágil ele cortou a rota de fuga da moça, que quase caiu sentada ao se chocar contra o corpo sólido do mutante. A seguir ela foi recuando até sentir as costas tocarem uma parede. Apesar de não soltar nem um pio seu rosto agora trazia uma expressão de puro medo. O que deixava Creed ainda mais excitado.

- Pode espernear à vontade, - disse Creed enquanto se aproximava com um sorriso demoníaco no rosto - Eu adoro quando vocês resistem.

Sem nenhum aviso, a porta corrediça do quarto se abriu. Creed e Kiku se voltaram ao mesmo tempo para ver a figura de um homem emoldurada pela porta.

Ele era alto, com cerda de 40 anos, rosto severo, cabelos pretos e lustrosos caindo soltos sobre os ombros, vestia um kimono e hakama de tonalidades cinzentas com um haori azul índigo. Aparentemente não portava nenhuma arma.

- Kiku-chan, poderia nos dar licença. - disse o homem enquanto entrava.

Recuperando o auto-controle a jovem se curvou profundamente antes de sair, uma vez do lado de fora se ajoelhou, curvou-se mais uma vez e correu gentilmente a porta para fechá-la.

Com uma cara de quem teve um doce tirado da boca Creed cumprimentou o recém chegado com uma curvatura desajeitada:

- Bom dia Sato-sama, a que devo a honra da visita?

- Creed-san. Quantas vezes eu vou ter que dizer que nem todas as nossas jovens estão a sua disposição? Eu duvido que a pobre Kiku aceite servi-lo novamente.

Sato Harada, o atual genin[4] do Tentáculo passeou um olhar desaprovador pelo quarto, onde peças de roupa se espalhavam por todo o lado, franzindo um pouco mais o cenho ao ver a mesa onde ainda estavam os restos do desjejum de Creed.

- Ora. Eu posso garantir que estava só brincando com a menina.

- Sei. Bem, não foi por isso que eu vim vê-lo, - Sato parou em frente ao mutante e cruzou os braços. - porque você não me informou a respeito da mulher que encontraram de madrugada?

Creed teve de se controlar para não dar uma resposta atravessada. Uma das condições que ele impôs para se aliar ao Tentáculo era a de poder agir com certa liberdade, mas por vezes Sato Harada parecia esquecer disto e o tratava como um de seus empregados.

- Considerei o assunto irrelevante. - Creed imitou a postura do interlocutor cruzando os braços - a esta hora aquela mocinha deve estar servindo de pasto pros vermes.

- No nosso ramo nada é irrelevante Creed-san. - Sato tinha agora um sorriso zombeteiro no rosto - E se eu disser que aquela garota não só conseguiu escapar como está agora sob a proteção da polícia?

Como única resposta Creed cerrou os maxilares e fechou a cara. Sato ficou mais uma vez admirado com a absoluta falta de sutileza do estrangeiro, que deixava transparecer todas as suas emoções como uma criança mimada.

- Isso mesmo. - continuou Sato - O até agora infalível Tigre cometeu um erro, um erro que pode por a perder nosso maior e mais ambicioso projeto. A garota não apenas parece saber a localização de nosso esconderijo como graças a sua imprudência ao falar com o senhor Yamagushi parece saber sobre os nossos planos.

- Como aconteceu? - Creed teve de fazer um esforço para controlar o tom da voz.

- Parece que você não está muito convencido ainda... Debushi, Shiro, entrem.

Na mesma hora os dois entraram. Paramentados de ninjas da cabeça aos pés, Debushi e Shiro se sentaram sobre os joelhos e se prostraram humildemente até encostarem as testas no tatame, e assim permaneceram. Creed notou que Debushi tinha uma bandagem sangrenta no lugar em que antes estava sua mão direita.

- Foram estes dois homens que você mandou para eliminar a garota?

- Sim, mas havia outros dois.

- Debushi, repita o seu relatório. - ordenou Sato se dirigindo ao ninja com a mão amputada.

Erguendo o busto Debushi começou a relatar de forma concisa e objetiva todos os fatos de que participou e foi testemunha na madrugada passada. A perseguição, a inesperada morte de Hiko pelas mãos da garota, a encarniçada luta que se seguiu e por fim o episódio do beco, onde teve a mão amputada.

- Depois de tentar atacá-la, - continuou ele - Yamada teve êxito em desarma-la e a pôs fora de combate com um mae-geri[5], mas sua espada se quebrou e como não tinha nenhuma outra arma recuou até a saída do beco para pegar um pedaço da lâmina partida. Eu tinha me afastado para o outro lado da rua e estava ocupado em tentar deter a hemorragia do braço. Foi aí que ele apareceu. Não tive tempo de falar ou fazer qualquer coisa. O policial alto e magro surgiu do nada, Yamada também não percebeu sua presença. De uma distância de mais de três metros o policial, que portava uma katana desferiu uma estocada que varou o pescoço de Yamada.

- Com certeza eu não seria páreo para ele, nem se não estivesse ferido, então resolvi ficar apenas observando enquanto ele pegava a garota nos braços e ia embora. Como eu estava em um canto escuro ele não me viu. Comecei então a segui-lo, logo ele encontrou uma patrulha da polícia e deu ordens para vasculhar as redondezas, percebi então que ele sabia da minha presença, num instante o lugar ficou cheio de policiais. Tive que interromper a perseguição e foi com muita dificuldade que eu cheguei aqui.

- Seu idiota. - Creed sentia ganas de rasgar o ninja de cima a baixo. - Ouviu algo de útil? Como estava a garota? Pra onde a levaram?

- Pe-pelo que eu pude ver a garota desmaiou logo depois do policial encontrá-la. Com o chute de Yamada ela se chocou de cabeça numa parede de tijolos. Não pude descobrir para onde a levaram, mas tenho uma pista sobre o policial, antes de desmaiar a garota o chamou de Saitou.

- Muito bem. - interrompeu Sato - Já é o bastante. Debushi, com essa mão amputada você é ainda mais inútil. Rasgue as entranhas e vá se juntar a Hiko e Yamada no inferno reservado aos incompetentes.

Sem dizer uma palavra, Debushi sacou uma adaga de dentro das vestes e rasgou a barriga de um lado a outro, a misteriosa combustão espontânea aconteceu. Em poucos segundos tudo o que restou dele foi um monte de roupas fumegantes.

- Shiro. - chamou Sato enquanto se dirigia para a porta.

- Hai genin. - respondeu o ninja que ainda estava abjetamente prostrado no chão. - Devo também me juntar aos outros?

- Por enquanto não. - respondeu o chefe do Tentáculo se virando ao chegar à porta - Ao invés disso você estará a partir de agora sob as ordens diretas do senhor Creed e vai ajudá-lo a reparar essa falha. Torçam para que aquela mulher não tenha comprometido nossos planos. Creed-san, tenho certeza de que o senhor vai se empenhar ao máximo para consertar isso, tenha um bom dia.

Depois de dizer isso Sato Harada saiu. Creed ficou olhando para a porta por alguns segundos com uma expressão sombria no rosto. Em seguida olhou para Shiro que continuava na mesma posição.

- Levanta daí, idiota. - Creed falou com aspereza - Quero que tu saia e descubra tudo o que puder sobre aquela garota e o policial que a levou. Não importa como, até o anoitecer quero saber pra onde a levaram e o que ela contou pra eles. ANDA!!

Estimulado pelo grito e pela necessidade urgente de sair de perto de Creed, Shiro levantou e saiu correndo do aposento. Assim que ficou sozinho Dentes-de-Sabre começou a andar de um lado para o outro como uma fera enjaulada. Decididamente, seu dia começou mal.


Última revisão em 19/04/2005

Comentários:

Apesar de não acontecer nada de muita relevância, considero este capítulo importante para o andamento da história. Ele inicia uma série de eventos que vão se seguir, ao mesmo tempo em que os amarra aos eventos anteriores. Particularmente, acho que este capítulo foi um dos mais bem escritos sob o ponto de vista da narrativa. E incrivelmente foi um dos que sofreu menos alterações ao longo do tempo.

Outro fato importante a ser observado é a chegada de Logan à era meiji. (ufa, finalmente) Se alguém estiver curioso sobre como ele chegou, vamos dizer que ele teve uma aterrissagem bem dolorosa em alguma câmara escondida, nos subsolos da LL&L.

A escolha de Chang como contato foi bem fácil. Ele e Logan participaram de muitas missões misteriosas nos anos cinqüenta. Me foi chamada a atenção para o fato deste personagem ter morrido numa antiga história do Wolverine (Valeu Mário). Vamos dizer que eu “ressuscitei” o velho Chang especialmente para este fanfic.

Bem, as cartas estão na mesa. Na próxima rodada: O que acontece quando um Lobo de Mibu encontra um Wolverine? E pra onde diabos foi a Kaoru?

Até a próxima.

Otávio Pedroso, [email protected] ou [email protected]

Notas:

[1] Universidade de Tókio - Na verdade eu não sei quando ela foi inaugurada, se eu estiver muito errado, por favor me perdoem.

[2] Dozô - Por favor.

[3] 1 yene - Pode não parecer, mas naquela época era muita grana.

[4] Genin - Comandante, chefe.

[5] Mae-geri - Chute frontal.

 

Capítulo 7

Capítulo 5

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