Quackwatch em português

O Charlatanismo Protegido

Paulo Bento Bandarra, M.D.

O termo charlatão vem do italiano ciarlatano, aquele que passa pelo que não é. Era aquele que discursava nas praças vendendo remédios miraculosos. Seria o cruzamento do termo ciarlare, do chalrar dos pássaros, com cerratano, vendedor ambulante. Esta mesma origem da voz das aves inspirou a expressão quackery do anglo-americano, que se originou do termo onomatopaico quack, o grasnar do pato. Poderíamos falar em “apregoador” de efeitos não comprovados.

Na nossa legislação penal só seria considerado charlatão, strito sensu, aquele que confessasse o fato, pois não está prevista a modalidade culposa. Daí a extrema raridade do enquadramento num mundo de apregoadores de milagres. Seria como se só fosse considerado roubo aquele ato que o ladrão confessasse a intenção e não o fortuito. Ou a lesão no acidente de trânsito que só seria considerado se fosse confessado que teria sido intencional. Nas três hipóteses não faz diferença para a vítima que foi lesada. Mas o legislador entendeu de proteger o charlatão lato sensu em detrimento do cidadão. Deixa para ele, a parte mais fraca, a tarefa de decidir o que é real ou o que é falso mesmo tendo a sociedade condições científicas para isto.

O consumidor, e em especial quando se encontra enfermo, acha-se muito frágil emocionalmente e também não tem condições técnicas para avaliar o que é sério do que é falso. Confia que as autoridades tenham tomado as devidas providências contra os tapeadores, embusteiros ou simplesmente burros bem intencionados, mas que o prejudicariam do mesmo jeito. Garantias que conta ao comprar um ferro elétrico.

Por que há erro médico? Porque a atividade médica está tão cientificamente embasada em protocolos, resultados reproduzíveis, condutas a serem seguidas que podem ser cobrados os seus desvios injustificáveis. O legislador e o judiciário entendem isto como uma obrigação do profissional de saúde, independente da sua boa intenção, de seguir os passos aceitos como corretos. Mas ao charlatão, aquele que usa alegações absurdas e extraordinárias, deixou-o livre para apregoar e praticar livremente faturando polpudas somas em cima do consumidor sem a mínima responsabilidade. Se não há base científica, como o acusar de má conduta? É a palavra dele, que o legislador considerou o suficiente, que alega tudo do imaginário contra o paciente prejudicado que deverá provar o dano sem base para isto. É complicado para o consumidor, senão impossível. Neste caso o ônus da prova volta para o consumidor e não do fornecedor da assistência terapêutica.

Há pessoas que afirmam energias curativas não acessíveis a ciência, para curar de forma não detectável pela observação humana, só podendo ser esperado este resultado descoberto pela adivinhação. Muitas vezes são leigos que se apregoam a saber mais da “arte” de curar do que médicos que passam a vida estudando e observando esta parte de conhecimento humano. Qualquer pseudociência tem liberdade para apregoar milagres e partir para a venda, consulta, assistência ao consumidor livremente. Não se exige nada além da opinião pessoal do praticante. É incrível!

São cartilagens de tubarão, sucos de Noni, cristais, urina, ortomoleculares, florais perfumados e inúteis, diagnósticos astrológicos, iridólogos, tratamentos de outra vidas por pessoas que não tratam nem esta, medicinas exóticas que se propõem ser alternativa a medicina científica, ou seja, que não tem demonstração de evidências e que se baseiam somente em alegações do praticante que adivinhou tudo ou redescobriu um velho livro embolorado de prescrição. Muitos profissionais formados entraram neste filão praticando impunemente pelos seus conselhos que deveriam ter o povo, o paciente, como alvo de proteção, que lhes outorgou este poder de vigilância. Chegam mesmo a afirmar na imprensa que pode ser trocado “em uma crise aguda, com infecção respiratória” “o antiinflamatório, um bronco dilatador, um antitérmico, um corticóide, mais nebulização” pode ser trocado por um “medicamento único”. Com a vantagem de ser ainda mais barato, sem comprovação disto em nenhum lugar do mundo.

Tudo isto sob o olhar passivo de órgãos criados para fiscalizar como as secretarias de saúde, conselhos de medicina, odontologia, farmácia, ministério público, Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA) que apesar da terem esta obrigação na sua criação, fazem vistas grossas. Ao praticante é dado a liberdade de explorar o paciente ou o consumidor em promessas não realizáveis.

Um profissional que pratica uma terapia que contraria todo o conhecimento científico é ou não é um charlatão? Será que deve o paciente ser exposto a isto?

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Paulo Bento Bandarra é médico e reside em Porto Alegre (RS). O dr. Bandarra representa o Movimento Medicina Responsável cujo propósito é a defesa dos consumidores contra práticas pseudocientíficas de atenção à saúde.

Quackwatch em português

Artigo publicado em 19 de julho de 2003.

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