A Criação (In)Humana

Capítulo 5: Iluminação


A escuridão preenche todo o espaço que se pode ver. Mas, ao contrário da escuridão opressiva que tinha experimentado antes, essa dava uma vaga noção de ser um espaço grande demais para ser iluminado (pelo menos do jeito que ele conhece). E ao seu lado, quase se misturando com a escuridão, estava a estranha Leila, que dizia ser sua guia.

- Quem eram aqueles outros? Eles se pareciam comigo!

- Eram outros “você”. Pode pensar que você encontrou versões alternativas de você mesmo. Como você poderia ter sido, ou como pode ainda se tornar. Mas o fato de tê-los encontrado deve fazer de você diferente dos outros.

- Péraê! Então aqueles outros eram eu, e eu vou ficar diferente? Mas como? Eu não sou eu, então?

- Calma! Nem tudo pode ser explicado, mas nem tudo é inalcançável. Talvez você entenda alguma coisa antes mesmo de voltar para seu corpo.

O par continuou a jornada até os pés de uma cordilheira. Embora não fosse visível antes, agora parecia se estender infinitamente escuridão adentro. As montanhas pareciam amontoados de objetos comuns: livros, blocos de concreto, postes, muitos pedaços de bicicletas, mochilas e pedaços de metal que Shinji não conseguia reconhecer de imediato.

- Nosso destino se encontra além desta barreira - disse Leila, diante da pergunta não formulada.

- E o que é isso?

- É a barreira que você mesmo construiu para se isolar das pessoas. Você precisa transpô-la para chegar a você mesmo.

- É só subir e chegar do outro lado? - Shinji olhou a grande altura, mas também viu o grande número de pontos de apoio. Era como se fosse uma escada mal-feita. - Moleza!

- Veremos. Estarei com você, embora só possa me ver de novo quando chegar ao outro lado. Pode ser mais difícil do que parece. - e nisso desapareceu.

Shinji suspirou e olhou novamente para a montanha de coisas. E pôs-se a subir. E a cada passo se sentia mais apreensivo, embora não pudesse perceber por quê. “O que está acontecendo?” pensou. E então ouviu em sua própria mente inúmeras vozes: “Eu não presto!” “Eu não valho nada!” “Ninguém gosta de mim!” “Sou um fracasso!”. E todas as vozes eram variações chorosas da sua própria voz. E depois de superar o susto de ouvir seus lamentos de tantos anos, percebeu que a montanha parecia ter crescido mais e mais. “Não posso fugir!” pensou. Mas a montanha parecia agora não ter mais fim.

- O que está fazendo agora? - perguntou Leila.

- Tentando escalar uma montanha que cresce sempre!

- Por quê?

Shinji parou. “Ora, ela sabe o porquê. Por que ela pergunta?”

- Você tem algum motivo para transpor essa montanha? - reiterou a guia invisível.

- Quero voltar para meu corpo! - respondeu, achando estranha essa resposta. “Isso é um sonho? É muito estranho, se for!”

- Então responda isso às vozes. Você tem um motivo ou não tem?

Shinji refletiu. Se aquela era a barreira que ele tinha criado para se isolar, então ele teria as mesmas dificuldades que os outros têm para e aproximar dele. Mal se apercebeu disso, a montanha parou de crescer. Alguns destroços rolaram monte abaixo, sem sequer passar perto dele.

Pra que voltar? Sou inútil!” “Eu só machuco as pessoas!” A choradeira da montanha voltou. “Não sou inútil! Eu piloto um Evangelion!” “Mas é só por isso que as pessoas me dão valor!” “Só por isso meu pai me chamou pelo nome!”. Shinji parou novamente. Lembrou-se então da experiência dentro do 12° Anjo, quando o outro “Shinji” o alertou para não se apegar unicamente a essa lembrança. Lembrou-se da reação emocionada de Misato ao retirá-lo do Entry Plug. Lembrou-se das meninas, tentando parecer que não estavam preocupadas com ele. Lembrou-se do espanto que o acometera quando Rei disse que estava feliz por ele estar bem. Lembrou-se do medo de Touji quando ele apareceu diante dele como piloto, pela primeira vez. E da inveja de Kensuke. Reunindo essas lembranças, encarou a montanha e disse:

- Eu tenho amigos lá fora, e quero vê-los de novo!

Apenas o eco respondeu, seguido de outra pequena chuva de destroços que, como a anterior, o cercou sem machucá-lo.

Continuou a subir. E a montanha agora crescia grandes cones pontiagudos em seu caminho. Pareciam lisos, mas estavam cobertos de pequenos espinhos. Desviou deles sem dificuldades. Escorregou! Não caiu, pois se segurou no guidão de uma bicicleta. Porém, a mesma estava inteiramente coberta de espinhos. Sua mão escorria sangue. A bicicleta. O interrogatório na polícia. Sua passividade, na esperança de que isso atraísse a atenção do seu pai. Mas não. Tinha passado a agir como um autômato depois disso, evitando eficientemente contatos com as pessoas. “Viu, só machuco as pessoas!”. Shinji parou novamente.

- Será melhor mesmo ficar longe de todo mundo?

- O que você acha, Shinji? - Leila novamente falava, de lugar nenhum.

Se lembrou dos anos que passou com os tios e com o professor. Do grande vazio com que tinha se acostumado. Se questionou se suportaria novamente aquele tipo de vida. Não tinha certeza de nada! Lembrou-se da conversa com Kaji. Era isso que ele queria dizer? Que não é possível conviver sem machucar os outros ou se machucar? E que isso ainda assim vale a pena? Naquela hora - que parecia tão distante, parecia ser anos atrás, embora fossem apenas alguns dias - ele não entendera. Mas tentando se aproximar de si mesmo parecia estar em uma posição privilegiada para entender alguma coisa. Afinal, ele sabia o que tinha depois da cordilheira, mas chegar lá era outra coisa. Então lhe pareceu que toda aquela barreira era um grande exagero.

Mal tinha pensado isso, uma pequena avalanche o cercou. Novamente, os destroços passavam ao seu redor e até através dele. E ele achou estranho não se assustar com isso. O cume da montanha estava ao seu alcance agora.

- Todo mundo machuca todo mundo. Mas apesar disso, vi que vale a pena! - disse aos pedaços de montanha que caíam enquanto ele subia. E passou finalmente ao outro lado.

“Pra baixo todo santo ajuda - diz o ditado” ele pensa “ mas descer isso aqui tá difícil!”. A montoeira que formava degraus ainda estava lá. Mas encontrar um ponto certo para descer era difícil. Sentia-se pesado demais para pular sobre alguma frágil plataforma, ou equilibrar-se sobre um poste deitado. E a altura parecia maior desse lado da montanha. O medo tinha se tornado tão intenso que parecia poder tocá-lo. Medo do quê? “O que acontece se eu cair daqui?” se perguntou.

- Depende do que você estiver pensando, Shinji. - novamente Leila responde suas perguntas não verbalizadas.

- Como assim?

- O que exatamente vai acontecer? Isso eu não posso prever. Depende do que você acreditar.

Longa pausa. Shinji se move lentamente, enquanto pondera sobre a muralha. “Me isolar dos outros... Me proteger dos outros...” De que perigos ele se protegia? Olhou para sua mão que ainda sangrava.

- Dor... Eu tento evitar a dor a qualquer custo! - Lembrou-se das vezes que causou dor aos outros, na tentativa de evitar sua própria dor. Lembrou-se das vezes em que vencer o medo da dor foi gratificante.

“Com ou sem dor, quero voltar” pensou. Em alguns pulos aqui e ali ele transpôs aquela distância em pouco tempo através da sucata que às vezes parecia cair ladeira abaixo.

De pé, do outro lado, Shinji observa a cordilheira recém-transposta. “Não parece tão alta assim...” pensa. “Será que aqui é mais alto do que lá fora?”

- A barreira realmente diminuiu. - comenta Leila, novamente visível ao sseu lado.

- Oi, Leila! - respondeu, um pouco assustado, mas só um pouco.

- Vamos. Ainda há obstáculos a vencer.

 

Rei caminhava para a escola. Para trás tinham ficado a estação, a viagem de trem e o café da manhã com o comandante Ikari. Seus passos não eram diferentes dos que deu no dia anterior, ou em outras vezes que fora à escola. Seus pensamentos, porém, estavam perturbados. Ela sempre tinha conseguido, através da comunhão de mentes com suas irmãs, atingir as mentes de quem quer que fosse. Mas dessa vez Ikari-kun estava fora de seu alcance. Ainda mais estranho, tinha conseguido contato, mas ele se rompeu. Algo de muito estranho estava acontecendo, mas ela não fazia idéia do que poderia ser. Mas se o comandante a mandou para a escola, ele deveria saber o que estava ocorrendo.

A menina ergueu os olhos para ver a escola, onde já estava chegando, e viu a Segunda Criança chegar, poucos metros à sua frente. Sua linguagem corporal estava diferente. Rei nunca fora boa em interpretar esses sinais, mas sempre os observava. Estava diferente das vezes em que chegava acompanhada de Ikari-kun. Talvez estivesse sentindo sua falta, também. Será que eles partilhavam de algum elo telepático perene, ao contrário do contato eventual que tinha com a Terceira Criança? Teriam eles brigado? “Por que minha face ficou vermelha?” - pensou, finalmente.

Sem que alguém tivesse tempo de perceber seus conflitos, mudou seus pensamentos para se preparar para outro dia entediante na escola. Mas todos os dias são assim, não é? Quem não se submete não é substituído? “Ou apenas eu estou sujeita a isso?” pensou. Ao olhar rapidamente à sua volta, a grande variedade de sinais que seus colegas trocavam entre si, provavelmente sem o perceber, em contraste com sua constância calculada, meneou de leve a cabeça. “Não. Eles não são substituíveis como eu.” - e entrou em sua sala.

 

 

A escuridão parecia menos opressiva. “Estranho se aproximar de si mesmo...” pensa o rapaz. Um medo inexplicável, mas pequeno, permeava o local.

- Você deve estar sentindo a proximidade do próximo obstáculo. - disse Leila, enigmaticamente.

Shinji deu um longo suspiro. “O que será?” se indaga.

Uma silhueta escura podia ser vista contra um horizonte cinzento. Um humanóide sem cabeça? Quem seria? Shinji estreitou os olhos para ver melhor.

- Leila, o que é aquilo?

- É um símbolo. - Leila explica - Representa o medo do desconhecido, bem como sua capacidade de superá-lo. Vença o símbolo e aproprie-se dessas qualidades.

- É um Anjo!

Diante de Shinji estava Sachiel, o Terceiro Anjo. “Por que terceiro? Não fora ele o primeiro a atacar? O que houve com os outros dois?” a mente de Shinji girava em perguntas sem respostas. Mas a maior de todas...

- Como vou lutar com ele sem um Eva?

- É um símbolo, lembra-se? - Leila lembrou - A resposta para isso faz parte da batalha.

O rapaz se concentrou, lembrando-se das gravações da batalha impossível que travara naquele fatídico dia em que pôs os pés em Tokyo-3 para rever seu pai. “O que mais aconteceu? Eu perdi a consciência...” lembrou-se do susto ao ver a imensa cara feia do robô bem à sua frente. Lembrou-se da veemência com que negou-se a pilotar aquela coisa, devido à decepção que seu pai lhe causara ao revelar o motivo de tê-lo chamado. Lembrou-se do corpo ensangüentado de Rei, que então não conhecia, mas que mesmo assim o motivara a pilotar o robô desconhecido... desconhecido... “Estou em minha mente!”

Deu um passo em direção ao seu oponente. Ele já parecia menos ameaçador. Parecia estar revivendo a luta de outrora, andando entre os prédios-armadilha de Tokyo-3 em direção ao Anjo. Mas dessa vez não tropeçou, nem bateu no campo AT do invasor. Nem deixou que ele pegasse sua cabeça como fez com o Eva aquela vez. “Desequilibrar!” pensou enquanto aproveitava o impulso do Anjo, ainda com o braço estendido no ar depois de errar a cabeça de Shinji. Um movimento circular depois, Shinji estava segurando o braço esticado do inimigo sobre o corpo estendido no chão. A pequena cabeça na frente do peito estava arrastando-se no “asfalto” daquela Tokyo-3 imaginária. Virou o corpo para ter acesso ao núcleo, e deu um soco preciso no centro do mesmo. No passado esse soco não teria a força necessária para quebrar qualquer coisa, fosse o queixo de Touji ou o núcleo de um Anjo. Aliás, Shinji sempre dependeu da força ampliada do Eva para obter tais efeitos. O treinamento recente, porém, parece ter aumentado suas forças além do que ele tinha consciência. Era uma vez um Anjo.

Depois do clarão cegante, Shinji ergueu o olhar para ver a Tokyo-3 que pensou ter visto à sua volta, no meio da noite. Apenas a escuridão cinzenta, e a silhueta negra de Leila

- Foi muito fácil. - iniciou - Por que não disse antes?

- Porque o desafio ocorreu antes da luta. A decisão foi tudo nesse caso. Pode não ser assim nos outros... - Leila estendeu a mão para o espaço atrás dela.

Lá estavam Shamshel, Ramiel, Israfel e Matarael. Emergiram da penumbra, prontos para o ataque. “É verdade... Os Anjos nunca atacaram de uma só vez. Por quê? Haveria algum motivo?” ponderou Shinji, enquanto desviava de um raio de Ramiel. Arremessou o humanóide Israfel sobre o cubo cintilante do 5º Anjo e partiu para o quase inofensivo Matarael. Pegando a imensa aranha pelas pernas, puxou-a na direção de Shamshel, que vinha, ainda deitado. No momento exato em que o Anjo comprido estava para se levantar, Shinji subiu em sua cabeça, ainda puxando a aranha olhuda. O movimento fez com que Shinji e Matarael fossem erguidos, deixando a aranha sobre o rapaz. Aproveitando o momento, o imenso olho ventral verteu suas lágrimas ácidas em profusão. Shinji, que ainda segurava as pernas do bicho, puxou o próprio corpo, deixando o ácido cair onde ele estava: um dos flancos de Ramiel. “Deu certo!” pensou. Seu triunfo quase o cega para Shamshel, que esticava seus tentáculos brilhantes para pegá-lo. Shinji aproximou-se o mais que pode e agarrou os chicotes com as mãos. Que dor! Mistura de choque com queimadura, foi o que o combatente precisou aturar enquanto dançava com o monstro até chegar perto de Israfel, que lentamente se aproximava. Zap! Assumindo o controle dos chicotes, Shinji cortou o anjo em dois, como Asuka tinha feito logo de cara. Com um chute, mandou uma das metades para longe antes que se regenerasse. O raio de Ramiel passou bem perto de sua cabeça, que por sua vez estava perto do núcleo de Shamshel. A última chicotada do anjo fatiou o grande cubo, fazendo-o cair inerte. A dor cedeu e os chicotes pararam de brilhar, assumindo uma coloração esbranquiçada. Lá veio Israfel, dividido em dois. Parecia bem lento agora... Matarael estava do outro lado, também lento. Já estava ficando difícil fazê-los atrapalharem-se uns aos outros. “Bem... A aranha é leve. Então...” Shinji correu para a aranha, pegou novamente duas de suas pernas e girou. Arremessou o bicho em uma das metades de Israfel enquanto atacava a segunda. Correu para a outra metade à toda carga. O anjo pareceu prever a manobra e pegou os dois braços de Shinji. Grande erro. O piloto manobrou o peso do bicho para fazê-lo girar e arremessou-o contra sua outra metade, ainda embaixo do confuso Matarael. Quando começaram a se fundir, dois punhos certeiros acertaram cada uma das metades do núcleo. O resultado foi fatal.

 

 

Do lado de fora da câmara, um cordão de isolamento a separava das equipes que tentavam em vão desativá-la.

- Dra. Akagi! As leituras estão se tornando cada vez mais erráticas!

Ritsuko correu para trás de Shigeru, que tinha assumido o posto de monitoramento.

- Isso não é bom. Rapazinho! O que está acontecendo?

Trunks engoliu em seco a referência.

- De alguma forma o gerador gravitacional está drenando mais força do HS. Ou então o próprio HS está sobrecarregando o controle de gravidade, mas num caso ou no outro o vazamento de grávitons tende a aumentar. - uma pausa - E eu agradeceria muito ser chamado de Trunks!

A loura aperta os olhos, aborrecida.

- Sempai! - disse Maya, sem tirar os olhos do monitor - A massa do objeto está crescendo cada vez mais!

- Deve ser efeito da distorção gravitacional lá dentro - disse Trunks - talvez até com distorção temporal. - Olhou com tristeza para o chão - Nossos amigos podem estar bem velhos agora...

-Em 38 horas terá a massa da Terra! - Maya soltou, ainda espantada com seu monitor.

-E então vai perfurar o Geofront e se alojar no centro da Terra. - disse Ritsuko, com uma falsa neutralidade. - E de lá vai esmagar todos nós como se fosse um buraco negro.

 

 

Ainda ofegante, Shinji vê se desvanecerem seus adversários vencidos. As queimaduras das mãos agora eram apenas formigamentos. Depois de bons segundos de cabeça baixa, o rapaz ergue o olhar para Leila, que apenas aponta o horizonte, parecendo envolta em ainda mais mistério.

- Descubra o que é aquilo. - falou enigmaticamente.

Passos metálicos foram ouvidos daquela direção apontada. Parcialmente refeito, Shinji se ergue e se vira para enfrentar o desafio. Uma tênue luz permeava as brumas do horizonte, sobre o qual podia se distinguir uma silhueta humanóide, o provável causador do ruído dos passos. Em poucos minutos, pôde ser visto um arremedo de cor lilás ou roxa, ou coisa parecida. Os passos pararam. A bruma pareceu dissipar-se. Só então Shinji reconheceu a figura à sua frente: Evangelion Unidade 01.

Com um urro inumano, a besta correu em sua direção, olhos repletos de um brilho verde. Shinji mal teve tempo de reagir, ainda surpreso por estar do mesmo tamanho do bicho-robô que costumava pilotar. Uma esquiva no último momento deu a Shinji a chance que esperava: tirar o cabo umbilical das costas do andróide. “Onde está...?” pensou o garoto, quando sua mão varou o vazio onde devia estar a “tomada” do Eva.

- Esse é diferente do que você está acostumado a pilotar. - Voltou a falar Leila, ainda respondendo a perguntas que Shinji mal pensara em fazer -Faz parte do que você tem que descobrir.

O monstro não perdeu a chance de esmurrar Shinji com um só braço. O coice o fez cair, mas um rolamento depois já estava de pé. Bem a tempo de evitar um soco no rosto. O treinamento fez diferença, e um giro de corpo após tinha esticado o braço roxo sobre seu ombro, cotovelo para baixo. Shinji esperava poder controlar a criatura dessa forma, mas ela não parou de se debater, o que forçou o braço além de sua capacidade de movimento. CRACK! O braço quebrou-se, arrancando berros ainda mais furiosos. Sem ter planejado tanto, Shinji se afasta do adversário. Contemplou o antebraço estranhamente pendurado no lugar onde costumava ficar o cotovelo.

Superado o espanto, o rapaz resolveu atacar a fera. Uma seqüência de socos poderosos no rosto chegou perto de rachar a máscara do Eva. Um soco final, concentrando toda a força do piloto, alcançou por fim esse efeito. Passando rapidamente pelo braço quebrado, deu uma cotovelada precisa na nuca ainda protegida por um agora frágil capacete. Uma arremetida forte, uma rasteira, e o monstro caía ruidosamente com as costas no chão.

Ofegante, ainda que não tanto quanto esperava, Shinji contemplou seu feito. Havia derrotado a sua Unidade 1 (ou pelo menos sua representação mental) apenas com as mãos! Mas sua exultação não impediu que sentisse um arrepio na nuca, sinal de que as coisas ainda não tinham acabado. De fato, o humanóide roxo estava lá, apoiado no braço bom, algum sangue pingando pelas rachaduras na face. Erguia-se lentamente, em um silêncio que agora parecia não combinar com a criatura furiosa que tinha arremessado ao chão alguns segundos antes. De pé, seus olhos pareciam agora se encontrar, mesmo com o desalinhamento causado pelas fraturas da máscara. As respirações dos oponentes pareciam sincronizadas, até que o andróide estreitou o olhar e emitiu um rugido baixo. O braço quebrado tremeu repentinamente, como que tomado por uma força maior que a de antes. A armadura rachou e se estilhaçou ante uma onda de bolhas feias que percorreu o membro desde o ombro até os dedos.

- Está se regenerando! - o rapaz se lembrou de sua primeira luta no Eva, da inesperada e intensa dor quando o anjo quebrou o antebraço do que pensara ser um robô. Lembrou-se da inesperada ação berserk depois que Sachiel penetrou seu crânio (dá dor de cabeça só de lembrar!), logo após reconstituir o braço, embora de forma mais suave que a que contemplava. Diante de si agora estava um braço bastante humano e saudável, agora livre da armadura verde-roxa amassada que antes o envolvia.

- Nem tudo é o que parece, Shinji! - Leila disse num sussurro mental.

A besta agora corria em sua direção. O rapaz pôde perceber alguns tufos de cabelo castanho saindo de uma rachadura.

“O Eva não deveria ter cabelos...” pensou, ao se esquivar do soco como se fizesse isso todos os dias. Curioso, enfiou os dedos na rachadura da máscara. Enfraquecida pelos golpes que sofrera, a máscara cedeu. Cacos roxos pelo chão. Surpresa no rosto de Shinji.

Dentro do Eva estava ele mesmo. Ofegante, quase um animal, com olhos furiosos. Mas era seu aquele rosto raivoso.

- Esse, Shinji, é você mesmo. - o combatente quase tinha se esquecido de Leila - Parte de você que é rejeitada, odiada, e que agora quer o seu lugar. O que você vai fazer?

Ainda pasmo com o “outro” Shinji que o perfurava com seus olhos brilhantes, o rapaz se deixou pegar pelo chute na cara.

- Ele é a sombra. Só há um jeito de vencer sua sombra.

Shinji lembrou-se das sessões de terapia, quando esse conceito de sombra lhe foi apresentado. Lembrou-se do quanto a “sombra” se torna mais forte à medida em que tentamos rejeitá-la. “Mas aceitar a sombra é considerado difícil.” pensou. “Será que aqui isso é mais fácil?”

A figura grotesca, arqueada e bufante, estava parada à sua frente. Shinji abandonou a posição de luta e fitou sua sombra com um misto de curiosidade e desprezo. Superando esse desprezo, aproximou-se do Eva-Shinji. Ele babava. Fedia. Era irracional e louco. Mas era ele mesmo. Suas mãos se tocaram. A dele era fria e suada. Ardia ao contato. Ainda não era suficiente.

Superando as últimas barreiras racionais, Shinji entregou-se à realidade onírica, arrancando de seu peito o coração, enquanto a outra mão rompia a placa peitoral para extrair da sombra um núcleo palpitante de anjo. “Vou me aceitar mais a partir de agora!” disse, ao juntar os dois símbolos de vida num só, que passou a brilhar intensamente. O brilho consumiu toda a escuridão e Leila, que desapareceu com um sorriso enigmático.

 

 

Yusuke se orgulhava de se um bom mateiro. Conhecia como ninguém as trilhas de Hokkaido, com toda sua natureza preservada. Assim se sentia um pouco como os “Rangers” que protegiam o Condado, n'O Senhor dos Anéis. Podia brincar de ser o Passolargo, andando pra lá e pra cá em todo o verde da ilha. Foi essa habilidade que o colocara ali no meio do quase nada, zanzando entre as montanhas e o novo litoral, pesquisando o motivo de alguns colegas terem cortado contato nas últimas horas. Foi quando se deparou com as roupas largadas no meio do mato. “Espécies tropicais já estão prosperando aqui. Quem diria !” não pôde evitar o pensamento evasivo diante da evidência de morte de um colega seu. O mateiro suspirou, depois se abaixou para examinar o achado. Lá estavam, intactas, as armas ainda nos coldres, e a carteira da Nerv. “Nobuhiro foi pego de surpresa. Não há dúvidas.”. Ergueu o colete para verificar o que já suspeitava. Lá estava, na altura dos rins, um buraco considerável. Um instrumento pontiagudo tinha perfurado o colete, e presumivelmente o corpo, e só então alargou o buraco. O LCL seco manchava de leve as beiradas do buraco, o que queria dizer que o ataque fora bem cedo nesta manhã. Precisava avisar à central.

- Ten. Kunikida falando. Os rumores estavam corretos. O alvo esteve em Hokkaido nas últimas 12 horas.

 

 

Goten estava para morrer de tédio. Já tinha treinado controle do Super Saiyajin por tempo demais. “Talvez seja hora de monitorar o Shinji pela enésima vez hoje” disse, ao deixar a transformação loura e seu local de meditação.

 

 

Shinji move as mãos na claridade. Estava imerso em líquido. LCL? Talvez. Afinal, podia respirar. Mas não se sentia no Entry Plug. Lá dentro podia sentir um conforto, como se alguém o acalentasse. Mesmo nos longos e chatos testes de sincronização ele achava um eco distante dessa sensação no contato com o Evangelion. Mas só lá dentro que se sentia confortável. Não, não estava no Entry Plug. Ali o líquido era mais denso, os braços flutuavam. E, mais do que isso, havia a sensação de ausência. De quem? Não sabia. Mas só agora, ao confundir os ambientes, é que o rapaz se deu conta da presença de seu Eva em sua mente. Só quando sentiu falta dessa presença, imerso nesse outro líquido claro. Os olhos estavam se acostumando com essa claridade... Podia ver algumas bolhas e um rosto distorcido atrás delas. Quem seria? Leila? Mamãe? Goten? Éééééca!

Uma ânsia de vômito, Shinji tira o respirador e quase se afoga no líquido não-respirável que o circunda. Por sorte, Goten já tinha previamente comandado o encerramento do processo de regeneração. E o computador, lerdo como estava, já estava libertando o convalescente.

- Pô, Shinji! Você foi afobado! Você podia ter acabado com nano-robôs dentro de você ou afogado, ou os dois!

- Foi mal. É que eu tava na maió viagem. - disse enquanto se puxava para fora do aparelho.

Pisando com firmeza fora da câmara de regeneração, dá alguns passos. Respira profundamente, como se não o fizesse há bastante tempo. Sentia-se vivo, mais vivo do que antes de ser atingido pelo robô de treinamento.

- Tô com uma vontade danada de treinar! - Shinji efetua alguns movimentos de artes marciais - Me sinto forte... até parece que estou mais leve!

- Bem... você está. - Goten esfrega o queixo - E isso faz parte do nosso problema.

- Como assim?

- É que para abrir a porta, a gravidade precisa estar exatamente igual à da Terra. E o controle simplesmente pifou.

- Estamos presos aqui! - Shinji arregalou os olhos.

- Até a gente descobrir como abrir a porta, estamos.

- Explica isso direito! - Shinji ainda confuso.

- O computador não abre a porta enquanto a gravidade não for 1. E ele não está aceitando comandos com precisão, diz que o comando principal é daquele controle remoto que rachou a sua cabeça. - disse, apontando para os caquinhos tecnológicos espalhados do ponto de onde Goten pegara o então ferido Shinji. - Como não consegui deixar a gravidade certa, a porta não abre.

- Ei, a gente pode tentar mexer nos controles assim mesmo, não?

- Sim, mas como isso pode ajudar?

- Se a gente mandar a porta se abrir quando a gravidade for 1 e ficar mexendo nela, vai ver que ela passa em 1 e a porta se abre, não?

- Éééé.... Pode ser. - Goten coça a cabeça, meio incrédulo.

- Vamos mexer nos controles então! Hããã... É só falar?

- Falaê que eu corrijo o que precisar!

- Aham... Computador - arrisca Shinji - variação na gravidade: 1,5 para 0,5, de milésimo em milésimo!

- Comando não conhecido - responde a máquina.

- Acho que peguei a idéia. Computador! Variar gravidade segundo função y=1,5 - 0,03x!

- ULA superaquecida. Aproximando valores usando módulo fuzzy - tornou a máquina.

- Ops! - Goten se assustou. - O que isso quer dizer?

- Talvez isso demore mais do que a gente pensou... - responde Shinji.

Logo em seguida a gravidade aumentou repentinamente.

Misato e Ritsuko tentavam elaborar um plano para resgatar os rapazes e evitar o colapso da cidade acima.

- Poderíamos confinar a explosão com campos AT? Um Eva pode se aproximar daquilo?

- Há boas chances de que sim, mas não temos nenhuma pista sobre o que pode acontecer se um Eva tocar um emissor de radiação como aquele. Sorte nossa que a radiação parece não deixar as vizinhanças do objeto.

- Contagem de neutralinos excessiva! Axions de alta velocidade, mas são poucos!

- Matéria Escura! Incrível!

- O campo gravitacional está flutuando muito - verdadeiros vendavais agora varriam o interior do geofront - o que pode estar causando isso?

- Temos que sugerir ao comandante Ikari a evacuação de Tokyo-3.

Antes que alguém conseguisse pegar um telefone, o vento parou. Um brilho cegante iluminou o geofront como um pequeno sol que logo se apagara. Apenas o olho treinado de Trunks percebeu a brevíssima escuridão que cobriu o aparelho logo antes do brilho se fazer. “Quais radiações conseguiram sair? Quais foram confinadas? O que houve!” pensou o rapaz.

Foi só então que viram dois rapazes no meio de escombros. Ao lado deles, uma torre semi-destruída apagava seus monitores holográficos um a um. Sob seus pés, ainda estava o piso da câmara de gravidade, construído especialmente para suportar esforços inimagináveis. Um sofá tinha sido deslocado para dar espaço aos rapazes, que pareciam tão confusos quanto os expectadores ao seu redor. As árvores do pequeno bosque estavam cobertas de pedaços de metal de tamanhos variados, a superfície do geofront pontilhada de partes do que fora a cápsula.

Após um silêncio curioso, Goten foi o primeiro a falar.

- E aí, galera! Há quanto tempo!


De: [email protected] <Capitão Kenji Noriyuki - Seção 2>

Para: [email protected] <Comandante Ikari>

Assunto: Relatório final da equipe de limpeza - A-574

Sensibilidade: alta

Os trabalhos de limpeza do Geofront após o episódio causado pelo alienígena conhecido como Goten Son e pelo piloto Shinji Ikari foram concluídos às 3:44h de hoje. Inúmeros destroços do aparelho causador do incidente ficaram espalhados pelo bosque leste.

Alguns pareciam estar operacionais ainda. Curiosamente, a radiação emitida pelos mesmos era irrelevante, bem menor do que a esperada após a magnitude das leituras da tarde de ontem. Após verificar os aspectos de segurança, despachei todos os fragmentos para a seção técnica 1 para que estudem o material recolhido.

Conforme mencionado em mensagem anterior, foi encontrado o corpo do agente Tatsumi, próximo aos alojamentos da ala leste. Ele foi executado com um tiro na testa, outro no coração. O crime ocorreu entre 15:00 e 18:00h de ontem, o que descarta nosso suspeito-padrão, o agente Kaji. Apesar de ter encontrado o corpo por volta das 20:00h, constatei que o agente Kaji estava prestando serviços à esta equipe em outra localidade no período apontado pelo legista como hora da morte.

O agente Tatsumi já estava sob investigação há duas semanas, por suspeita de vazamento de informações e possível traição. O que merece destaque nesse caso é o fato de que suspeitávamos de uma ligação fora de nossos suspeitos usuais. Ainda não foi descartada a hipótese de a execução ter sido motivada pela própria investigação, que poderia ter revelado um novo jogador no tabuleiro em que estamos.

As informações mais detalhadas estão nos registros X-32 e X-55 do Magi, em atendimento aos regulamentos A-14 e seus anexos.

Atenciosamente

Cap. Kenji Noriyuki - oficial comandante da equipe de limpeza criada pelo A-574.

 

 

Enquanto isso, no ciberespaço...

SEELE-05: O inimigo está fora de controle.

SEELE-02: Precisamos tormar providências!

SEELE-04: Tanto o inimigo quanto os aliens de Ikari podem inviabilizar nossos planos! Lembram-se da profecia?

SEELE-01: Estou ciente dos perigos. Creio que temos que tomar medidas extremas. Isso envolve um risco muito grande, ao dar mais poder a Ikari.

SEELE-02: Compreendo. Mas pelo menos com Ikari ainda temos chance de concluir o projeto. Se o inimigo vencer, tudo estará perdido!

SEELE-01: As providências estão sendo tomadas neste exato momento. Mesmo assim, adiaremos o máximo possível esse risco-Ikari. Vamos ver o que mais conseguimos descobrir. Ademais, o inimigo parece não ter conhecimento nem controle sobre o poder que adquiriu.


Em algum lugar em que a escuridão parece ter uma essência própria, um diálogo ocorre:

- Obrigada, meu amigo. - Leila se dirige a alguém invisível - Agora creio ter atingido meu objetivoo. Sua ajuda foi fundamental.

- Não se engane, porém - uma voz responde de dentro da escuridão - pois você ainda está ligada a ele.

- Estou ciente disso. Nunca vamos nos separar definitivamente. Não com o que aconteceu em tantas realidades distintas. - Ela tremeu como se lembrasse de algo bastante desagradável - Mas cada vez que o ajudo, nossas existências se tornam mais independentes. Se ele sair da noite com um belo alvorecer, nós todos vamos nos beneficiar ... Iruel.

A forma feminina se dissolve na escuridão, dando lugar a uma imensa esfera listrada, que se afasta vagarosamente, seguida por sua sombra ainda mais negra que a escuridão circunstante.


Poizé... Esse capítulo demorou à beça. Tava até enjoando dele :-> brincadeirinha ûû

Esse capítulo foi bem difícil de escrever, justamente porque justifica parcialmente a mudança de comportamento de Shinji. Tinha muito mais para explicar, tornar a mudança mais suave, mas isso foi tão difícil que resolvi cortar umas partes (Ninguém ia agüentar ler isso!)

Rolou uma tecnobaboseira que pode ter influência na história (ou não :-), que pediu alguma pesquisa. Afinal, tecnobaboseira que se preze não é pura besteira: tem que ter fundamento (senão o Ayanami-san e o Dack Ralter vão descobrir na hora o que está errado!)

Ainda tem pontas soltas, que vão ser esclarecidas aos poucos. Afinal, eu não sabia antes de escrever isso que minhas metas eram tão ambiciosas! Mas também é a característica das sagas: cada capítulo tem uma grande surpresa!

Agradeço aos leitores que me mandavam mensagens à beça cobrando este capítulo. Com certeza vocês me ajudaram bastante!

Até a próxima.

 

Capítulo 6

Capítulo 4

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