Quackwatch em português

Leituras da ISTOÉ: Nivelando por Baixo

Paulo Bento Bandarra, MD

Mais uma vez a revista IstoÉ de 3/9/2003 aborda as opções de tratamento com um grau preocupante de desinformação e deformação. A chamada na internet já é indicativa: "Nada de riscos". E publica artigo de capa com a perspectiva da união entre "O melhor dos dois mundos": o da adivinhação, as chamadas medicinas alternativas, e a "medicina convencional", esta última, a moderna prática criada a partir do desenvolvimento do conhecimento científico.

O que seria "convencional"? Diz o Dr. Bignardi, da Associação Brasileira de Medicina Complementária, que a "medicina convencional (decorrente da convenção que separou o espírito do corpo) se fundamentou e se restringiu ao corpo físico destituído de espírito e vitalidade e alienado do todo de que é parte integrante". Não é incrível? E eu que sempre pensei que convencional era "que é de uso ou de praxe; consolidado pelo uso ou pela prática". E que o "todo" era assunto de crença religiosa ou metafísica, fora do alcance de quaisquer medicamentos.

O que estaria então sendo proposto? Seria a união entre o mundo das benzeduras, encantamentos e sortilégios, aquele em que "o pensamento não é limitado pela matemática, lógica ou qualquer enfadonho antigo paradigma mecanicista" e o mundo científico a que se refere a jornalista? A articulista estaria pregando esta união em conjunto com a linha editorial da IstoÉ que estaria se tornando mais uma revista esotérica? A Planeta alternativa! No mesmo tom, a revista há pouco tempo nos brindou com um artigo sobre a medicina espiritual que vem sendo praticada por médicos em seus consultórios particulares.

Perfumes do espírito

Mas vamos fazer uma comparação. Você está dentro de um Boeing 777 sentado esperando para viajar. Entra uma pessoa sorridente fantasiada de piloto, cheio de cristais e medalhinhas orientais. Dirige-se aos passageiros comunicando que ele não aprendeu a dirigir avião pelo método convencional, mas intuiu a partir de uns livros antigos sobre como construir carroças de quatro rodas, e mais sua profunda meditação feita ao lado da aeronave. Informa ainda que, ajudado pela sua inabalável fé em Deus, tem certeza de que tudo dará certo. Afinal, dirá, os chineses já soltavam pipas há cinco mil anos! Ele exclama que é um piloto "alternativo". Você, nessa situação, ficaria esperando para ver no que ia dar ou, como eu, correria para fora do avião para reclamar da companhia aérea?

Na verdade, é desta forma que se está propondo às pessoas que tratem sua saúde, e é isso que a linha editorial da IstoÉ vem sustentando em suas recentes reportagens sobre o tema. Atribui-se à informação proveniente de qualquer feiticeiro, adivinho, inventor e ilusionista, bem ou mal intencionado, uma confiabilidade igual ou maior do que a informação de origem médica. A qualquer cidadão que fez um curso que ensina a colocar batatas em rodelas nas têmporas para curar depressão é franqueado conhecimento do sistema neurológico superior a nove anos de formação em Psiquiatria. Muitas vezes, resultados médicos comprovados, obtidos em estudos realizados e replicados independentemente em diversos centros médicos de renome internacional, são tratados com a mesma credibilidade das alegações de uma clínica de terapias baseadas em processos divinatórios desprovidos de qualquer evidência concreta de funcionamento.

A medicina moderna é uma profissão sustentada em ciências básicas, e que utiliza o mais recente conhecimento científico para determinar possíveis tratamentos, sempre se baseando em evidências de que isto realmente funciona. Não existe medicina alternativa. Existem, sim, pessoas que se propõem a ser alternativas ao conhecimento médico-científico moderno pelo uso da adivinhação, pela fabricação de pseudo-remédios visando o restabelecimento de supostos desequilíbrios energéticos, sugerindo perfumes que dizem tratar o espírito e curar o câncer. Mas não sustentam nenhuma dessas proposições com estudos replicáveis e concretos. Desenterraram livros embolorados de bibliotecas empoeiradas em busca de vindicação. Mas uma alternativa verdadeira à medicina deve funcionar com igual resultado, e isso só pode ser verificado pelo método científico, pela comprovação de cura em estudos controlados, e não pela simples alegação de alguém de alguma época passada.

Quinta-essência do charlatanismo

Estas pessoas que visam desinformar os cidadãos e atrair os incautos chamam a medicina de "ortodoxa", no sentido de algo dogmático, rígido, incapaz de mudança. Não é inacreditável? Se você pegar toda a base atual da moderna medicina científica nada nela pode ser considerado dogma. E ainda afirmam isso ao mesmo tempo em que acusam os médicos de estarem justamente separados da religião! Quais seriam estes dogmas? Talvez a cirurgia cardíaca, a UTI ou a neurocirurgia? Ou ortodoxo seria na verdade se usar o "todo" para mistificar?

As medicinas de bases ortodoxas que existem hoje são outras. A homeopatia chamada de "clássica", por exemplo, que não tem qualquer relação com o conhecimento científico, sendo toda sua teoria baseada em apenas um livro escrito há 190 anos por uma única pessoa. Alguém que, alheio ao conhecimento científico até da sua época, criou dogmas de fé para o futuro comprovar. Nada foi comprovado, exceto a persistência do dogma. Ortodoxo igualmente é o comportamento do praticante da medicina tradicional chinesa que, se suportado apenas em "tradição" de cinco mil anos, como o nome diz, aplica rotineiramente toda sorte de conceitos esotéricos e antiquados (como os meridianos energéticos, que eram uma das primeiras explicações para a circulação sangüínea), alegremente alheio a toda a evolução do conhecimento desde então. Igualmente dogmática é a medicina religiosa ayurvédica trazida da Índia primitiva.

Pessoas completamente ignorantes de todo e qualquer conhecimento em biologia, psicologia, farmacologia e fisiopatologia se arvoram a virtude de serem "holistas". Dizem-se aqueles que tratam a pessoa como um todo. Quinta-essência do charlatanismo. Sob este rótulo se abrigam hoje da cura pelo tarô e pela astrologia, à prescrição de chás, luzes, imãs, aplicação de pêndulos (radiestesia) e inúmeras formas de cura através da imposição de mãos e de manipulações variadas, indo das inócuas às positivamente perigosas. Mas se alguém não demonstra reunir a mínima condição para tratar o corpo, para curar uma simples unha encravada, muito mais há de se duvidar de que possa vir a tratar um "corpo espiritual"; que possa curar um "corpo etéreo", tendo, para tanto, adquirido conhecimento após ler um livro esotérico comprado em loja de bruxaria ou de práticas de wicca, também municiado de um monte de cristais e estatuetas para ganhar a vida em seu "consultório".

Rábulas e práticos

A articulista faz uma afirmação leviana. A de que os médicos "convencionais" não dão "a sensação de acolhimento e respeito pelas emoções que a maioria dos indivíduos experimenta ao passar pelos cuidados de um terapeuta complementar". O que o médico não faz, não pratica, é a mistificação da causa das doenças, criando dramas energéticos, espíritos e vidas passadas para explorar os pacientes. Não inventa câncer provocado pelo mau-olhado, e que pode ser curado com um "trabalhinho" alternativo por uns módicos milhares de reais. Não gera na imaginação da pessoa um mal inexistente, que só "ele sabe curar" por um método antigo de cinco mil anos.

Propõe o texto que se deve ter o cuidado para não cair na mão de um charlatão. Charlatão é o médico que pratica tratamentos inúteis, com a ressalva na legislação de que ele confesse não saber de sua inutilidade, pois se ele "acreditar" na terapia inútil está inimputável. Isso independentemente do resultado para o paciente que perdeu tempo, dinheiro e saúde. Curandeiros, segundo a lei, seriam as pessoas que não têm diploma de médico e empreguem os métodos hoje em dia utilizados por estes alegados terapeutas da reportagem. Mas o que queria o texto referir com charlatão é o significado original do termo, uma pessoa que promete o que não pode cumprir. O charlatanismo que o cidadão busca evitar é o uso de tratamentos inúteis, sejam eles aplicados por pessoas com ou sem formação.

No Estado Novo se acabaram com os rábulas e os práticos, pessoas que se auto-intitulavam profissionais e passavam a vida praticando livremente. O bem coletivo passou a superar o interesse individual e, reconhecendo o Estado que não se podia ser médico, dentista, farmacêutico ou advogado (ou piloto de Boeing) na base da adivinhação, exigiu-se que estas pessoas buscassem instrução, para só depois poderem atuar junto à sociedade.

CTA e baloeiros

Com a Constituição cidadã de 88 houve um completo desordenamento da saúde no país. Perdeu-se o parâmetro da responsabilidade, e os consumidores da saúde (doentes) passaram a presas livres do negócio de lucrar com o mal alheio. O cidadão doente deve descobrir na própria carne, muitas vezes tardiamente, na mão dos apregoadores de terapias que agem livremente, que o tratamento proposto não funcionou, nem poderia mesmo funcionar. Entregue à própria sorte, o brasileiro ludibriado arca com o ônus sozinho perante um Ministério Público omisso, que em defesa de sua inércia alega as garantias de liberdade de trabalho asseguradas pela nova Constituição. Não é para proteger uma "reserva de mercado" para médicos que se deve fiscalizar fortemente o exercício das práticas nas atividades de saúde. Esse argumento, muitas vezes trazido à discussão pelos alternativos leigos, não se aplica, tanto porque a prescrição de terapia sem efeitos comprovados é repreensível, não importando a formação de quem a faz, quanto porque qualquer cidadão brasileiro pode optar por fazer faculdade. O foco fiscalizatório deve justamente visar proteger o paciente.

Dada a abordagem feita pela imprensa aos temas de saúde, é talvez no jornalismo que seja necessário haver uma reserva de mercado para profissionais habilitados, tamanho o risco que se corre hoje ao ler uma publicação supostamente confiável. Num panorama tão emocional e confuso como o que envolve tudo o que é relacionado a doença, o que pode orientar as pessoas a distinguir as suas opções corretamente é uma imprensa realmente capacitada a informar, criticar, e que saiba ter parâmetros para tanto. Pessoas que não tenham base para avaliar as alegações feitas, mesmo que bem-intencionadas, muitas vezes acabam servindo de propagandistas seja de tal seita que entrevistou e com a qual se deslumbrou, seja de tal terapeuta que mostrou seus santinhos na parede, ou dos remedinhos cheirosos e coloridos que lhe foram apresentados. Jornalistas que não exercitam um saudável ceticismo, que não desconfiam de declarações extraordinárias, que caem de joelhos ao serem enganados pelo truque de entortar uma moedinha na mão, em nada ajudam a informar os leitores. Hoje em dia o cidadão, como cliente de serviços de saúde, tem menos garantias e informações sérias do que, como consumidor, ao comprar uma garrafa de refrigerante. O refrigerante ele sabe o que realmente é e o que pode obter dali. Daí a grande responsabilidade da imprensa ao cobrir o assunto.

A julgar pelos parâmetros adotados nessas reportagens, talvez, numa próxima edição, vejamos ser sugerido que o Centro Tecnológico da Aeronáutica se una ao mundo dos soltadores de balão cariocas na Base de Alcântara a fim de resolver os problemas de lançamento do VLS. Afinal, tudo visa subir aos céus e soltar estalos e bombinhas. E os balões, além de também utilizarem combustível sólido, têm venerável tradição chinesa de milhares de anos. Com isso, o CTA terá a grande vantagem de não se prender ao paradigma científico, pois recorrendo à tradição estará inserido em outra epistemologia.

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Paulo Bento Bandarra é médico e reside no Rio Grande do Sul. É membro do Movimento Medicina Responsável e colaborador do Quackwatch em português. Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa. Leia também O Charlatanismo Protegido.

Quackwatch em português

Artigo publicado em 21 de setembro de 2003.

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