O seio estudantil - Militantes e Limitantes

                  Os militantes são, sem dúvida alguma, o pilar (a base) do movimento estudantil e de qualquer movimento social. Apesar de sua importância, os militantes são, ao mesmo tempo, o escravo e o capitão-do-mato do movimento. Não há a intenção de estereotipar todos que militam em movimentos sociais ou criar uma lei que indique como se comportam estes e suas reais funções em meio ao movimento. Apenas torna-se interessante especular sobre a concepção de militante, sua função no grupo social e os limites criados por estes para o movimento. Até onde os militantes são os próprios limitantes de um movimento? Qual a participação do militante na pouca (ou quase nenhuma) criatividade do movimento? Em que esfera de poder se encontra o militante? Quais os limites impostos aos movimentos? Tentaremos dialogar com algumas dessas questões, entendendo que toda análise sobre o militante e os limites criados por estes são apenas frutos de observações cotidianas.

Apóstolo, membro orgânico, aquele que milita, que está na militância, militante. Seja qual for à denominação, o sujeito que se propõe a participar dum movimento e atua neste, é sujeito construtor, agente histórico do mesmo. O militante normalmente é um indivíduo que se encontra próximo (espaço, tempo, psicológico, afetivo e etc) do movimento consolidado ou consolidando. No movimento estudantil boa parte dos militantes é originária da classe média urbana, por ser essa a que alimenta a própria universidade. Para muitos, ser militante é quase uma honraria, uma insígnia que pode traçar-lhe determinadas características. Para um dirigente[1], um militante é mais um fortalecedor do movimento e “agente de transformação”. Para quem está de fora do movimento o militante pode ser mais um esperançoso ou apenas mais um pobre (de mercadoria, de razão, de experiência e etc). O militante diferencia-se do dirigente por sua função hierárquica, por seu papel no grupo e por seu status, e diferencia daqueles aquém ao movimento por seu “estereotipo movimentista” e por sua função naquele grupo social. Mas, de fato, o militante pode ser considerado um ator ou figurante que não detém o poder de seus papéis no conjunto dos espetáculos (sejam estes capitalistas ou não).

O palco de atuação do militante é um movimento, assim a situação do segundo é reflexo direto da atuação do primeiro. Apesar de alguns ativistas políticos acreditarem que os movimentos sociais estão, a cada dia, tendo êxito, deve-se entender que tal êxito depende muito de seu ponto de vista. Então se pode falar que para quem quer reformas na estrutura social e adaptações que melhor convém, os movimentos estão, de fato, colaborando com mudanças no capitalismo. Mas para os mais preocupados com mudanças reais na estrutura social, as limitações dos movimentos acabam por não fornecer subsídios para rompimentos e construção de novos momentos ou situações que não colaborem com o capitalismo. As limitações são encontradas por qualquer trilha que passe pela estrada dos movimentos. Podemos listar algumas só por exemplos: o monopólio institucional da representatividade; a organização das bases de forma partidária ou semi-partidária; o atrelamento a agentes externos ao seu meio (grupos políticos) como forma de garantir seu espaço na sociedade; a existência de ideologia como forma de moldar, explicar, conduzir e finalizar o movimento; e etc. Toda limitação é sustentada pelos militantes, desde quando estes agem até quando deixam de agir.

Traçando um ciclo para os atuais movimentos ou ações sociais, temos: problema, reuniões de discussões, assembléia, criação de uma direção, explicação e condução do movimento, fim do movimento com falsos ganhos. Tradição ou cultura, o fato é que parece que assembléia com suas questões de ordem, de encaminhamento e de esclarecimento, tal como a representatividade e a ideologia são obrigatórias em qualquer movimento. É preciso lembrar que os humanos se movimentam mesmo sem ideologia, assembléia ou direção. Quando as pessoas saíram às ruas para protestar contra a chacina de Vigário Geral não existia ali ideologia que moldasse o grupo, fazendo-os praticar tal ato ou mesmo uma direção que organizasse o tumulto (cantado pela banda O Rappa). Se lembrarmos da Revolta do Busu em Salvador, vemos várias pessoas dizendo que simplesmente saíram das escolas e foram para as ruas, em vários lugares diferentes, sem orientação de nenhuma entidade representativa municipal, estadual ou federal. (De forma muito interessante, o exemplo do ENEH 2005[2] mostra que os indivíduos agem por uma ligação afetiva e não por limites burocráticos e ideológicos). Não se pode atribuir estereotipo ideológico a todos que saiam as ruas, não convém dizer que eram socialistas, capitalistas ou qualquer destes istas, eles tinham um problema e apenas saíram às ruas na intenção de resolver. É certo que sempre aparecem alguns se dizendo representantes do movimento e conseguem, com sua fantasia de direção e sua ideologia estampada na testa, acabar com o movimento. Não é uma questão de defender tais movimentos, mas nestes e em poucos outros houve uma tentativa de quebra do ciclo do movimento. As pessoas agiam e simplesmente não precisavam dizer que aquela ação foi deliberada por entidade alguma, mas, mais do que tudo, as ações eram frutos da insatisfação própria daqueles que a faziam. Os exemplos são apenas pra tentar mostrar que os indivíduos agem mesmo sem determinadas formulas e moldes. Mais do que isso, com o exemplo da Revolta do Busu, e poderia incluir também o Maio de 68 na França[3] e no mundo, os movimentos tendem sempre a acabar quando a formas (representatividade, ideologia e etc) tentam se impor ao movimento.

O sr. Karl Marx escreve em seu livro “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” que a teoria se torna uma força material quando se fundi às massas, e se fundi fazendo demonstrações ad hominem, e faz demonstrações ad hominem quando se é radical, para tanto é necessário entender que ser radical é tomar as coisas pela raiz, sendo que a raiz do homem é o próprio homem. Não é necessário aqui saber quais eram os sentimentos ou mesmo as intenções do sr. Karl ao escrever sobre a teoria (não ideologia) e as massas, como também sobre o que é  radical, mas é interessante notar que são as inquietudes dos indivíduos (seus problemas, a falta do viver) que fazem eles agirem e transformarem seu meio, não às ideologias ou à vontade de determinada direção. A teoria então, provém das massas e é construída por estas. Não há como provar que todos os militantes do MST[4] têm discussões marxistas ou mesmo que acredite nestas, no entanto eles ainda se movem (de movimento). É fato também que as machas feitas por este movimento não foram livremente (na dinâmica política) construída, mas foi interessante para a direção do movimento e prontamente os militantes a construíram. Por mais que se tome a coisa pela raiz, ainda assim é preciso tomar o devido cuidado com o discurso político alienado e alienante, do ponto de vista que esse pode trazer para aqueles que livremente querem se movimentar, os moldes que os farão se movimentar por causa de uma idéia massificada ou uma promessa falsamente esperançosa. É dessa doença que sofre o militante, da excrementável associação entre ideologia e representatividade e todos os limites construídos por estas. No entanto carece dizer que essa doença é provocada por uma espécie de droga (anabolizante, por exemplo), onde muitas vezes se tem à opção de tomar, acreditando lhe trazer bons frutos, e indesejavelmente se contrai uma doença.

Uma vez contraída a doença o movimento a desmente enquanto problema patológico, e a maquia como mais uma característica democraticamente construída. E é nesse cenário de maquiagem por cima da ferida que muitos indivíduos chegam dispostos a militar. Há aqueles que não vêem a ferida, outros que vêem, mas aceitam a maquiagem, e outros que tenta tirar a maquiagem ou não se borrar com ela. Os fenômenos mais interessantes são dos dois primeiros e ai adentra algumas motivações que os fazem não ver ou aceitar: 1) a necessidade dos indivíduos de tomar parte do controle do desenvolvimento social; 2) o engajamento político do movimento possibilitado pela problemática social; 3) os espaços de poder a ser disputado no e pelo movimento. Apesar de só ter destacado três motivações, há ainda muitas outras que poderiam justificar os fenômenos acima citados. De fato o movimento estudantil é atraente, mas atrai por seus maiores problemas que como uma miragem, se confundi com suas virtudes (apesar de poucas, existem). O militante neste caso funciona como as próprias condições de um deserto ao alimentar esta miragem. Uma vez comido a areia do deserto não é tão fácil desfazer-se dela e buscar a água, normalmente espera que outros comam essa areia, e o ciclo se repete.

Se depois de algumas dozes entendêssemos o movimento estudantil como um rito de passagem para a luta dos trabalhadores no cotidiano, e as experiências assimiladas como uma forma de comparação grotesca, mas ainda assim necessária para as reais lutas, poder-se-ia negar a triste realidade que é o vazio político e a falta de mobilização dos trabalhadores de nível universitário. O militante, então, depois de construir (limitar) um movimento em sua universidade, fora desta não se vê em condições (com as quais contou com toda a estrutura na universidade) para realizar os mínimos atos necessários para conscientização de seus colegas trabalhadores. Ora, se sem as condições que a universidade dá ao indivíduo (então militante) para que ele aja, este não consegue movimentar-se, podemos admitir que não havia consciência político-social, mas um vazio político influenciado pelo meio que o fazia se tornar um militante.

Bem, é fato que a maior parte dos estudantes chegam à universidade sem uma consciência político-social, e que em sua maioria saem da universidade (até muitos que militavam) e não põe em pratica o militantismo na vida enquanto trabalhador. Olhando do alto parece que o movimento estudantil é como uma fonte d’água que apenas é permitida beber naquele local, jamais trazer água ou levar. Os indivíduos entram na universidade e parece que não trazem qualquer contribuição para mudar a forma do movimento, da mesma forma que saem da universidade e parecem não levar consigo a cultura e o espírito deste. Dessa forma a função do militante – ainda olhando do alto – é manter inalterado a forma do movimento, para que outros também possam consumi-lo e dar continuidade ao seu trabalho. Diz-se que a função do trabalhador no capitalismo é reproduzir a criação dum capitalista inúmera vezes sem alterá-lo, e não o altera por não deter a criação, apenas a reprodução. No movimento estudantil essa lógica se repete, reproduzindo assembléias, manifestações públicas, panfletagens e etc. Entra ano e sai ano, e a estanque forma de mobilização e discussão continua sólida como pedra.

Já que foi citado o capitalismo, talvez seja interessante apontar alguns limitantes do movimento que estão implícitos nos moldes do sistema. A exemplo temos a democracia que é sempre almejada dentro de qualquer movimento de forma a fazer entender para muitos a coerência na condução dos trabalhos. Ao lembrar do Sr. Tom Zé dizendo que o demo (demônio) é a democracia, e meu amigo Diego dizendo que “a democracia é a forma de domínio no inferno”, pode-se entender que a condução dos trabalhos de forma democrática não trás nenhum mérito ao movimento ou não o faz mais engrandecedor e digno do termo coerente. (A democracia burguesa levou Collor, FHC e Lula ao poder, enquanto o povo sempre continuou sofrendo. Até aonde a democracia estudantil não é burguesa? Vide UNE[5]). De alguma forma o poder do povo se transforma em “poder do estudante”, mas um poder de voto, um poder de participação, não um poder de mudança na estrutura. Poucos movimentos poderiam ser aqui citados que através da democracia representativa mudou sua forma e não fez esta levar o movimento ao dirigentismo e à propagação de ideologia. Até aonde se sabe esta democracia só levou os estudantes a renhir os espaços de poder estudantis. O termo coerente seria digno da proposta de radicalismo, não de democratismo. Outro limitante bem interessante é o ordeirismo dos movimentos que, apesar de fazerem severas críticas ao Estado e blá, blá, blá, se comportam como os filhinhos educados e disciplinados do sistema. São palavras de ORDEM, faixas, bandeiras (essas o PSTU e o PSOL já gostam), passeatas e etc. De forma que devia ter em todos os movimentos sempre um questionamento:  está lutando por alguma coisa ou está pedindo alguma coisa. Pode parecer bobo, mas muitas vezes o que confundi o movimento estudantil é: se de petição ou de luta. Confundi-se, mas não por falta de subsídio para saber a verdade, se confundi propositalmente, pois tenta mascarar a petição com o nome de luta. O movimento pede, por não querer abalar as estruturas de poder do Estado. E ai entra o militante que está apetecido pela possibilidade de poder deter no futuro aquele poder dos políticos do Estado. Se democrático porque o militante se fascina com o espetáculo democrático a sua volta, se de petição porque o militante quer que no futuro alguém o peça e não tome o seu poder.

As próprias aspirações estudantis são os próprios dilemas dos movimentos. A disputa de espaços de poder estudantis (agremiações, DCE’s, CA’s e DA’s, uniões, federações e etc) é também o fortalecimento do modelo de  movimento estudantil, que por sua vez atende as demandas “democráticas” da sociedade capitalista! Se utilizarmos o exemplo dos partidos políticos – partidos que quando conseguem contribuem para o sistema –, temos uma realidade de busca constante por estar em todos os focos de poder. Se é o PC do B quem domina a UNE, é unicamente porque os outros partidos não conseguiram dominar. O mesmo exemplo vale para o PT e a CUT[6]. Os estudantes atuais, também querem disputar os outros espaços de poder que não meramente representativos, querem também estar na máquina estatal, assim como os estudantes da ditadura hoje ocupam ministérios, estatais, e o congresso. E essa análise fica engraçada quando nos damos conta que os estudantes de hoje criticam os estudantes de ontem, mas se orientam no mesmo sentido. Há sim uma diferença,  os de hoje dizem que fariam diferente se chegassem ao poder... mas os de ontem também não falaram isso?

O problema é que, diferente dos estudantes, o sistema capitalista mudou, de forma que se adaptou a realidade estanque de movimento estudantil. Hoje o capitalismo abre as portas para os estudantes e vos dão dinheiro para militar, tal como entidades previstas em leis, regimentos e estatutos estatais. (É o Estado dando balas de festim para os estudantes atirarem nele). O militante, neste caso, é muito grato às atuais condições em que se encontra o seu meio e não faz nada para mudar. O seu vício em utilizar espaços políticos já construídos, e já previstos pelo Estado, e não optar pela alternativa de construir novos espaços políticos (não como a CONLUTAS e a CONLUTE do PSTU[7]) de forma a destruir os modelos dos antigos, o faz limitar seu raio de ação até onde a “democracia” burguesa permite. O desenvolvimento do sistema não se deu apenas nas questões infraestruturais, mas também nos métodos de lutar contra seu inimigo. Hoje o Estado detém as concepções de movimento e até, em alguns casos, incentiva os movimentos (vide líder da CUT como Ministro de Estado, a UNE recebendo incentivo (verba) do governo federal e etc). Fazer os movimentos participarem do espetáculo Estado-mercado é a forma mais eficaz que o sistema encontrou para se manter.

As novas concepções de movimentos existentes devem superar este modelo de militante, qualquer modelo de representatividade, a forma organizacional e institucional dos coletivos de estudantes e etc. Os limites dos militantes são também os limites dos movimentos. A destruição destes limites é a nova marginalização dos movimentos, a ação direta, o horizontalismo organizacional, a crítica (prática e teórica) das estruturas opressivas. Deve-se superar a instituição que é o movimento estudantil e criar formas de organização necessárias para as novas condições na qual vivemos. A maior contribuição que os atuais militantes podem dar para a humanidade é lutar não para chegar ao poder, mas pela destruição total de todo poder.

Notas:

[1] O dirigente também é um militante, mas não convencional. A diferença entre estes é construída pelos próprios militantes que permitem que alguém os coordene, dirijam...

[2] Encontro Nacional dos Estudantes de História, realizado em São Cristóvão /SE do dia 25 de setembro a 1 de outubro de 2005. O Ato público tirado em plenária final tinha como caráter a crítica ao Governo do PT, mas antes deste Ato, os estudantes se confrontaram com a polícia militar, e no dia seguinte foram às ruas protestas contra a violência do aparelho repressor do Estado e lutar pelo Passe-livre parando vias e sendo cercado pela polícia (desta vez sem confronto por causa das câmaras). Já o Ato deliberado em assembléia contra o governo deu menos de 20 pessoas.

[3] Movimento de estudantes e trabalhadores ocorrido na França em 1968 que ocupou fábricas e universidades, vide livro virtual “Paris:Maio de 68” do grupo Solidarity, Ed. Conrad, Edição Baderna.

[4] Movimento Social dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

[5] União Nacional dos Estudantes. Há mais de uma década controlada pela União da Juventude Socialista (UJS), uma entidade aparelhada pelo PC do B, ou seja stalinistas.

[6] Central Única dos Trabalhadores, entidade formada por sindicatos que é dominada por dirigentes do PT.

[7] CONLUTAS e CONLUTE foram entidades organizadas pelo PSTU para “organizar as lutas” não feitas pela CUT e UNE respectivamente, ou seja disputar militantes com a CUT e a UNE.

Gardência Fimon, outubro de 2005

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Ver também: Da miséria do meio estudantil - IS, Movimento Estudantil. e Anacrônico, mas revolucionário.

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