A Ponte Pênsil e o Menino

por João Maurício Caiaffa dos Santos Ibañez

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NOTA DO AUTOR

Ao iniciar, em abril de 1994, as pesquisas sobre os 80 anos da Ponte Pênsil, constatei que, além de seu aspecto histórico, aquele monumento guardava um enorme apelo romântico. Afinal, havia sido cenário constante, por oito décadas, da vida de gente que viveu e vive em São Vicente e região. Gente que tem com a Ponte uma relação sentimental, não podendo ser contemplada somente com frios dados cronológicos.

 

Ao assimilar essa impressão, decidi que a história da Ponte seria escrita de forma romanceada tendo como base os fatos que marcaram a sociedade vicentina e da Nação, através da História do Brasil.

 

O trabalho não foi fácil. O tempo era escasso, pois além do processo de criação foi imprescindível uma séria pesquisa histórica. Procurei buscar informações não só junto aos autores citados na bibliografia mas, também, contando com o valioso relato de gente que viveu à época da inauguração da Ponte Pênsil.

 

O entusiasmo de minha filha Roberta - então, aos oito anos - com o meu trabalho foi fundamental para que eu melhor percebesse a visão da fase infantil de João Calunga, personagem fictício e protagonista da obra.

 

Tentei, neste livro, mesclar dados históricos e algumas versões com a ficção do que teria sido a vida de alguém que, ainda criança, acompanhou a construção da Ponte, participou da sua inauguração e com ela se tornou idoso, vivendo de maneira intensa os fatos ocorridos no Brasil e em São Vicente, Berço da Civilização Brasileira e da Democracia nas Américas.

 

Por ocasião do lançamento deste livro, através da Prefeitura Municipal de São Vicente, em 21 de maio de 1994, quando a Ponte Pênsil completou 80 anos, recebi inúmeras críticas carinhosas de várias partes do País. Com grata satisfação, constatei que muitos leitores acreditavam que João Calunga, personagem principal, havia realmente existido. Para mim foi um sinal de que a ficção havia, realmente, se mesclado à História tornando-a mais próxima da realidade cotidiana de todos nós, como era meu desejo.

 

Desde então, este livro está sendo usado em algumas escolas de maneira paradidática, o que me deixa muito sensibilizado. Confesso que não esperava tal repercussão.

 

Agora, por iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente, através de seu diretor, Emílio Cid, "A Ponte Pênsil e o menino" está na Internet. Fato inimaginável por ocasião de seu lançamento. Estou muito feliz em saber que gente de todo o Brasil e do mundo poderá acessá-lo, notadamente pessoas de países de Língua Portuguesa , além das que conheçam nosso idioma.

 

Tenho a expectativa de receber a opinião dos leitores, através do meu "e-mail" expresso no início da obra. Toda crítica será bem recebida e procurarei responder.

 

Finalmente, espero transmitir uma motivação mais humana aos que queiram conhecer um pouco da História do Brasil e de sua Primeira Vila, através da história da Primeira Ponte Pênsil deste País.

 

Março de 1997.

 


I - A notícia da construção

 

O sol acabara de nascer em São Vicente naquela manhã de 1911. A lua cheia que havia reinado de madrugada tinha cedido lugar a um vigoroso e quente sol já escaldando as águas do mar, que agradecidas o refletiam em um tom dourado com mesclas azuis.

João Calunga, como o chamavam seus colegas de escola, despertava naquele momento, com os ruídos vindos da rua. Levantava-se sempre bem cedo e com o brilho nos olhos, característicos de seus tenros sete anos, chamava seu irmão Luiz, cinco anos mais velho, para irem mergulhar e pescar no Mar Pequeno.

 

Sua mãe preparava o desjejum no fogão à lenha. Café, leite, bolinhos de chuva e torradas com manteiga. Que delícia! Seu pai, homem ilustre na cidade, vestia um terno branco de linho e sapatos com polaina e já se preparava para sair, ajeitando o chapéu na cabeça, quando João Calunga, ainda coçando os olhos sonados, pediu- lhe a bênção. O pai, carinhoso, beijou seu rosto e pôs uma moeda em suas mãos. Os olhos de João brilharam ainda mais com o reflexo do metal.

 

Depois de comerem os quitutes matinais, a mãe dos irmãos também os abençoou e fez as recomendações de sempre. Ainda comendo as torradas ganharam as ruas a caminho do ponto de bonde. Havia menos de dois anos que a primeira linha de bondes elétricos tinha sido inaugurada em São Vicente, em abril de 1909. Até então, esse meio de transporte era à tração animal. Mais especificamente à base de muares, isto é, de burros. "0 bonde elétrico é outra coisa", pensava João Calunga, "além de mais rápido não deixa aquele cheiro nas ruas". Sentindo a brisa na face, que amenizava o calor que se prenunciava, ficou a divagar sobre a festa que os animais certamente teriam feito ao saber que estavam desobrigados daquela árdua tarefa. Ou será que por serem burros ainda acharam ruim ... ?

 

Seu irmão, Luiz, ia conversando com o motorneiro, um português de vastos bigodes e muito simpático.

 

Saltaram no centro e caminharam até a sede náutica do Clube de Regatas Tumiaru, na parte mais estreita do Mar Pequeno entre o Morro dos Barbosas e o Morro do Japuí. O porteiro já os conhecia bem. Afinal, eram filhos de um sócio-fundador do clube. Como nos dias de semana o movimento de barcos era muito fraco, os meninos pulavam do ancoradouro na água cristalina, espantando inúmeras espécies de peixe que lá viviam e vez ou outra avistando cardumes de botos que pareciam exibir-se para eles.

 

Porém, algo pairava no ar... O porteiro, sempre risonho, naquele dia estava entristecido. Mesmo o céu começava a ficar carregado de nuvens. Seria coincidência?

 

Os meninos não agüentaram mais e perguntaram ao porteiro o que ocorria. "0 clube não vai poder continuar neste local", respondeu tristemente o homem. A resposta caiu como uma bomba sobre a cabeça dos dois. Não poderia ser verdade. "Aonde iríamos todas as manhãs?", pensava João, mas faltava um detalhe: "Por quê?" "Uma ponte vai ser construída aqui", disse o porteiro. "Ponte??? Pra quê???"


II - A tristeza

 

Era verdade. Apesar da indignação de João Calunga, a ponte ia ter sua cabeceira construída ali, no seu querido clube náutico. O dr. Saturnino de Brito, engenheiro emérito, responsável pelo saneamento de Santos, com alguns canais já implantados, necessitava conduzir até a Ponta do Morro do ltaipu o emissário de esgoto. Ordenou, então, à Comissão de Saneamento que planejasse a construção de uma ponte em São Vicente, entre os morros dos Barbosas e do Japuí, atravessando o Mar Pequeno em sua parte mais estreita. Havia também o fator estratégico pois, com a ponte, seria facilitada a passagem para a Fortaleza de ltaipu. Seria a primeira ponte pênsil do Brasil.

 

João Calunga, com seus 7 anos, e mesmo seu irmão mais velho não conseguiam entender a razão pela qual alguém podia dar mais importância a uma ponte do que a um clube náutico. Quanto mais uma ponte que tinha como objetivo levar esgoto. Assim era demais!

 

Os dois irmãos foram para casa desolados. Conversaram muito durante o caminho de volta. Chegaram à conclusão de que a melhor coisa a fazer era falar com o pai. Afinal, ele era sócio-fundador do Clube de Regatas Tumiaru. Com certeza haveria de ter uma solução.

 

Depois de chegarem em casa, tomaram banho, almoçaram, vestiram o uniforme e saíram para o Colégio Imaculada Conceição, que ficava na Rua Frei Gaspar, próximo à Rua Ipiranga. Não comentaram nada com a mãe para não a aborrecer antecipadamente.

 

Quando retornaram, o pai dos meninos já estava em casa, o que não era comum. Ávidos, perguntaram-lhe sobre a ponte. A resposta veio a entristecê-los de vez. Não só era verdade, confirmara o pai, como estava voltando de uma reunião com diretores do clube e o dr. Miguel Presgreave, chefe da Comissão de Saneamento e superintendente das futuras obras. Ficou acertado, então, que a Comissão ficaria com a sede náutica para depósito de materiais e construiria outra maior e com boas acomodações em local a ser escolhido pelos dirigentes do C. R. Tumiaru.

 

"Nada mais é possível fazer, pai?", perguntou com lágrimas nos olhos, João Calunga. "Nada, meu filho. É o progresso", respondeu o pai afagando-lhe a cabeça. E continuou: "Quem sabe você gostará mais da nova sede... será mais bonita".

 

João Calunga foi deitar, após o jantar, mas não conseguia pregar o olho. Ouvia a cigarra cantando, o ruído dos morcegos nas árvores e chorava muito. Assim, acabou adormecendo.


  III - A resignação e o entusiasmo

 

Mais de dois meses já se haviam passado. João Calunga nunca mais tinha ido ao C.R.Tumiaru, depois que soube da nefasta notícia. Evitava até mesmo ir à praia de tão desgostoso que ficara. Foi quando seu pai lhe chamou para contar que as obras da ponte já haviam começado e que outra sede náutica do clube estava para ser construída no Japuí. Num lugar ainda mais bonito que o anterior. João Calunga nada disse, mas duvidou das vantagens desse novo lugar.

 

Depois, na escola, soube que o material a ser empregado na nova ponte era todo importado da Alemanha e que os primeiros navios já haviam chegado ao Porto de Santos trazendo o material. João Calunga começou a ficar curioso. "Será possível que para fazer uma pontezinha tinham que trazer peças da Alemanha?" Ressabiado, resolveu contar ao irmão Luiz o que tinha ouvido. Surpreso, Luiz combinou com João de irem juntos até o local da construção na sexta-feira pela manhã.

 

O calor assolava São Vicente. O característico vento noroeste soprava um bafo morno e indolente sobre os transeuntes, as árvores e as casas, trazendo consigo o cheiro do mar. João Calunga e Luiz levantaram cedo e repetiram o ritual que há mais de dois meses não era realizado, preparando-se para irem até a ex-sede náutica do clube. Desta vez, pouco falaram durante o trajeto de bonde e, caminhando, pelo sopé do Morro dos Barbosas. Tentavam esconder a ansiedade por ver como estavam as obras da ponte.

 

Conforme chegavam mais perto, iam ouvindo os ruídos da construção intermitente, misturado ao burburinho causado pelos trabalhadores. Puderam ver a ex-sede do Clube Tumiaru, agora transformada em depósito de madeira e ferragens. Aquela paisagem apertou-lhes o coração. Enfim, tiveram a coragem de desviar os olhos e vislumbrar uma cena inédita. Enquanto operários carregavam cabos de aço e preparavam argamassa, alguns escafandristas mergulhavam em meio à correnteza.

 

João Calunga não acreditava no que via. Seus olhos de menino jamais haviam visto coisa parecida. Os mergulhadores naqueles escafandros pareciam seres alienígenas. O espírito de aventura que aquela imagem transmitia impregnava os dois irmãos. Nunca pensaram que a construção de uma ponte fosse tão emocionante. Por alguns minutos esqueceram da mágoa que tinham com a construção e entregaram-se a um deleite que se contrapunha ao trabalho árduo presenciado por eles.

  

Depois de longo tempo observando os mergulhadores emergindo e submergindo, notaram um senhor que parecia ser o encarregado da obra, pois todos o obedeciam. Aproximaram-se com cautela esperando que o homem parasse um pouco de falar e esbravejar. Quando isso ocorreu, João e Luiz pediram licença. O encarregado virou-se com o rosto tenso e suado que se suavizou ao ver que se tratava de crianças. "No que posso ser útil?", disse mudando o tom da voz. "Desculpe, mas gostaríamos de saber o que os mergulhadores fazem lá embaixo", perguntou Luiz, apontando para o mar. O homem, pacientemente e com um certo orgulho, explicou que os escafandristas eram necessários para fixar as bases da cabeceira da ponte no fundo do mar. Disse, ainda, que o trabalho era difícil pois havia uma plataforma rochosa submersa naquele local. Assim, o trabalho de fixação passava pela dificuldade de se penetrar a rocha com estacas.

  

Os meninos ouviam deslumbrados as explicações do encarregado. Perguntaram quanto tempo iria demorar até a ponte ficar pronta. O homem balançou a cabeça em sinal de dúvida e disse que isso iria depender de vários fatores. Dentre eles, da tal plataforma rochosa.

  

O entusiasmo começava a tomar conta de João Calunga. Todo o descontentamento causado pela mudança da sede náutica do Clube Tumiaru cedia lugar a uma euforia ingênua e envaidecida por saber que afinal não se tratava de uma "pontezinha" qualquer. Mas, sim, de uma ponte que para ser construída necessitava até de mergulhadores profissionais. Isso realmente o impressionara. "Quando crescer vou querer ser mergulhador", pensou.


IV - A paixão e o amor

 

João Calunga já havia perdoado a intromissão da Ponte Pênsil em seu querido clube. Tinha saudades do ancoradouro, dos mergulhos, do porteiro... No entanto, tinha agora a consciência de que tudo acontecera por uma nobre causa. Quase todo dia ia com seu irmão ao local da construção para acompanhar de perto o trabalho que, para ele, era uma façanha. Todos ali já o conheciam. Transformou-se, juntamente com seu irmão Luiz, numa espécie de mascote daqueles trabalhadores. Do operário até o engenheiro, todos tinham muita boa vontade para com as duas crianças e explicavam-lhes tudo sobre a grande obra. Os escafandristas, heróis para os irmãos, ficavam orgulhosos com tamanha admiração. Com efeito, sempre lembravam de trazer alguma pedra do fundo do mar para que eles colecionassem.

 

Assim, os anos se passaram bem rápido e a ponte já ia tomando forma. Os mergulhadores tinham concluído seu trabalho e despediram-se de João Calunga e de Luiz entregando-lhes um breve relatório dos detalhes que envolviam a construção da ponte. Os meninos ficaram tristes com a partida dos mergulhadores, mas distraíram-se logo com a leitura dos dados que haviam ganho. Lá souberam que o material, importado da Alemanha para a construção, havia chegado através dos navios: "Erlanger", em 10/04/1911; "Bonn" e "Halle", em 26/04/1911; "Crefeld", em 10/05/1911. Em 1912-1913, aportaram em Santos os navios: "Anversoise", "Liegoise", "Treassury", "Granhandel", "Jarsberg", "R. Argentina" e "Marinier".

  

João e Luiz estavam deslumbrados com aqueles dados. Ali mesmo, sentados no sopé do Morro dos Barbosas, ficaram a saborear as informações. Luiz lia alto para si e para João. Constataram que a obra era do tipo ponte suspensa a cabos de aço. Tinha o vão de 180 metros, com 5 metros de largura. O piso ficava a 6,50 metros acima da maré baixa e a 4 metros da maré alta. A sustentação da ponte era feita por quatro cabos de aço de 0,085 m e doze de 0,064 m. A carga máxima que comportaria era de 60 toneladas. O leito para pedestres era de 1,40 m. Paralelamente à ponte estariam dois emissários de esgoto, um de cada lado, de 0,50 m de diâmetro rumo ao Japuí.

 

As crianças viram, ainda, que as torres que serviam de suporte aos cabos de aço mediam 23 metros de altura, incluindo 8 metros que se achavam enterrados em concreto, no solo. Os cabos, em número de dezesseis, tinham o comprimento de 286 metros. Destes cabos, doze pesavam 6 toneladas cada um e quatro 10 toneladas.

 

A atenção dos garotos estava tão comprometida com aquelas informações que nem mesmo o ruído intenso de trabalhadores, abrindo a avenida ao redor do morro, lhes tirava a atenção. De fato, enquanto se processava a construção da ponte, o dr. Miguel Presgreave havia ordenado a abertura de uma via numa extensão de 600 metros por 12 metros de largura, da Praia de São Vicente até a cabeceira da ponte. A mesma que hoje está asfaltada, com muro de pedras e quebra-mar, tendo recebido, bem mais tarde, o nome de Avenida Getúlio Vargas.

 

Quando os operários pararam para almoçar, João e Luiz perceberam que já estavam atrasados para a escola e saíram em disparada para casa, levando o relatório que haviam ganho dos mergulhadores.


V -A inauguração

 

Vinte e um de maio de 1914. Enfim, era chegado o grande dia. João Calunga acordou bem cedo naquela manhã. Na verdade, não havia conseguido dormir muito bem. Acordara várias vezes durante a madrugada de tão excitado que estava. Quando conseguia pregar o olho via-se passeando sobre a Ponte Pênsil. Equilibrava-se sobre os trilhos que lá haviam sido colocados para a passagem de bondes (bondes que nunca chegaram a transpor a ponte; os trilhos foram retirados mais tarde). João, em seu sonho, gingava o corpo para ambos os lados procurando um melhor equilíbrio sobre os lingotes de aço. Ali perto, uma manada de bois era conduzida para um dos pastos que havia, então, na cidade. De repente, num estouro, o gado se desviava rumo à ponte. João via centenas de cabeças vindo em sua direção. Corria desesperado. Quando o touro que tinha à frente estava para alcançá-lo ele caía ao mar. Despertou suando frio.

 

Naquele ano, João havia completado 10 anos de idade. Mesmo assim, estava com muito medo de seus pesadelos. Chamou seu irmão Luiz, mas esse nem se mexia. Estava dormindo profundamente.

 

Só e com medo, João resolveu não dormir mais. Foi até a sala e olhou para o relógio de parede. Faltavam cinco minutos para as seis horas. Logo seus pais iriam acordar. Respirou aliviado. Sentou na poltrona da sala e ficou olhando o pêndulo do carrilhão que ia e vinha. Fechou os olhos e se viu novamente na Ponte Pênsil. Ouviu um estalo, olhou para cima e viu os cabos de aço se rompendo. A ponte rachava no meio, espalhando seus dormentes pelas águas. João, desesperado, gritava por socorro. Alguém o segurou pelo braço e o sacudiu. Acordou. Era sua mãe. Abraçando-a pôs-se a chorar convulsivamente. Era a catarse. Todos aqueles pesadelos eram, certamente, resultado das emoções que vivera nos últimos três anos. Primeiro, foi a tristeza com a perda da sede náutica do clube, depois o deslumbramento com a construção, com os mergulhadores, trabalhadores etc... Tudo aquilo tinha passado a fazer parte dele. Agora, que finalmente iriam inaugurar a Ponte, havia um sentimento de perda. Como se tivesse a dividir com todos a "sua" Ponte Pênsil.

 

Sua mãe o consolava. Mulher inteligente e sensível que era, percebera o drama do filho, mas também sabia que ele se sentia feliz com a inauguração e enaltecia esse fato, tentando mostrar-lhe o quanto tinha contribuído, através do seu entusiasmo de criança, com os homens que erigiram aquela obra.

 

Refeito e com um sorriso já estampado no rosto, entusiasmou-se novamente com o grande dia e foi tomar o café da manhã com seus pais e seu irmão. Seu pai lhe disse à mesa que tinha mandado lustrar o carro para a ocasião. Era um Ford, ano 1912, de cor azul, conversível. João ficou ainda mais contente com a notícia. Adorava passear de carro com a família.

 

Horas depois todos já estavam prontos para a grande festa. João Calunga mal podia se conter em seu traje de marinheiro todo engomado. Seu irmão vestia o primeiro terno de adulto, sem calças curtas. Sua mãe estava deslumbrante em um vestido de seda bege importada, com chapéu combinando. O pai, como sempre alinhado, vestia terno preto, com finas listras brancas verticais e usava chapéu.

 

Assim elegantes, embarcaram todos no bonito Ford azul conversível, com a capota abaixada. Estava um lindo dia e o sol daquela manhã ruborizava a face alva da família.

 

Ao circundarem a Praça 22 de Janeiro para entrarem na nova avenida, que dava acesso à Ponte Pênsíl, o trânsito já estava intenso. Além de inúmeros carros e charretes, centenas de transeuntes se aboletavam pelo caminho de terra. O burburinho era ensurdecedor. O clima festivo contagiava a todos. Gente de todas as classes sociais se comprimia no caminho.

 

De longe se avistava a Ponte Pênsil, linda e imponente. Nova em folha para a festa. Todos queriam chegar cada vez mais perto dela. Próximo à cabeceira havia uma enorme mesa onde se podia ver uma grande variedade de frios, sucos, guloseimas, além de garrafas de champanhe e de licor, à disposição das autoridades.

 

Aquela avenida, recém-aberta, que dava acesso à ponte pela Praça 22 de Janeiro, estava toda ornamentada com galhardetes e folhas de palmeira. O ambiente era de completa solidariedade, representada através de cumprimentos e acenos recíprocos entre os transeuntes e os passageiros dos carros. João Calunga percebeu uma aglomeração maior numa das curvas da avenida. Tinha havido um acidente envolvendo uma motocicleta, cujo condutor apressado havia perdido o controle sobre a máquina e caído ao chão.

 

O trajeto moroso até a cabeceira da ponte continuava. Enquanto o carro ia parando pelo caminho, devido ao trânsito, a família de João ia obtendo mais informações a respeito daquela efeméride. Souberam que várias autoridades já estavam a caminho e que logo deveria começar a solenidade.

  

Com efeito, num vagão especial da São Paulo Railway Co., chegavam a Santos, às 12h 15 daquele 21 de maio de 1914, os seguintes cidadãos: Carlos Guimarães, vice-presidente do Estado, em exercício; Altino Arantes, secretário do Interior; Eloy Chaves, secretário de Segurança Pública; Paulo Moraes de Barros, secretário da Agricultura; dr. Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, engenheiro-chefe do Saneamento de Santos e de Recife; dr. Domingos Jaguaribe, além de outras autoridades do Estado de São Paulo e de outras regiões.

  

Em uma caravana de automóveis, desciam a serra em direção a São Vicente o dr. Washington Luiz de Souza, prefeito de São Paulo; Menotti Falchi; o aviador Edu Chaves e outros nomes de escol. Em São Vicente estavam Anthero Alves de Moura, delegado de São Vicente e Antão Alves de Moura, prefeito da cidade, que receberam, vindos da Terra de Brás Cubas, Eduardo Vahia de Abreu, Esdras Azevedo, dr. Manoel Galeão Carvalhal, Antonio CândidoGomes, sendo esse dois últimos representantes da Câmara Municipal de Santos. Junto estava o dr. Carlos Afonseca, prefeito municipal de Santos.

  

Como representantes da Câmara Municipal de São Vicente, tínhamos, então, presentes o cel. Francisco de Souza Jr, presidente; Theotônio Corvelo, Julião Caramuru, que construiu a casa em estilo jônico que hoje abriga a sede da Prefeitura Municipal de São Vicente, e Evaristo Machado, vereadores da mesma Câmara.

 

Enquanto seu pai se inteirava sobre os convidados, João Calunga lembrava de detalhes pitorescos sobre a construção. Recordava que um escafandrista havia sido despedido, acusado de dormir sob as águas ao invés de trabalhar. Tinha sabido também da morte de um operário que caíra ao mar e havia sido cortado ao meio por uma tintureira, uma espécie de tubarão que, segundo diziam, habitava aquelas redondezas.

  

Quando deu por si, já estava bem perto da cabeceira da ponte. Seu pai parou o carro e todos ficaram ali sentados aguardando o início da solenidade. Não desligou o motor para não ter de acionar novamente a manivela da partida. Todos já enxugavam o suor do rosto em seus lenços, quando o dr. Moraes Barros iniciou os discursos oficiais fazendo a entrega da Ponte e da rede de esgotos ao Governo Municipal. Depois, representando São Vicente, discursou o orador João Carvalhal Filho, seguido pelo dr. Domingos Jaguaribe, que possuía uma chácara junto à praia vicentina, ilustrando a solenidade com fatos da História de São Vicente. O presidente dos Estados Unidos do Brasil era, então, o marechal Hermes da Fonseca.

 

João Calunga não via a hora de poder passar pela ponte no carro da família. Com seus 10 anos não prestava atenção aos discursos mas, sim, à linda paisagem. Enfim, o dr. Moraes Barros propôs que se inaugurasse efetivamente a Ponte, para alívio de João e de Luiz. A banda musical do Corpo de Bombeiros de Santos executou o Hino Nacional Brasileiro, o que emocionou a todos. Em seguida, as autoridades deram início à transposição da ponte, sendo seguidas por uma grande multidão.

 

Neste momento, a ponte começou a oscilar de maneira sensível, o que provocou um princípio de pânico entre os que a transpunham. Os carros que já adentravam a ponte pararam e todos se levantaram para ver o que ocorria. João Calunga ficou lívido ao ouvir os gritos de "vai cair, corram! Vai cair!", que vinham da multidão aflita. João pensou que seu pesadelo se tornaria real.

 

Foi só um susto. Aquela oscilação havia cessado e os engenheiros, então, explicaram que não havia risco e que tal fato só havia ocorrido devido a uma acomodação natural da ponte ao enorme peso que recebia pela primeira vez. A cor voltou ao rosto de João. O sorriso também. Os carros foram pouco a pouco, em fila indiana, adentrando a Ponte. O ranger dos dormentes sob os pneus era música para os ouvidos de Calunga. Ele avistou, antes de entrar na cabeceira, um senhor que exibia dois grandes quadros a óleo sobre tela, representando a Ponte Pênsil inaugurada. "Quem é aquele homem?", perguntou João Calunga, apontando para o senhor que lhe sorria. "Não aponte que é feio, meu filho", disse o pai acenando para o expositor. "Aquele é Benedicto Calixto, grande pintor de Itanhaém, que mora em São Vicente".

 

A bela imagem dos quadros logo foi esquecida na cabeça de João que, ávido, queria ver tudo o que podia. Olhava os cabos de aço, os dormentes, os trilhos, o mar, etc. Vivia intensamente aquele momento tão esperado. Aqueles poucos minutos foram uma eternidade de contentamento para João Calunga e permaneceriam em sua memória para o resto da vida. Ao voltar para casa, ficou sentado sobre o muro com seu irmão, conversando sobre a festa, até que, no início da noite, viram o sr. Peralta acender os lampiões a gás, sobre os postes em frente. Quando a noite era de lua cheia, não havia essa necessidade.

  

Os tempos ingênuos e belos estavam no fim. A Primeira Grande Guerra viria ainda naquele ano e duraria até 1918.

 


VI - QUINZE ANOS DEPOIS

 

 

São Vicente estava bem maior em 1929. Já era, então, uma cidade bem urbanizada, com inúmeras e belas casas na orla da praia, geralmente habitadas por alemães, ingleses e franceses. Estes trabalhavam em Santos, nas companhias de navegação, nos bancos estrangeiros, no comércio de café, porém preferiam viver em São Vicente. Talvez em razão do clima, um pouco mais ameno, e da beleza natural superior a de Santos.

 

 

 

Um Ford novo, daquele ano, de cor preta, acabara de descer a serra vindo de São Paulo. O motorista era um rapaz de 25 anos, elegantemente trajado e com os cabelos fixados para trás. Não usava chapéu. Não era alto, mas tinha o peso bem distribuído pelo corpo. Em sua expressão adulta ainda se viam resquícios do olhar buliçoso e infantil. Era João Calunga. Ao final do mês de outubro João estava por completar, naquele ano, o curso de engenharia na Escola Politécnica, em São Paulo. Aos fins de semana, após as aulas de sexta-feira, descia a Serra do Mar rumo a São Vicente pela estrada, então de terra, que hoje chamamos carinhosamente de "Estrada Velha".

 

 

 

Seu pai havia morrido há cerca de dois anos, vítima de uma pneumonia dupla. Seu irmão, Luiz, com 30 anos, era corretor de café em Santos e administrava os bens deixados pelo pai a fim de prover as necessidades de sua mãe e de João que só estudava. Sem dúvida, a Ponte Pênsil foi um fator preponderante para que ele resolvesse estudar engenharia. Ainda guardava o relatório dado pelos escafandristas com detalhes técnicos sobre a Ponte.

 

 

 

Ao chegar em casa, a mesma onde vivera a sua infância, agora reformada, encontrou sua mãe fazendo tricô com os óculos na ponta do nariz. " Sua bênção, mãe ", disse João ao entrar em casa. Sua mãe, levantando os olhos, esboçou um sorriso e disse: "Deus te abençoe, meu filho. Preparei um lanche para sua chegada. Espere eu acabar essa carreira de tricô, que já vou servi-lo". João balançou a cabeça e falou carinhosamente: "Ah! Mãe. Eu já disse que não precisa se preocupar com isso. Eu mesmo me sirvo". Pensando melhor, acrescentou: " De qualquer forma, nada como a comida da mamãe servida por ela mesma". Sua mãe sorriu mais abertamente. Desde que o pai de João Calunga havia se ido ela só vestia roupas pretas e pouco sorria. Perguntou a João como tinha sido a viagem e como estava indo a faculdade. "A estrada estava boa, graças a Deus. A faculdade vai bem. Faltam menos de dois meses para eu concluir o curso", disse João com ar de alívio.

 

 

 

Depois de dormir um pouco, recostado na poltrona da sala, após comer, João acordou com a chegada de seu irmão Luiz. Embora sonado percebeu que seu irmão não estava bem. "Aconteceu alguma coisa, mano?", perguntou João. "Aconteceu algo muito grave", respondeu Luiz, afrouxando o nó da gravata. Calunga levantou-se num sobressalto: "Diga logo, Luiz. O que houve?", insistiu. "A Bolsa de Valores de Nova York quebrou", respondeu Luiz, servindo-se de uma dose de uísque em um barzinho que mantinha no canto da sala.

 

 

 

João Calunga não entendia muito de negócios. Até então, sua única preocupação era com o estudo de engenharia e com sua mãe que enviuvara. "0 que quer dizer isso? Que relação há conosco?", perguntou aflito. Luiz, que desde cedo começara nos negócios de café, levado por seu pai, apesar de extremamente perturbado, tentou ser didático ao explicar o fato para o irmão caçula. Tomando um longo gole da bebida que tinha às mãos, fez uma sinopse da situação para João. Disse que desde o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, os Estados Unidos experimentaram um período de grande prosperidade, em razão de terem sido os maiores fornecedores de alimentos para a Europa durante o conflito. Entretanto, esse súbito enriquecimento da economia Norte-Americana causou uma febre de produção tão grande que, naquele ano de 1929, tornava-se visível um panorama bizarro e assustador: a quantidade de mercadorias superava enormemente a capacidade de consumo de seus compradores. Havia grande oferta de produtos, mas não tinha quem os comprasse. Dessa forma, o valor mercantil da produção não mais existia. A compra e venda de ações estava paralisada na Bolsa de Valores de Nova York. Era o que se denominou de "Crack da Bolsa".

 

 

 

João ouvia, atônito, as explicações do irmão. Foi até o barzinho e também se serviu de uma dose de uísque. Luiz continuava explicando que, com a economia norte-americana estagnada, haveria sérias conseqüências em quase todos os países do mundo, incluindo o Brasil e, principalmente, no setor cafeeiro, onde ele atuava. De fato, o Brasil até então vivia à base da chamada "República Café-com-Leite", ou seja, sob o domínio de políticos paulistas, que produziam café, e de mineiros, criadores de gado leiteiro. Sucedendo o presidente mineiro, Arthur Bernardes, o paulista Washington Luiz (que havia estado na inauguração da Ponte Pênsil, como prefeito de São Paulo) era o presidente da República.

 

 

 

Ora, se as importações de bens de primeira necessidade já estavam comprometidas com a crise, era fácil imaginar o que aconteceria com a cafeicultura e sua economia de sobremesa. Já no início dos anos 20 se configurava um grande aumento da produção cafeeira, o que não correspondia ao consumo. O governo já intervinha para manter artificialmente o nível de preços, emitindo uma grande quantidade de moeda. Talvez estivesse aí um dos fatores da embriogênese de uma inflação que, vagarosamente, foi minando o nosso poder econômico.

 

 

 

A cafeicultura ainda era o centro da economia, mas a indústria já se desenvolvia amplamente. Com a crise de 1929, houve uma extraordinária redução das exportações de café. O Porto de Santos estava semiparalisado. Muita gente que vivia abastada à custa da exportação cafeeira perdeu tudo de uma hora para outra.

 

 

 

João agora entendia a angústia do irmão. O padrão de vida da família, certamente, iria cair. Por sorte, seu pai quando morreu era um homem de muitas posses, adquiridas nos tempos áureos do café. Deixara um bom lastro para a família. Mesmo assim, as coisas não seriam fáceis.

 

 

 

 


 

VII - A PONTE PÊNSIL E OS NAMORADOS

 

 

 

Algum tempo se passou. João formou-se engenheiro e ingressou, indicado por um amigo da família, na Comissão de Saneamento de Santos. A mesma que havia implementado a construção da Ponte Pênsil. Seu irmão, com o escritório fechado desde o início da crise de 29, conseguia arduamente manter o padrão da família com a renda obtida de algumas propriedades. O clima de desolação era imenso. Suicídios eram comuns por parte dos patriarcas das famílias que perderam tudo com o café. A Ponte Pênsil serviu de cenário a muitos desses atos extremados. Senhores, outrora ricos e equilibrados, precipitavam-se lá de cima para o mar, quebrando o pescoço ou morrendo afogados.

 

 

 

João ficava muito triste ao saber que a "sua" Ponte Pênsil era usada de maneira tão trágica. Muitas vezes ia até lá e ficava admirando aquela obra com os olhos, ainda românticos, de menino e com a técnica e a amargura de engenheiro adulto daqueles árduos tempos.

 

 

 

Foi num desses dias, passando sobre a ponte, que avistou uma linda moça que ali passeava na companhia de uma senhora. Notou que as duas choravam e se aproximou oferecendo gentilmente seu lenço. Soube que se tratava de mãe e filha e que choravam em razão do suicídio do marido e pai, respectivamente. Sentiu-se aliviado ao saber que o nefasto acontecimento não se dera na Ponte, mas, sim, em São Paulo, através de uma arma de fogo. O falecido era "barão do café" e morava com a família na Avenida Paulista. Depois do ocorrido, a mansão fora leiloada e elas resolveram passar uma temporada com uma parente que possuía uma chácara no Japuí. João estava triste com o que ouvia, mas também fascinado com a beleza daquela senhorita com lágrimas nos olhos. Seu nome era Verônica.

 

 

 

Depois de travar amizade com a família, notou que Verônica também tinha interesse por ele. Pediu permissão a sua mãe para lhe fazer a corte. Começaram a namorar. Todo dia, quando voltava do serviço, João ia ter com Verônica e passeavam de braços dados sobre a Ponte Pênsil. Ela gostava de ouvir as histórias sobre sua infância naquele lugar e de como ele tinha ficado triste quando soube da construção da ponte, passando, depois, a amá-la. As estripulias contadas por João faziam Verônica esquecer um pouco a tragédia que se abatera sobre seu lar.

 

 

 

Divertiram-se muito com as histórias sobre os escafandristas, a inauguração etc. Depois, com o sol se pondo no horizonte, trocavam juras de amor e alguns beijos furtivos sobre a Ponte Pênsil. Já se amavam muito.

 

 

 

Outros casais também costumavam namorar sobre a romântica Ponte Pênsil. Indo e vindo formavam uma coreografia apaixonada e pitoresca sobre o mar azul de São Vicente. Todos acenavam ao passar pelo guarda responsável pela ponte, o francês Fernando Besson. Com o inseparável cachimbo fazendo fumaça sob seus vastos bigodes, ele respondia sorrindo simpaticamente e Parecia lembrar-se de sua romântica terra natal.

 

 

 

Pouco tempo depois, João e Verônica estavam casados. Foi uma linda cerimônia na Matriz de São Vicente. Apesar da crise, houve uma festa digna e bonita. Os parentes de Verônica vieram de São Paulo e a mãe de João, pela primeira vez desde a morte de seu pai, vestiu uma cor que não fosse a preta. Compareceram algumas autoridades do município que tinham relações de amizade com o pai de João e com a família. O vereador Osias Isidoro dos Santos - prefeito municipal em exercício, que também era corretor de café - e sua esposa foram padrinhos de João, juntamente com seu irmão Luiz e uma amiga. Muitos amigos vieram curnprimentá-los.

 

 

 

A lua-de-mel foi na linda cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal do Brasil.

 

 


 

VIII - O TEMPO NÃO PÁRA.

 

 

 

 

Muita coisa se passara desde o casamento de João Calunga. Getúlio Vargas havia acabado com a política do café-com-leite, depondo Washington Luiz, através da Revolução de 1930, aproveitando-se da crise iniciada em 1929. "No entanto, em 1932, via-se acuado pelos paulistas que eclodiram a Revolução Constitucionalista pegando em armas contra a ditadura do Governo Federal". A participação dos vicentinos nessa Guerra Civil foi marcante e corajosa. João Calunga, na época acometido de uma hepatite, ficou impedido de participar, porém outros conterrâneos foram exemplo de galhardia e estão homenageados, atualmente, na Praça "Heróis de 32". Mesmo perdendo a luta contra as forças do Governo, os paulistas tiveram a Constitução almejada, em 1934. Não era a ideal, mas cedia em alguns pontos.

 

 

 

Também, em 1932, a Cidade completava 400 anos de existência. A Comissão Oficial Organizadora das Festividades Comemorativas do IV Centenário de São Vicente era formada por Anadyr Dias de Carvalho, Luiz F. Costa, Osias Isidoro dos Santos, Cel. Faustino Alcântara, Eduardo Araújo Filho, Rodolfo Mikulasch, Yago de Castro Bicudo e Walter Amaral. Nessa ocasião, foi lançada a pedra fundamental do monumento Coluna Padrão, que seria erigido sobre a Ilhota denominada Pedra do Mato, doado pela colônia portuguesa de Santos e São Vicente em homenagem ao povo vicentino. João Calunga e Verônica compareceram, em 19 de março de 1933, à inauguração do belo monumento conhecido popularmente, até hoje, como "Marco Padrão", pois simboliza o padrão quinhentista fixado em terras vicentinas por seus colonizadores.

 

 

 

Ao voltarem para casa foram convidados a tomar cafezinho na mansão, na Rua Frei Gaspar, do Barão Kurt Von Pritzelwitz, alemão, amigo da família de João desde os tempos de seu pai. Falaram sobre os rumos que a política alemã estava tomando com a ascensão de Hitler a chanceler. O barão parecia preocupado. Tinha razão.

 

 

 

Em 1937, veio o Estado Novo, com uma Constituição imposta por Getúlio, acabando de vez com as liberdades democráticas. No entanto, habilidoso caudilho que era, o ditador Vargas estreitou relações com a classe operária. Houve a sistematização da legislação trabalhista por meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, proporcionando assistência médica, aposentadoria e pensão aos trabalhadores. Enquanto isso, o Estado Novo patrocinava a organização dos sindicatos, com uma metodologia inspirada no fascismo italiano de Mussolini. Paradoxalmente, a partir de agosto de 1942, o Brasil iniciara sua participação na Segunda Guerra Mundial, ao lado dos aliados. Em contrapartida, o País ganhou a usina de Volta Redonda, presenteada pelos norte-americanos. O Brasil lutava na Europa contra o nazi-fascismo do Eixo e vivia, internamente, sob a opressão de uma constituição inspirada no totalitarismo italiano, alemão e polonês, daí ter sido chamada, pejorativamente, de "Polaca". Em 1943, os cidadãos alemães, italianos e japoneses foram compelidos a deixar o litoral brasileiro, por decreto de Vargas. Assim, o barão Von Pritzelwitz foi embora de São Vicente.

 

 

 

Com a vitória dos aliados, Getúlio cede às pressões e marca eleições para dezembro de 1945. Temendo o continuismo do Governo Vargas, agora apoiado no trabalhismo, as Forças Armadas depõem o caudilho e garantem as eleições.

 

 

 

Em 1946, o presidente da República era o general Eurico Gaspar Dutra, eleito pelo voto direto. O Congresso promulgou uma Constituição democrática e o País parecia se aprumar. O jogo foi proibido e assim foi fechado o Cassino de São Vicente, onde está hoje o Ilha Porchat Clube.

 

Nessa época, João Calunga já estava com 42 anos de idade. Seu relacionamento com Verônica era o melhor possível. Deus lhes dera um casal de filhos: Vítor, então com 12 anos, e Juliana, com 10. Ambos nascidos, em 1934 e 1936, respectivamente, no Hospital São José. O hospital, fundado em 1921, havia passado por melhorias, em 1929. Foi construído um segundo pavimento, inclusive com elevador e as obras foram concluídas em 1932. O casal sempre recordava, emocionado, o nascimento dos filhos já na parte nova do prédio. Verônica necessitou dos serviços daquela entidade, pois tinha dificuldades com o parto normal. Graças à dedicação dos médicos e funcionários tudo correu a contento.

 

 

 

Os negócios da família iam novamente de vento em popa, administrados por seu irmão Luiz, e João trabalhava, ainda, no Saneamento de Santos. Lá, porém, as coisas não iam muito bem. A nova diretoria tinha nomeado, como chefe dos engenheiros, um sujeito que já trabalhava na empresa. Havia galgado posições "lambendo" as botas da nova cúpula. Antes, bajulava até mesmo a Calunga, que era funcionário mais antigo do que ele. Uma vez que se viu com um cargo relativamente importante mostrou quem era: sujeito recalcado e pedante. Invejoso, se sentia incomodado com a capacidade e o "berço de ouro" de João. Fazia intrigas e não se conformava com a admiração que o colega despertava nas belas mulheres da empresa. Enquanto o novo chefe se esforçava para mostrar sua virilidade saindo às claras com as mulheres mais desprovidas e tacanhas da repartição, João era disputado por moças charmosas e inteligentes às quais seu adversário não tinha acesso, apesar do cargo. Por conta disso tudo, o tolo chefe começou a fazer uma campanha de bastidores contra Calunga, tentando desmoralizá-lo.

 

 

 

Quando soube do jogo sujo do colega, João, que não tolerava esse tipo de coisa, foi até ele e disse o que pensava a seu respeito. Então, demitiu-se. O que poderia parecer uma vitória para seu oponente foi, na verdade, um trunfo para Calunga. Como não necessitava de trabalho assalariado para viver, ao contrário de seu adversário, João passou a se dedicar mais ao que sempre quis fazer: ser historiador. Pensava em escrever sobre a sua infância, sobre a Ponte Pênsil e outros logradouros de São Vicente. Passava os dias a escrever e a pesquisar em companhia de Verônica.

 

 

 

O casal saía a passear por São Vicente, todos os dias. Calunga explicava a Verônica sobre os pontos históricos da "Cellula Mater" da Nacionalidade, a Primeira Vila do Brasil. Caminhavam até a Praça João Pessoa, onde fica o Mercado Municipal. João dizia que por ali teria sido fundada a 1ª Câmara das Américas, por Martim Afonso de Souza. Iam até a Biquinha beber água. Verônica descobriu que era naquele local que Anchieta ensaiava autos teatrais e catequizava os índios. Paravam na "Casa da Bananada", ao lado da Ponte Pênsil, para saborear os famosos doces locais. Ali, próximo à cabeceira, João recordava mais uma vez sua infância. Sua mulher soube que antes da construção da Ponte o transporte por mar - entre o Morro dos Barbosas e o Japuí - era feito por barcos motorizados ou a remo. Atravessando para o Japuí, caminhavam até o Porto das Naus, o Primeiro Trapiche Alfandegário do Brasil. Calunga lhe contava que, por voltade 158O, o local fora transformado no engenho de açúcar de Jerônimo Leitão, incendiado por Joris Van Spilbergen, corsário holandês, em 1615.

 

 

 

Em um desses passeios, já em l947, foram surpreendidos por uma das ressacas mais fortes de São Vicente. O mar avançava sobre a Praça 22 de Janeiro, chegando até a Rua do Colégio. Todos ficaram em pânico. Afinal, a Cidade tinha amargas experiências históricas com a tal ressaca. Muitos chegaram a falar de maremotos que destruíram a Primeira Capela da Cidade, a Casa do Conselho, a Cadeia e outras casas que estavam onde é hoje a faixa de areia da Praia do Gonzaguinha. João lembrou-se das fortes ressacas de 1924, 1927 e 1928. Acalmou as pessoas dizendo que sempre o mar bateu em São Vicente e, certamente, essa não seria a última vez. "Afinal, a maré vai, mas volta. É até uma característica romântica da nossa terra", disse, sorrindo, àquelas pessoas assustadas.

 

 

 

Já escrevendo seu livro, a diretoria que assumiu o Saneamento, sabendo do valor de Calunga e da forma que havia ocorrido sua demissão, chamou-o de volta para assumir um cargo de responsabilidade e rebaixou seu detrator a um posto inferior. Calunga, que também amava a engenharia e seu trabalho, hesitou, mas acabou aceitando.

 

 

 

Assim, os anos iam-se passando. A vida sorria para João e Verônica. Seus filhos, Vítor e Juliana, já estavam adultos. Traziam amigos para se divertirem na sala de jogos da casa da família, no bairro da Boa Vista, e eram bons companheiros dos pais.

 

 

 

A Mãe de João havia falecido há pouco tempo. Calunga ficara consternado com o fato mas, com a ajuda de sua mulher, acabou por superar a dor, até porque ela já estava sofrendo muito em razão de doenças decorrentes de sua idade avançada. No entanto, pensava nela a todo instante com uma doce saudade.

 

 

 

 


 

IX - A ÉPOCA ÁUREA E O GOLPE

 

 

 

 

Nos anos 50, Getúlio Vargas voltara ao poder eleito diretamente. Em 1954, suicidou-se em meio a uma crise institucional. Juscelino Kubitschek de Oliveira foi eleito seu sucessor.

 

 

 

João Calunga estava ainda mais orgulhoso de São Vicente. Os vicentinos eram manchete por todo o Brasil. Em 24 de outubro de 1954, Wlamir Marques, atleta do C.R.Tumiaru, estreava na Seleção Brasileira de Basquete, tornando-se, mais tarde, campeão do mundo. A 9 de janeiro de 1955, o Cine Arte Palácio, em São Paulo, iniciava a apresentação do filme da Companhia Vera Cruz: "A um passo da glória", tendo como astro principal o vicentino Oswaldo Caiaffa dos Santos, que também marcou época como esportista. Em 20 de fevereiro do mesmo ano, era noticiada a outorga do prêmio "Roquete Pinto" ao cantor Mauricy Moura, revelação masculina de 1954. Nicomedes Pacheco de Barros destacava-se como um dos maiores nadadores do Brasil.

 

 

 

Em 5 de fevereiro de 1959, João Calunga e Verônica foram convidados para a solenidade de fundação do lnstituto Histórico e Geográfico de São Vicente, pelo historiador Francisco Martins dos Santos. Inicialmente instalado na Rua XV de Novembro, mudou-se depois para a Rua Frei Gaspar, onde era a casa do Barão alemão. Permanece lá até hoje.

 

 

 

Realmente, não faltavam razões para os vicentinos se orgulharem de sua terra. Além de ser São Vicente o Berço da Civilização Brasileira, ainda contava com gente ilustre e devotada.

 

 

 

João Calunga e Verônica tinham mais um motivo para se orgulhar: Vítor, o filho mais velho do casal, estava terminando o curso na Faculdade de História da Universidade de São Paulo, como aluno laureado; Juliana, a mais nova, ingressara na Faculdade de Medicina em Pinheiros, também na Capital. O casal estava sozinho novamente, como quando se casou.

 

 

 

Em 1960, João estava perto de se aposentar. Quase toda semana pegava Verônica pela mão e, com ela, ia recordar os tempos de namoro na velha Ponte Pênsil. "0 tempo passa de maneira inexorável, mas a nossa ponte está sempre aqui imponente", dizia João recostado no muro da Avenida Getúlio Vargas. "Para mim, é como se a Ponte Pênsil fizesse parte de nossa família", romanceava Verônica, com um brilho emocionado nos olhos. O barulho do mar e dos dormentes da ponte, rangendo sob os pneus dos carros, era música para os ouvidos dos dois.

 

 

 

Anos depois, João voltava para casa dirigindo seu carro pela orla marítima. Gostava de voltar devagar e olhar a praia. Passando pela divisa entre Santos e São Vicente, pela via de paralelepípedos, a caminho do bairro da Boa Vista, avistava a Ilha Porchat linda ainda, apesar de algumas construções já ofuscarem sua bela natureza. Os chapéus-de-sol, com suas grandes copas, circundavam a orla vicentina e davam um aspecto bucólico àquela paisagem ao entardecer. Naquele momento, o ar estava parado e modorrento. Nem as folhas das árvores balançavam. Ao chegar no portão de sua casa, notou que estava tudo escuro. Nem sequer a luz da garagem estava acesa como de costume. Estranhou. "Teria havido algo com Verônica?", perguntou a si mesmo, preocupado. Estacionou o carro, fechou a porta da garagem, virou a chave na fechadura da porta da frente e entrou. O silêncio era mortal. Ouviu o ruído de um fósforo se acendendo e avistou uma vela. Assustou-se com vários vultos na penumbra e acendeu a luz. "Parabéns a você...", o canto de várias vozes era ensurdecedor. Toda tensão foi atenuada quando viu Verônica à frente de seus filhos e de inúmeros amigos cantando para ele. Lembrava-se agora: era seu 60 º aniversário. Sua mulher preparara uma festa surpresa convidando todos a quem João amava.

 

 

 

Naquele início de 1964, lá estavam sua família e convidados que representavam a melhor estirpe das famílias vicentinas: Jayme Hourneaux de Moura, Fernando Martins Lichti, Alberto Lopes dos Santos, políticos vicentinos; os ex-prefeitos Orlando lntrieri e Luiz Beneditino Ferreira, com seus respectivos familiares. João Calunga apagou as velas e recebeu, emocionado, o abraço de todos. Beijou seus filhos, sua esposa e seu irmão Luiz. Ficara realmente sensibilizado com a surpresa. Enquanto saboreavam as delícias preparadas por Verônica, as senhoras e as crianças bebiam ponche e refresco, e os homens degustavam um "scotch" especial que Luiz trouxera da melhor loja de importação de Santos. Dançaram, riram e se divertiram a valer naquele ambiente de camaradagem, posando para as fotos que o filho de Calunga, Vítor, tirava com sua câmera "Rolleiflex" novinha, comprada com o seu primeiro salário de professor universitário. Não sabiam que o colorido da alegria daquela noite contrastaria, dias depois, com o cinza dos tempos duros e sombrios, o que, certamente, faria aumentar em muito a saudade daqueles áureos tempos.

 

 

 

João Calunga, São Vicente e o Brasil viveriam momentos cruciais e tristes a partir daquele ano.

 

 

 

Nas eleições de 1960, Jânio Quadros da UDN, elegera-se presidente da República com esmagadora votação, derrotando o Marechal Lott e Adhemar de Barros. Como vice-presidente, foi eleito João Goulart, candidato da coligação PSD-PTB, o que na época era possível. Jânio se elegeu apoiado em seu carisma pessoal e num populismo nunca visto desde Getúlio. O moralismo e o combate à corrupção eram os motes do eleito. No entanto, sete meses após sua posse, Quadros renunciou ao cargo, em 25 de agosto de 1961. Achando-se impedido de governar sem o apoio do Congresso, onde a maioria era do PSD-PTB, o presidente talvez buscasse colocar a Nação e as Forças Armadas a optar radicalmente: ou ele ou o Poder Legislativo. Se dar esse tipo de golpe era seu intento, como pensam muitos analistas políticos e historiadores, viu seu plano cair por terra. Não houve reação das massas nem dos militares.

 

 

 

Sejam quais forem as razões que levaram Jânio Quadros à renúncia, instalou-se o caos político no País. As Forças Armadas e a UDN se recusavam a cumprir a solução constitucional, ou seja, dar posse ao vice-presidente eleito com Jânio. Consideravam João Goulart o "herdeiro de Getúlio" e defensor das propostas de criação de uma "república sindicalista". Jango se encontrava em viagem oficial à China, o que dificultava mais as coisas. A solução encontrada pelo Congresso foi a imediata substituição do Presidencialismo pelo Parlamentarismo. Na república parlamentarista, quem governaria de fato seria o primeiro-ministro, escolhido por aquela Casa de Leis. Assim, o presidente continuava como chefe de Estado mas, já não era o chefe de Governo.

 

 

 

Tendo seus poderes, assim, limitados, João Goulart tomou posse em setembro de 1961, tendo Tancredo Neves como seu primeiro-ministro. Porém, em um país tradicionalmente presidencialista, não seria um parlamentarismo improvisado que iria vingar. O custo de vida crescia junto com a dívida externa e a instabilidade política aumentava como conseqüência.

 

 

 

Em janeiro de 1963, em um plebiscito nacional, por aproximadamentente 80% do eleitorado foi votado o retorno do presidencialismo. Assim, Jango voltou a ter os poderes originais que a Constituição de 1946 conferia aos presidentes da República.

 

 

 

João Goulart, extremamente comprometido com as forças populares e trabalhistas, sentia-se pressionado a executar "reformas de base". As Ligas Camponesas estavam em vias de criação. A reforma agrária, bancária, eleitoral e do ensino eram iminentes. O Governo estava entre o povo e as elites, isto é, entre "a cruz e a caldeirinha".

 

 

 

No início de 1964, começou a surgir uma conspiração com o escopo de evitar a implantação de uma pretensa "república sindicalista e esquerdista" no Brasil. Integravam tal reação importantes "setores militares, representantes do empresariado e das classes médias urbanas". Os mesmos que, em 1955, já haviam tentado impedir a posse de Juscelino, sem sucesso.

 

 

 

No dia 31 de março daquele ano, iniciou-se o movimento militar contra o Governo de Jango, em Minas Gerais, com a posterior adesão de São Paulo e de outros Estados. Sem o apoio das Forças Armadas, João Goulart estava acuado. O Golpe estava consolidado em 1º de abril. Não era mentira!

 

 

 

A 11 de abril tomava posse o primeiro presidente do período militar, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, com a promessa de devolver o País aos civis, num breve interregno. Os militares governaram por cerca de 21 anos. Em 1967, foi promulgada uma nova constituição.

 

 

 

Nesse ínterim, João Calunga, que sempre fora um democrata convicto, não gostava do que via. Em 13 de dezembro de 1968, o governo endureceu o regime. Com o Ato Institucional nº 5, o Congresso foi fechado e, por conseqüência, acabavam-se as liberdades democráticas e individuais. João e Verônica, já sexagenários, assistiam atônitos às notícias pela televisão. Estavam muito preocupados com seus filhos, que moravam em São Paulo. Juliana não corria tanto perigo, pois era médica. Porém, Vítor era professor universitário. Ainda por cima, de História do Brasil. Os temores do casal não eram infundados.

 

 

 

Na véspera do Natal de 1968, Verônica havia preparado uma bonita ceia para receber os dois filhos. Tentava, dessa maneira, amenizar as vicissitudes pelas quais o País passava, reunindo a família em torno daquele sentimento cristão. O telefone tocou à tarde. Calunga atendeu. Do outro lado, Juliana chorando balbuciou: "Pai, acabei de saber que prenderam Vítor". João perdeu a cor, começou a suar frio. "Calma filha, papai vai tomar providências agora", disse, tentando desesperadamente manter a calma. Pôs o aparelho no gancho e sentou-se na poltrona da sala. Verônica cuidava dos últimos preparativos da ceia, na cozinha. "Como vou dizer isso a ela?", pensava João, mais preocupado, naquele momento, com a saúde da esposa do que com o filho. Verônica, àquela altura, tinha problemas circulatórios e era diabética.

 

 

 

Calunga tinha razão. Ao saber da notícia, Verônica desmaiou e foi hospitalizada. Tivera um derrame. Enquanto os médicos cuidavam de sua mulher, João telefonou para um amigo, dos tempos de escola, que era um general influente no, então, atual governo. Por sorte, o velho amigo mostrou-se solidário e disse que faria o possível para libertar seu filho. "Ele é apenas um idealista ingênuo", dizia João apelando ao militar. Telefonou, em seguida, para Juliana e contou sobre sua mãe, dizendo que já tinha providenciado ajuda ao irmão. Juliana desceu a serra imediatamente e ficou com o pai no hospital, junto ao leito da mãe. Verônica estava inconsciente.

 

 

 

Três dias depois, Vítor era libertado, por influência do amigo general, sob a condição de deixar o País o quanto antes. Tarde demais. Verônica havia acabado de falecer.

 

 


 

X - A PONTE ILUMINADA

 

 

 

 

Depois da morte de Verônica, João Calunga nunca mais foi o mesmo. Perdera a companheira de quase quarenta anos. Ela havia sido o esteio das felicidades e aflições do marido. Sua confidente e cúmplice em todos os momentos, desde que se conheceram no período pós-crise de 29. Foi no ombro dela que chorou a morte de sua mãe, foi com ela que teve seus filhos. Ela o aconselhara no momento difícil pelo qual passou no emprego, quando quase todos os amigos o esqueceram. Nela, João buscara incentivo para continuar lutando e ser feliz. Com ela, foi embora um pouco dele.

 

 

 

Seu filho, Vítor, havia se exilado em Londres, após a morte da mãe, e Juliana tinha sua própria família e sua carreira para cuidar em São Paulo, embora viesse vê-lo sempre que podia. Mesmo assim, sempre insistia para que o pai fosse morar na Capital, junto dela, quando se aposentou. João se recusava veementemente. Afinal, suas raízes estavam em São Vicente. Não poderia viver longe de sua terra e de "sua" Ponte Pênsil que tantas recordações lhe trazia. Depois, achava que não tinha nada a fazer lá, a não ser atrapalhar sua filha.

 

 

 

João tinha 75 anos, em 1979. Com a anistia, seu filho pôde voltar ao Brasil. Foi um dos raros momentos de alegria para Calunga, desde a morte de sua amada. Vítor voltou a lecionar na Universidade de São Paulo e também insistia com o pai para que viesse morar com ele. Não adiantava. João cumpria à risca suas convicções.

 

 

 

Seu irmão Luiz, companhia constante nos últimos tempos, já estava com 80 anos e, apesar da idade, ainda acompanhava Calunga em suas caminhadas até a Ponte Pênsil. Como eles, a ponte também já estava idosa. Tinha 65 anos. Mal podia com o peso dos carros, ônibus e caminhões que passavam sobre ela diariamente. Apesar de haver sido tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Estado de São Paulo - CONDEPHAAT - em 30 de abril de 1982, a ponte carecia de reforma geral urgente. Falavam até em desativá-la, já que uma ponte moderna, com duas pistas independentes, estava começando a ser construída no final de 1979. A primeira pista foi inaugurada em 19 de dezembro de 1981 e a segunda pista, em 30 de março de 1982. No entanto, apesar de aliviar em muito o tráfego sobre a Ponte Pênsil, a moderna Ponte do Mar Pequeno jamais teria o encanto e a beleza da velha ponte.

 

 

 

João e Luiz recordavam com extrema lucidez cada momento vivido ali. O mar já não era tão limpo e cristalino e os botos não mais nadavam naquelas águas. O progresso tinha chegado a São Vicente. Uma fileira de prédios circundava a orla marítima. A vida noturna era vigorosa. A cidade, em quase sua totalidade, estava iluminada e pavimentada. Apesar de ter perdido terreno para Santos, em virtude de seu porto, o maior da América Latina, São Vicente ainda ganhava em beleza natural e a Ponte continuava sendo muito usada por quem morava no Japuí.

 

 

 

Quando Luiz morreu, em 1982, com 83 anos, João viu-se completamente só. Sua saúde piorava a cada dia e, assim como a Ponte Pênsil, necessitava de cuidados especiais. A sua pressão arterial estava cada vez mais baixa e seu coração já não era o de um jovem acostumado a enfrentar as agruras da vida. No entanto, era teimoso e insistia em morar na sua cidade mesmo sabendo que o nível do mar não fazia bem a sua pressão. Juliana e Vítor contrataram um enfermeiro para o assistir.

 

 

 

O general João Figueiredo foi o último presidente do regime militar. Após um amplo movimento popular pela redemocratização do Brasil, com a campanha das "Diretas Já", Sarney sucedeu o militar na Presidência da República, em 1985, eleito, ainda, indiretamente pelo Colégio Eleitoral, como vice-presidente na chapa encabeçada por Tancredo Neves. Este foi internado um dia antes de tomar posse vindo a morrer pouco tempo depois. Em 5 de outubro de 1988, uma Constituição democrática foi promulgada.

 

 

 

Em dezembro de 1988, após várias intervenções do, então, prefeito Sebastião Ribeiro da Silva, através da Secretaria de Cultura, o Governo do Estado resolveu, finalmente, dar à Ponte Pênsil a devida atenção. Anunciou uma reforma total a ser executada. Um trabalho intenso de completa restauração foi iniciado.

 

 

 

João Calunga - que com seus 84 anos ainda ia quase diariamente visitar o monumento, em companhia de seu enfermeiro - exultou com a notícia e, mais ainda, quando viu a ponte como nova, em 1990. Já tinha então 86 anos. Fernando Collor de Mello governava o País, tendo sido o primeiro presidente eleito diretamente pelo povo, após 29 anos. Cerca de dois anos e meio depois teria seu mandato cassado pelo Congresso, por corrupção. Mais uma vez, assumia o vice-presidente. Desta vez, ltamar Franco.

 

 

 

A saúde de João Calunga piorava. Com a alegria e a emoção de ver a ponte restaurada, e talvez por isso mesmo, seu estado se agravara. Sua pressão arterial estava assustadoramente baixa. Seus filhos, Vítor e Juliana, que era médica, resolveram não mais ceder às vontades do pai. Vieram a São Vicente em uma tarde ensolarada. Calunga estava deitado. Suas forças pareciam esvaír-se. Quando viu seus filhos entrarem no quarto, logo percebeu o que tinham em mente. Afinal, apesar da idade avançada, ainda era um homem perspicaz e inteligente. Ambos beijaram-no e perguntaram sobre seu estado ao enfermeiro. Juliana o examinou demoradamente. "Eu estou bem minha filha, foi só um susto", dizia Calunga, numa última tentativa de esconder dos filhos sua situação. "Não está não, pai. Como filha gostaria de fazer sua vontade e deixá-lo aqui em São Vicente mas, como médica, não posso", disse Juliana em tom solene. "Hoje mesmo o levaremos para São Paulo. A altitude lhe fará bem e estaremos sempre a seu lado", acrescentou.

 

 

 

Aquela notícia fez com que as lágrimas caíssem mansamente dos olhos de Calunga, formando uma trilha incerta e brilhante sobre sua face. Vítor completou: "Pai, nós não podemos deixá-lo morrer. Amamos você". João nada respondeu. Sabia que os filhos tinham razão e que, como filho, faria o mesmo por seu pai. Sabia que não mais podiam adiar aquela decisão.

 

 

 

A ambulância, vinda de São Paulo a pedido de Juliana, chegou logo depois para apanhá-lo. Foi colocado cuidadosamente na maca e, sendo levado até o veículo, ainda teve tempo de ver sua velha casa e de acenar para o enfermeiro e para a empregada.

 

 

 

Na capital, sua saúde melhorou sensivelmente. A companhia dos filhos e netos somada a altitude do planalto paulista lhe deram nova vida. Porém, não passava um só dia sem se lembrar de Verônica. Sabia que parte dela ainda estava em São Vicente, especialmente na Ponte Pênsil. Sentia o mesmo em relação a seus pais e seu irmão.

 

 

 

Saía para passear todas as manhãs, sempre acompanhado por seus netos. Volta e meia, pedia aos filhos para que o levassem a visitar sua querida terra. Juliana dizia que ainda não era o momento, e que seria um risco para sua pressão.

 

 

 

Em 1994, depois de alguns anos nesse "exílio", João completava 90 anos. Seus familiares lhe prepararam uma grande festa. João Calunga estava feliz com o amor e a dedicação de seus filhos, netos e bisnetos. Naquele dia, Juliana até o autorizou a beber um pouquinho de uísque aguado para comemorar. Ganhou muitos presentes, mas desejava um só: voltar a ver São Vicente e a "sua" Ponte Pênsil. Os filhos não lhe podiam recusar, pela milésima vez, tal desejo. Muito menos no seu 90º aniversário. "Está bem, papai. Seu estado de saúde está satisfatório. Temo por sua pressão ao nível do mar... Mas creio que será pior se não o levarmos até lá", disse Juliana, carinhosamente.

 

 

 

João Calunga sorriu como um menino. Combinaram que em breve o levariam. Finalmente chegara o grande dia. O velho João estava lépido como um moleque. Banhou-se e vestiu uma roupa nova que ganhara no aniversário. Como era sábado, a Rodovia dos Imigrantes estava aberta para os carros descerem ao litoral. No caminho ia contando mais uma vez, suas travessuras de criança e de como descia a serra pela "estrada velha", com seu Ford 29, nos seus tempos de faculdade. Sempre contava as mesmas histórias, mas, mesmo assim, todos gostavam de ouvi-las. Lembrou-se que naquele dia, 21 de maio de 1994, a Ponte Pênsil completava 80 anos. As cenas da inauguração, voltaram nítidas à sua mente.

 

 

 

Já ao entardecer chegaram à Baixada. João nem sequer sentira a mudança de pressão, de tão eufórico que estava. Sentia de longe o cheiro do mar trazido pelo velho vento noroeste.

 

 

 

A casa de João havia sido vendida logo após sua ida para São Paulo. O dinheiro da venda fora aplicado no banco em seu nome, pelos filhos. Naquela noite, iriam pernoitar no apartamento de temporada de Vítor, na Ilha Porchat. Ao começarem a subir a ilha, João pediu a seu filho que parasse o carro.

 

 

 

O crepúsculo do sol, visto daquele ângulo, era magnífico. João avistou a Ponte Pênsil ao fundo. Todos admiravam aquela linda paisagem enquanto anoitecia. De repente, num lampejo, a velha ponte ficou toda iluminada, o que realçava suas belas formas. João Calunga não acreditava no que via. A ponte se destacava no início da noite como se fosse uma visão. Uma bela miragem.

 

 

 

Realmente, o prefeito municipal, Luiz Carlos Luca Pedro, havia mandado colocar lâmpadas em toda a extensão da ponte para comemorar os 80 anos de sua inauguração. Devido à importância histórica do monumento, a Administração já havia introduzido a figura da Ponte Pênsil em sua logomarca oficial.

 

Naquele instante, o prefeito acionara o dispositivo acendendo as luminárias que ornamentavam o monumento. Uma linda queima de fogos se seguiu, em forma de cascata, colorindo a paisagem.

 

 

 

Calunga via aquele espetáculo, e todo aquele brilho que chegava até ele se repartia em mil fragmentos de reminiscências e saudades. Em cada lâmpada, em cada faísca, via sua mãe preparando os bolinhos de chuva à beira do fogão à lenha, seu pai vestido em seu impecável terno branco de linho e sua amada esposa Verônica a namorá-lo sobre a ponte. Todos felizes, todos sorrindo. Toda sua vida foi retrocedendo em sua memória como um filme projetado em uma tela. Via-se menino, junto com o irmão Luiz, observando os escafandristas, durante a construção da ponte. De repente, estava na antiga sede náutica do clube. Seu irmão pulava ao mar sendo observado pelos botos e pelas várias espécies de peixes, chamando-o para mergulhar também. João Calunga, sem hesitar, precipitou-se sobre aquelas águas cristalinas e azuis, cada vez mais azuis, à medida que submergia.

 

 

 

Enfim, estava plenamente feliz ao lado de todos a quem amou, em sua querida terra e próximo à Ponte Pênsil, agora iluminada. Já vivera intensamente o seu tempo, a sua época. Sabia que cumprira a missão que lhe fora destinada. Caberia, agora, a seus filhos, por intermédio dos netos e descendentes, perpetuarem a sua vida.

 

 

 

 


 

Este trabalho é dedicado à memória de meu avô materno, Osias lsidoro dos Santos, que tanto amou São Vicente.

 

 

 

O Autor.

 

 

 

 


 

Quero expressar minha gratidão ao dr. Jayme Houmeaux de Moura e ao sr. Orlando lntrieri que, com carinho e boa vontade, se prontificaram a relatar como era a vida em São Vicente à época da inauguração da Ponte Pênsil.

 

 

 

O Autor.

 

 


 

Agradecimentos especiais

 

(em ordem alfabética)

 

 

 

- C.R. Tumiaru

 

- Centro de Recreação Infantil Super Amigos

 

- Colégio Itá

 

- Educandário São Gabriel

 

- Escolas Fisk - S. Vicente

 

- Femando Martins Lichti

 

- Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente

 

- Jornal "A Tribuna"

 

- Olga Caiaffa dos Santos

 

- Paulo Ricardo Horneaux de Mendonça

 

- Renata Maria Mantovani

 

- Tuca Fotos

 

- Todos os funcionários da P.M.S.V.

 

 

 

 


DADOS SOBRE O AUTOR

 

 

 

 

João Maurício Caiaffa dos Santos lbañez, 38 anos, é advogado. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos. No início da década de 80, cursou Filosofia na Universidade de São Paulo, ocasião em que esteve na Europa pesquisando sobre a obra de Thomas Hobbes, "O Leviatã", notadamente junto ao British Museum e ao London College, na Inglaterra. Compositor e autor, atuou como cantor e contrabaixista profissional, em São Paulo e na Baixada, tendo algumas de suas canções sido tocadas pelas rádios. É diretor no Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente. Atualmente, exerce a advocacia em seu ecritório profissional na Região de Campinas/SP.

 

 

 

 


 

BIBLIOGRAFIA

 

 

 

 

 

 

1. AZEVEDO, Édison Telles de, Vultos Vicentinos Emp.

 

Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda. - 1972.

 

 

 

2. CARONE, Edgar - A República Velha I e II (Instituições e

 

Classes Sociais - Evolução Política) - Difel - SP - 1970/1971 e

 

Revoluções do Brasil Contemporâneo - São Paulo, Ed. Buriti,

 

1965.

 

 

 

3. CARVALHO, Narciso Vital de, - Conheça as ruas de sua

 

Cidade, 1982.

 

 

 

4. HOLLANDA, Sérgio Buarque de, e outros - História do Brasil

 

(2 volumes), São Paulo, Cia. - Ed. Nacional, 1975

 

 

 

5. Poliantéia Vicentina - 1532/1982, Ed. Caudex Ltda. Vários

 

autores. Publicação supervisionada pelo Instituto Histórico e

 

Geográfico de São Vicente, na pessoa do sr. Fernando Martins

 

Lichti.

 

 

 

6. PRADO JUNIOR, Caio - História Econômica do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1970.

 

 

 

7. SHUMPETER, J. - Business Cycles,

 

N. York, MacGraw - Hill, 1939 - (2 volumes)

 

 

 

8. SODRÉ, Nelson Werneck - Formação Histórica do Brasil

 

São Paulo, 1962.

 

 

 

9. VÁRIOS AUTORES, História (2º Grau), 7ª edição. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1988.  


 

 

"A Ponte Pênsil e o menino" Copyright (C) 1994 João Maurício Caiaffa dos Santos lbañez.

 

Todos os direitos reservados ao autor - Proibida a reprodução parcial ou total desta obra através de qualquer meio existente ou que venha a existir, sem a expressa autorização do autor, sob pena de serem aplicadas ao infrator as sanções previstas na Lei de Direitos Autorais e no Código Penal.

 

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